A iniciativa das tradições e Religiões unidas propõe:
O Manifesto da Unidade na Diversidade
? Ética e espiritualidade das tradições e religiões
de paz e de justiça
Paz, Igualdade, Solidariedade
PREÂMBULO
Este Manifesto[1] parte dos valores éticos e espirituais fundamentais e universais para expor, em doze pontos, uma visão de unidade na diversidade das tradições e religiões de paz e de justiça.
. A sua visão simples, coerente e concisa permite a qualquer pessoa de boa vontade, a ele aderir, seja ela agnóstica[2] ou crente.
? O Manifesto desenvolve a divisa e a máxima da Europa e inscreve-se directamente nos trabalhos de « Uma Alma para a Europa?ética e espiritualidade? »[3].
? As suas bases permitem construir uma eco-cidadania de harmonia, de não-violência e de responsabilidade universal para uma sociedade de solidariedade e de cooperação.
? Os pontos desenvolvidos pelo Manifesto são fundamentais na educação para uma cultura de paz e de não-violência tal como a propõe a Unesco, a Onu, e numerosas organizações do diálogo inter-religioso.
? Pode favorecer o diálogo inter-tradições e inter-religioso expressando um denominador comum a todas as tradições de paz e de justiça.
? A sua simplicidade pode ser útil como utensílio de comunicação mediática e pode ter um impacto significativo nos dirigentes religiosos, nas instituições e nos sistemas educativos.
? Pode favorecer a emergência de uma rede de dirigentes éticos e espirituais partilhando uma mesma perspectiva de unidade na diversisdade.
? Pode ser um paradigma a integrar na constituição de Estados de paz e de justiça.
? O reconhecimento dos seus princípios é também a condição sine qua non para que as religiões não sejam factores de enclausuramento identitários e finalmente de guerras.
O Manifesto da Unidade na Diversidade
das tradições e religiões de paz e de justiça
Nós, representantes de tradições et religiões aspirando à paz e à justiça [4], à harmonia e à não-violência, signatários do presente manifesto, reconhecemos :
1) A realidade de uma dimensão fundamental e universal da ética.
2) A realidade de uma dimensão fundamental e universal da espiritualidade.
3) A unidade na diversidade das tradições de paz e de justiça.
4) A diversidade e o pluralismo como uma riqueza.
5) Os fundamentos universais da ética e da espiritualidade como base de uma atitude respeitosa dos direitos e deveres do ser humano.
Reconhecemos também:
6) A necessidade de uma igualdade de direitos e de dignidade nas relações intertradicionais e religiosas.
7) A necessidade de um compromisso total com a sua tradição ou religião.
8) A necessidade de um diálogo intertradições ou inter-religioso profundo.
9) A necessidade da comunicação e da educação sobre o tema da unidade na diversidade.
10) A necessidade de uma cooperação intertradicional e religiosa em vez da competição de tradições e religiões.
11) A necessidade de promover um Estado garante da unidade na diversidade das tradições e religiões de paz e de justiça.
12) A utilidade de uma Rede Mundial de Dirigentes Tradicionais e Religiosos como lugar e instrumento desta cooperação e solidariedade numa perspectiva de unidade na diversidade.
Mais precisamente :
1) Reconhecemos como regra de ouro a realidade de uma dimensão fundamental e universal da ética.
Todas as tradições e religiões de paz e de justiça têm fundamentalmente uma mesma dimensão ética que se resume na regra de ouro que se enuncia : « Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti».[5]
2) Reconhecemos no Absoluto, Deus e/ou a compreensão do que eu sou, a realidade de uma dimensão fundamental e universal da espiritualidade.
Todas as tradições e religiões de paz e de justiça partilham também uma dimensão espiritual fundamental e universal, que se resume ao reconhecimento, à experiência e à compreensão de uma presença do Absoluto, de Deus ou do Ser supremo compreendido como fundamentalmente intemporal e omnipresente, transcendendo os nomes e as formas que lhe podem ser atribuídos. A dimensão universal da espiritualidade pode também resumir-se no adágio socrático : « conhece-te a ti mesmo».
3) Reconhecemos a unidade da experiência ética e espiritual na diversidade de expressão das tradições e religiões de paz e de justiça.
A dimensão universal da experiência ética e espiritual[6] é o espaço da unidade ou da convergência fundamental das tradições ou religiões de paz e de justiça. As expressões particulares desta unidade fundamental e universal são a diversidade destas tradições ou religiões. Esta diversidade de expressão corresponde a receptividades, mentalidades e sensibilidades variadas, dos diferentes seres humanos, na multiplicidade das suas matrizes sociolinguísticas.
4) Reconhecemos a diversidade e o pluralismo como uma riqueza.
