quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A revolução franciscana (6) – Francisco, o pároco da aldeia global

Sob o título genérico A revolução franciscana, publiquei no Jornal de Notícias, durante o mês de Dezembro, oito trabalhos sobre o Papa Francisco, que tentam fazer um balanço do que tem sido este ainda curto mas intenso pontificado. Este é o sexto trabalho da série. 


O Papa, durante uma homilia, na Casa de Santa Marta 
(foto reproduzida daqui)

O que mais gosto é ser pároco, diz Francisco, quando questionado sobre o seu ministério. Esta vocação de proximidade vem de longe, mas o Papa argentino quis continuar – na residência escolhida, na organização do quotidiano, na forma como fala ou se aproxima das pessoas. De todas as pessoas.

Um Papa que gosta de ser pároco? A razão é dada pelo próprio Francisco: “Sinceramente, o que mais gosto é ser pároco, pastor. Não gosto de trabalhar no escritório (...), mas devo fazê-lo. Então, o que mais me agrada? Ser pároco.”
Há pouco mais de um mês, a 15 de Novembro, o Papa encontrou-se com os protestantes da Igreja Luterana de Roma. Julius, de nove anos, perguntou-lhe o que mais gostava no ministério de Papa. E Francisco explicou: “Gosto de ser Papa com o estilo do pároco. O serviço. Gosto disto, no sentido que me sinto bem quando visito os doentes, quando falo com as pessoas que estão um pouco desesperadas, tristes. (...) Ser Papa é ser bispo, ser pároco, ser pastor. Se o Papa não for bispo, se o Papa não for pároco, se não for pastor, será uma pessoa muito inteligente, muito importante, terá uma grande influência na sociedade, mas acho – penso! – que não será feliz no seu coração.”
Este é o estilo de Jorge Mario Bergoglio desde há muito. Já em Buenos Aires, enquanto arcebispo, ele dispensou o paço episcopal e passou a residir num apartamento normal. Ele próprio cozinhava, geria a agenda, recebia as pessoas. Tornou-se simbólica a foto de Bergoglio no metro de Buenos Aires, sentado como qualquer outro passageiro. No caso dele, os transportes públicos – também não tinha motorista – eram o modo de chegar, por exemplo, às “villa miséria”, os bairros degradados da capital argentina.
Quando foi eleito Papa, o estilo confirmou-se logo nas primeiras decisões: quando foi tomar posse dos aposentos pontifícios, Francisco comentou que o espaço daria para muita gente. E que ele não se sentia bem a viver isolado, sem mundo.
Optou, assim, por ficar na Casa de Santa Marta, uma espécie de residencial que serve de alojamento a padres, bispos e outras pessoas de passagem pelo Vaticano. Ali tinha ficado alojado durante o conclave, ali permaneceu. Na casa almoça diariamente, ali se cruza com funcionários – homens e mulheres – que cozinham, servem à mesa, asseguram a recepção, a limpeza e outros trabalhos.

O dia-a-dia é feito, assim, de contactos com gente normal e não apenas com altos responsáveis do Vaticano. Parte do correio que chega é entregue, em mão, pelas funcionárias da recepção ao próprio Francisco. No início, o almoço era tomado numa mesa ao centro do refeitório. Mas o Papa quase não tinha dois minutos seguidos para almoçar tranquilo, pois quem chegava abeirava-se dele para o cumprimentar. Por isso, o lugar mudou para um canto do refeitório, numa mesa onde se sentam os mais próximos colaboradores, mas também pessoas de passagem com quem o Papa quer falar.
Na mesma casa, logo pela manhã, o Papa começa o dia a celebrar a missa na pequena capela. Nos bancos, a participar, sentam-se funcionários do Vaticano, grupos em reuniões e encontros, convidados ou, simplesmente, pessoas de passagem em Roma e que querem estar com o seu “pároco” global.
Dali, a homilia diária chega a todo o mundo. E são raras as vezes em que o que o Papa diz não dá um título de notícia, uma chamada de atenção, um apelo ao mundo, um desafio à Igreja. Inspiradas no texto bíblico, curtas e sempre com exemplos concretos da vida das pessoas ou da Igreja, elas são uma forma de pedagogia (ver texto ao lado).
Logo a 17 de Março de 2013, apenas quatro dias depois de ser eleito, o Papa já quisera celebrar a missa de domingo na pequena igreja paroquial de Santa Ana, à entrada do Vaticano. A paróquia, inserida dentro do território da Santa Sé, dá nome à porta de Santa Ana, a entrada no pequeno estado à direita da colunata de Bernini). É nesse ambiente informal, de proximidade, que Francisco gosta de estar.
Em cada homilia, discurso ou alocução que faz, o Papa tem quase sempre uma história de família para contar – da avó, de alguém com quem se cruzou, de uma pessoa próxima ou até do San Lorenzo, o clube de futebol de que é adepto – como quem está a comentar a actualidade com um vizinho, um familiar ou um conhecido. No final de cada audiência, a mesma proximidade reveste-se de outras formas – abraços, saudações às crianças e aos doentes, boa disposição, risos e gargalhadas.
Na homilia de 15 de Maio de 2013, dizia o Papa em Santa Marta: “Um bispo não é bispo para si próprio, mas para o povo; e um sacerdote não é um sacerdote para si próprio, mas para o povo: está ao serviço do povo para fazer crescer, para apascentar o povo. (...) Quando um bispo, um sacerdote, envereda pelo caminho da vaidade, entra no espírito do carreirismo – fazendo muito mal à Igreja –, acaba por fazer uma figura ridícula, vangloria-se gosta de se mostrar muito poderoso... E o povo não ama isso.”
Francisco é o oposto disto mesmo. E o povo crente ama isso.


