quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A revolução franciscana (7) – Um Papa que se mete na economia e na política

Sob o título genérico A revolução franciscana, publiquei no Jornal de Notícias, durante o mês de Dezembro, oito trabalhos sobre o Papa Francisco, que tentam fazer um balanço do que tem sido este ainda curto mas intenso pontificado. Este é o sétimo trabalho da série. 




O Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 
que decorreu em Julho de 2015, na Bolívia (foto reproduzida daqui)

Para o Papa Francisco, o Evangelho de Jesus exige  o compromisso com os outros. Por isso ele vai buscar o pensamento social cristão desde os primeiros séculos para defender que, hoje, os problemas estão todos relacionados e propor os caminhos alternativos que passam pela centralidade da pessoa na actividade política.

“Devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.”
A frase foi cunhada pelo Papa Francisco na exortação Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), de Novembro de 2013, e sintetiza a preocupação por recolocar as pessoas no centro da actividade política, em detrimento de uma “economia sem rosto”.
Estamos perante um Papa mais político do que os anteriores? Nem tanto. Desde os primeiros séculos do cristianismo, os mais importantes teólogos são violentamente críticos do poder político e económico, chegando alguns a defender a possibilidade de roubar matar a fome. No século XIX, com a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, que funda a moderna doutrina social da Igreja, continuou a defesa prioritária dos que sustentam, com o seu trabalho, a pirâmide social.
Mesmo se esse pensamento foi evoluindo, as ideias fundamentais foram sempre a prioridade da pessoa sobre o capital, do bem comum sobre o bem privado, do direito ao trabalho, à habitação e a condições de vida dignas (ver texto ao lado).
A diferença com os pontificados anteriores é que Francisco aponta exemplos concretos para traduzir essas ideias. E não se inibe de usar circunstâncias simbolicamente fortes – participando num encontro de movimentos populares ao lado do Presidente boliviano, Evo Morales, entrando numa favela do Rio de Janeiro, visitando um campo de refugiados do Quénia ou indo a um bairro de muçulmanos cercado por milícias cristãs, numa República Centro-Africana em guerra civil.
Francisco fala mais vezes destas questões e coloca-as como prioridade sobre outras. Ainda no dia 30 de Novembro, a regressar da viagem a África, e perguntado sobre o preservativo, ele repetiu o que Bento XVI já dissera: “Sim, é um dos métodos” de prevenção do contagio da sida, por exemplo.

Mas depois acrescentou: “Isto não é o problema, o problema é maior. (...) a desnutrição, a exploração das pessoas, o trabalho escravo, a falta de água potável: estes são os problemas. (...) A grande ferida é a injustiça social, a injustiça ao meio ambiente, a referida injustiça da exploração e a desnutrição. Este é o problema. Não gosto de descer a reflexões de casuística, quando as pessoas morrem por falta de água e à fome, por causa do habitat... (...) Porque é que se continuam a fabricar armas e a comercializar as armas? As guerras são a maior causa de mortalidade...”
A forma como o Papa Francisco olha para os problemas é a de quem entende que tudo tem relação com tudo. Ainda na Evangelii Gaudium, ele escrevia que “a crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano”. Por isso, “uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos.”
Contra um discurso dominante, o Papa diz que não se pode “mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”. E acrescenta: “O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo.” Muitos remédios “são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.”
Na encíclica Laudato Si’, publicada em Junho passado e dedicada à questão ecológica, o olhar holístico do Papa é ainda mais evidente: “Tudo está intimamente relacionado e os problemas actuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise mundial...”.
Por isso, ele propõe uma “ecologia integral” que garanta que a actividade económica tenha também em conta a natureza e não apenas o lucro; uma ecologia cultural que garanta o respeito por tradições e linguagens próprias de cada grupo humano; uma ecologia do quotidiano que garanta um espaço urbano digno e habitação para todos; o princípio do bem comum como “central e unificador na ética social” e o princípio da justiça intergeracional como garantia de que a actual geração não compromete a vida das gerações futuras.
Em fundo, está também a ideia da profunda relação entre a resolução do problema da miséria em que vivem tantos milhões de pessoas, a guerra, os problemas ambientais e o desenvolvimento.
Na Evangelii Gaudium, o Papa recorda a base de tudo isto: “No próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros.”