A diversidade das formas e expressões particulares utilizadas pelas diferentes tradições e religiões de paz e de justiça[7] deve ser considerada, para além da simples atitude de tolerância, como uma riqueza da expressão dos poderes ilimitados do absoluto e do património ético e espiritual da humanidade.
5) Reconhecmos os fundamentos universais da ética e da espiritualidade como base de uma atitude respeitadora dos direitos e deveres dos seres humanos.
Os fundamentos da ética e da espiritualidade, universais e não confessionais, tais como os acima mencionados, são os fundamentos de uma atitude respeitadora dos direitos e deveres do ser humano[8] numa perspectiva de responsabilidade universal[9].
E também:
6) Reconhecemos a necessidade de uma igualdade de direitos e de dignidade nas relações entre tradições e religiões.
A formulação e a prática de uma «personalidade tradicional ou religiosa» análoga à «personalidade moral» considera todas as tradições e religiões de paz e justiça iguais em direitos, em deveres e em dignidade [10].
7) Reconhecemos a necessidade de um compromisso total com a sua própria tradição/religião.
Na igualdade de direitos, de deveres e de dignidade das tradições e religiões de paz e de justiça[11], um total compromisso, enquanto discípulo da disciplina da sua tradição/religião, com as suas percepções, práticas, regras e preceitos é necessário para a progressão : a transformação pessoal, a salvação ou realização dos seus membros; assim como para evitar confusões que o sincretismo ou o concordismo podem produzir.12
8) Reconhecemos a necessidade de um diálogo intertradições/ inter-religioso profundo.
O diálogo, quer entre tradições quer entre religiões é, na sua dimensão profunda, o meio de desenvolver a compreensão autêntica da unidade na diversidade; e, no seu contexto, de reconhecer as diferenças como riqueza. Assim se promovem o respeito e a apreciação mútuos e totais das tradições e religiões de paz e de justiça.
9) Reconhecemos a necessidade da comunicação e da educação para a unidade na diversidade.
A comunicação e a educação são os meios para desenvolver a compreensão verdadeira da unidade na diversidade e promover os seus valores. Cada tradição e religião deveria realizá-lo localmente junto dos seus praticantes contribuindo assim para o desenvolvimento da paz e da justiça globais13.
10) Reconhecemos a necessidade de uma cooperação inter tradições/religiões em vez da competição entre tradições/religiões.
Na base dos diferentes pontos acima expressos, as tradições e religiões de paz e de justiça podem trabalhar em sinergia e cooperar entre elas, mais do que entrar em competição. Nesta solidariedade podem unir as suas forças para desenvolver paz e justiça e assim fazer face aos numerosos desafios do mundo contemporâneo, em particular o ecológico.
11) Reconhecemos a necessidade de promover um Estado garante de uma verdadeira unidade na diversidade tal como é definida no presente Manifesto.
É necessário que a política reconheça as tradições éticas e espirituais de paz e de justiça e que um estado agnóstico, ou laico, seja garante da unidade na diversidade, das tradições/religiões tal como está expressa no presente Manifesto.
12) A utilidade de uma Rede Mundial de Dirigentes Tradicionais/Religiosos como lugar e instrumento desta cooperação e solidariedade (numa perspectiva de unidade na diversidade).
A Rede Mundial da Unidade na Diversidade, das Traditções et Religiões de paz e de justiça é uma rede informal de dirigentes ou representantes das diferentes tradições éticas e espirituais e das religiões de paz e de justiça.
A Rede reúne assim todos os praticantes destas tradições e religiões que aderem ao Manifesto.
A Rede é constituída pelos signatários do presente Manifesto e pode, a partir das consultas dos seus membros e das suas visões convergentes, falar em conformidade com os princípios do presente Manifesto para o bem de todos.
Os comentários e achegas desta Rede Mundial seriam preciosos para desenvolver a paz, a justiça e o que é benéfico para todos. Poderiam também servir para denunciar e desencorajar as más utilizações da religião e os excessos de todos os extremos.
A Rede é também o lugar de celebração da solidariedade e da diversidade na unidade.
Cólofon:
A inspiração deste Manifesto remonta às origens da tradição de Buddha e da sua visão Rimay, universalista. Foi inspirado por trinta anos de diálogo inter religioso, no mundo, na Europa e no Instituto Karma Ling e pela participação de Lama Denys, o seu compilador na dinâmica de « Uma Alma para a Europa?ética e espiritualidade». O seu texto foi escrito à Beekman Tower Residence, Baie de la Tortue, Manhattan, New-York, em 22 de Maio de 2003 após a conferência organizada na sede das Nações Unidas pelo World Council of Religious Leaders (Conselho Mundial dos Dirigentes Religiosos). O texto e a sua tradução francesa foram finalizados na semana seguinte na sede do Shanga Rimay : O Instituto Karma Ling, na Savoie em França, UE. Foi apresentado no Encontro Islam-Dharma que teve lugar no Instituto Karma Ling em 7, 8, 9 de Junho de 2003 e foi ligeiramente modificado nessa ocasião. Em seguida foi apresentado no forum « Choc des Civilisations ou Rencontre des Cultures » que teve lugar a 12 e 13 de junho 2003 em Martigny, Suíça.