Homilias, uma marca identitária – Uma pedagogia sobre o que se pode fazer ou fazer melhor

As missas diárias na Casa de Santa Marta tornaram-se já uma marca identitária do pontificado de Francisco. Dali, o Papa fala ao pequeno grupo de 30, 50 pessoas que o escutam, mas também para todo o mundo. E nunca se fica pela banalidade, pelos lugares comuns ou pela conversa oca sobre os textos bíblicos. Antes os toma como ponto de partida, para dizer que atitudes deve ter o crente no seu dia-a-dia. Fazendo-o de modo breve e com exemplos tomados do quotidiano, como sugerem aliás vários textos oficiais do Vaticano sobre o assunto.
São homilias em que o Papa “não diz aquilo que não se deve fazer, propondo antes aquilo que podemos fazer ou fazer melhor”, analisa o padre jesuíta Antonio Spadaro, que organizou já volumes com as homilias de Francisco em Santa Marta (o volume com as homilias do primeiro ano de pontificado, A Verdade é um Encontro, está já publicado em Portugal – ed. Paulinas).
A pedagogia franciscana, nota ainda Spadaro, vai insistindo em várias constantes: a luta e o desafio, o desejo e a ternura, a centralidade do espírito, a ideia de caminhada... “Nas suas homilias, [o Papa] torna-se mestre da vida espiritual, incitando-nos a seguir em frente, a partir em missão até às periferias existenciais”, escreve o padre jesuíta, que fez há dois anos a primeira grande entrevista ao actual Papa. “O caminho torna-se a grande metáfora da vida espiritual e eclesial. Só no caminho é possível o encontro. O caminho é, nesse sentido, o lugar da verdade.”
O modelo de homilia de Bergoglio assenta num método pastoral caro aos jesuítas: o discernimento, estudado e treinado nos Exercícios Espirituais, de Santo Inácio de Loiola. Um método que, perscrutando a realidade, pretende encontrar a vontade de Deus para cada tempo, “os pontos em que o desejo de Deus é vivo e ardente”, na expressão de Spadaro.


Rir com as imitações, abraçar desfigurados 
Na recente viagem aos Estados Unidos, no final de Setembro, Francisco riu às gargalhadas quando viu a bebé Quinn Madden, de apenas seis meses, fantasiada de Papa. “Vocês têm um grande sentido de humor”, disse o papa aos pais da criança, através do segurança. Os sinais de proximidade que o Papa é capaz de dar traduzem-se na capacidade de rir com as suas imitações, com o soprar as velas de um bolo de aniversário na Praça de São Pedro ou com o pequeno que lhe quis “tomar” o lugar, sentando-se na sua cadeira, em Novembro de 2013. Mas também vão ao ponto de abraçar o homem desfigurado pela neurofibromatose e abraçá-lo, outro momento fotográfico que deu a volta ao mundo, em Novembro de 2013.

Novos bispos, um modelo franciscano de agir
Nos últimos meses, Francisco teve de nomear novos bispos para cidades importantes como Bolonha, Palermo, Bruxelas ou Barcelona – cidades em que, normalmente, o bispo é nomeado cardeal na primeira ocasião. O denominador comum a todas as nomeações, dizem os perfis biográficos publicados em Itália, na Bélgica ou em Espanha, é o de serem todos de contacto próximo com as pessoas, afáveis, sem preocupações de fazer carreira eclesiástica – ou seja, muito ao modelo de Francisco. No caso de Barcelona, o único senão era o facto de o novo bispo, Juan José Omella, não ser catalão – veio de Logroño, ali ao lado. Mas o próprio tratou de descansar os católicos independentista, prometendo que iria aprender a falar a língua.


Uma proximidade que chega a todas as religiões


O Papa Francisco com o Patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu
(foto reproduzida daqui)

A proximidade que o Papa Francisco vive traduz-se também nas relações pessoais de amizade e na aproximação institucional com líderes de outras confissões cristãs, e de outras religiões como os judeus ou os muçulmanos, mas também os budistas ou os hindus (como aconteceu na sua viagem ao Sri Lanka, em Janeiro). A sua relação pessoal com o patriarca ortodoxo Bartolomeu, de Constantinopla (Istambul), complementada pelo desenvolvimento das relações institucionais entre o Vaticano e o Patriarcado Ecuménico, é uma das mais importantes. A ponto de, na sua encíclica Laudato Si’, sobre o ambiente, o Papa citar várias vezes documentos de Bartolomeu, que se tem dedicado ao aprofundamento da teologia da criação.

O primeiro Papa a encontrar-se com evangélicos
Se Francisco é o primeiro Papa em muitos gestos de proximidade, ele foi também o primeiro a encontrar-se com comunidades evangélicas. A corrente evangélica é, no protestantismo, a que mais cresce actualmente em todo o mundo, confundindo-se muitas vezes com movimentos predominantemente carismáticos e espiritualistas (em Portugal, é o caso das Assembleias de Deus, da Igreja Maná ou da Igreja Universal do Reino de Deus). No final de Julho do ano passado, o Papa foi a uma igreja evangélica em Caserta (sul de Itália), onde se encontrou com a comunidade local e o seu pastor, Giovanni Traettino, um amigo de longa data.

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