“Direitos sagrados”: Terra, tecto e trabalho para todos

São “direitos sagrados”, dizia o Papa: “Terra, tecto e trabalho para todos”. O Papa participou na sessão final do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que decorreu na Bolívia, em Julho, e deixou a confirmação de que “vale a pena lutar” por esses direitos.
Dois meses depois, perante a assembleia geral das Nações Unidas, ele dizia que essas três condições são “o mínimo absoluto” de que as pessoas devem dispor a nível material “para tornar efectiva a sua dignidade e para formar e manter uma família” – sendo a “liberdade de espírito” o correspondente a nível espiritual.
Ainda na Bolívia, o papa insistia na necessidade de “uma mudança real” nas estruturas sociais, políticas e financeiras: “Este sistema é insuportável”. Que é como quem diz, já não se aguenta...
E na encíclica Laudato Si’, sobre a ecologia, insistia em que a actual orientação económica vai no sentido de reduzir custos começando pela redução de postos de trabalho. “É mais um exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo”, comenta. Porque desde logo corrói o “capital social”, ou seja, as relações “de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência civil”.
Francisco retira daqui duas conclusões: “Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade.” E a actividade empresarial deve pensar na “criação de postos de trabalho” como “parte imprescindível do seu serviço ao bem comum”.


Os críticos do Papa e do pensamento social cristão
Várias vozes criticam ao Papa o facto de ele se imiscuir em assuntos que não seriam da sua especialidade. Um dos possíveis candidatos à presidência dos Estados Unidos, Jeb Bush, criticou em Junho o conteúdo da encíclica Laudato Si’, afirmando que não ditaria a sua política económica pela opinião dos seus bispos, cardeais ou do próprio Papa. O problema, para o membro do clã Bush, são as implicações económicas das medidas que tantos cientistas dizem ser urgentes contra as mudanças climáticas e outros problemas ambientais. Bush é apenas um dos que, no campo político ou financeiro, não admitem que o Papa teça considerações críticas do actual sistema dominante. Mesmo se as posições de Francisco vêm na sequência do que sempre defenderam os grandes teólogos do cristianismo desde os primeiros séculos e do moderno pensamento social católico.

Mais um alto risco e graves questões sociais
Em meados de Fevereiro, o Papa irá ao México. O programa inclui, por sua vontade expressa, a região de Chiapas, onde os indígenas, com o apoio da Igreja, têm lutado contra uma política de genocídio cultural e espezinhamento de direitos humanos básicos. Mas Francisco quis também que Ciudad Juárez, possivelmente a cidade mais violenta do mundo, dominada pelos gangues do narcotráfico, fizesse parte do roteiro. Aqui, o Papa estará também a poucos quilómetros de El Paso, a cidade fronteiriça dos Estados Unidos. Por isso, a imigração e o apoio a quem procura condições de vida melhores não deixarão de ser outro tema dos seus discursos – e de mais algumas críticas do lado dos EUA, a poucos meses das eleições presidenciais.

Um cristão deve limpar a política
“Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos ‘jogar a fazer o Pilatos’, lavar as mãos. Não podemos! Devemos envolver-nos na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum.” A frase e o apelo do Papa, em resposta a uma pergunta de um jovem, num encontro com alunosdas escolas jesuítas da Itália e da Albânia, não deixou margem para qualquer dúvida: “Não há coisas fáceis na vida. Não é fácil; a política está muito suja; e ponho-me a pergunta: Mas está suja, porquê? Não será porque os cristãos se envolveram na política sem espírito evangélico?” E, dirigindo-se ao jovem que o interpelou, acrescentou: “Deixo-te esta pergunta: É fácil dizer que ‘a culpa é de fulano’, mas eu que faço? É um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever do cristão! E, muitas vezes, a opção de trabalho é a política. Há outras estradas: professor, por exemplo, é outra estrada. Mas a actividade política em prol do bem comum é uma das estradas. Isto é claro.”

Por uma educação inclusiva, que vá às periferias

A educação tornou-se “demasiado selectiva e elitista, parece que só os povos e as pessoas com um certo nível ou capacidade têm direito à educação”. E esta é “uma realidade mundial que nos faz envergonhar”, dizia o Papa, há um mês (21 de Novembro), aos participantes no congresso mundial de educadores católicos. Contra esta realidade, o Papa  defende que os trabalhadores educativos deixem de ser mal pagos, que haja uma “educação de emergência”, “informal” e “inclusiva”, que não se subordine ao critério financeiro. E, especificamente para as escolas e universidades católicas, pediu que estejam mais atentas às margens sociais e às periferias. “Procurai lá os necessitados, os pobres”, que têm a “experiência da sobrevivência, também da crueldade, da fome, das injustiças”. E citava o reitor de um colégio jesuíta: “Dizia-me quanto lhe custa mudar de mentalidade, para reeducar pelo caminho que a Igreja quer hoje.”

Texto anterior no blogue
René Girard, misericórdia e sobriedade - crónica de Guilherme d'Oliveira Martins

Texto anterior da série A revolução franciscana

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