Considere-se livre de utilizar este manifesto a seu bel-prazer, apropie-se dele em desapropriação, não se trata de um Manifesto de uma pessoa ou de um grupo de pessoas mas sim dos seus signatários. (Está livre de copyrights, é «copyleft / copyfree / freecopy »).
Todos os comentários ou sugestões, para melhorar ou continuar esta iniciativa, são muito benvindos e cordialmente encorajados.
Que tudo seja propício.
Mail : lamadenys@rimay.net
[1] Ver o cólofon sobre as origens deste Manifesto.
[2] O Manifesto pode convir a um «agnóstico humanista » que siga uma tradição ética e espiritual ou a um teísta ou a um monoteísta, ou a um «teísta crente». Entendendo-se agnóstico como «não dependendo de uma crença» ou «não reconhecendo um enunciado literal, qualquer que ele seja, como expressão definitiva da realidade». O teísta utiliza o conceito de Deus para o absoluto e geralmente considera a crença em Deus como um acto de fé.
[3] «Uma Alma para a Europa ? ética e espiritualidade? » foi iniciada por Jacques Delors, Antigo Presidente da Comissão Europeia e está ligada à sua célula de prospecção. O seu princípio fundador é que a Europa não se construirá simplesmente sobre as bases de um mercado e que é necessário dar-lhe uma alma, ou um coração, ético e espiritual, numa perspectiva de unidade na diversidade.
[4] Dizemos que uma tradição ou uma religião é de paz ou de justiça quando ela ensina e pratica a paz e a justiça, e igualmente a harmonia e a não-violência.
[5] Esta regra de ouro tem um alcance universal e todas as tradições e religiões a reconhecem. É um princípio de não-violência, de respeito pelo outro enquanto seu semelhante, um princípio de amor e de compaixão, base de toda a ética de paz e de justiça, e de todas as regras que daí decorrem.
[6] Tal como foi definida nos pontos 1. e 2.
[7] Compreendendo a unidade na diversidade tal como está expressa no ponto 3.
[8] Ver a Declaração Universal dos Direitos e dos Deveres do Homem.
[9] Esta noção pode exprimir-se em termos de eco-cidadania.
[10] Na inteligência da unidade na diversidade e do pluralismo como uma riqueza, tal como foram acima definidas, é necessário que as relações entre tradições e religiões de paz e de justiça sejam fundadas sobre uma igualdade de direitos e de dignidade que pode exprimir-se e operar-se pela formulação e prática de uma « personalidade tradicional ou religiosa », análoga à personalidade moral.
[11] Tal como está expressa no ponto 5.
12 NB : Verifica-se na prática que uma compreensão autêntica da unidade na diversidade e dos seus desenvolvimentos tal como foram apresentados no Manifesto reforçam o compromisso pessoal de cada praticante com a sua própria tradição/religião; (e) isto, aprofundando a sua compreensão e a sua experiência.
segunda-feira, 8 de novembro de 2004
terça-feira, 2 de novembro de 2004
Geração Doente
Por GRAÇA FRANCO
PÚBLICO, 01 de Novembro de 2004
A "Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.
A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.
Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".
Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.
Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.
Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.
Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".
Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...
"Jamais vu!"
Entre a esquerda libertária e a direita libertina só não digo venha o diabo e escolha porque, por princípio, não gosto de lhe conceder qualquer direito. Em comum, elas têm um pensamento intolerante e único em matérias morais (ou imorais) que, no mínimo, começa a tornar-se irritante. Pensar o contrário deixou de ser reprovável e improvável para passar a ser "impossível".
Fora das duas correntes e com a agravante de não me identificar nem com a direita liberal, nem com a esquerda clássica, vejo-me entre os "opinion makers" da praça como uma espécie de raridade em vias de extinção. Teria a vantagem de me colocar ao abrigo do risco do "déjà vu", não fosse transformar as minhas humildes opiniões em sérias candidatas à classificação de "jamais vu".
Não é que eu posso mesmo, e sem "corar", responder ao repto aqui lançado pelo professor Prado Coelho (a que sempre me habituei a respeitar a óbvia superioridade intelectual), informando-o que nem todos os católicos apostólicos romanos vivem a respectiva religião envergonhadamente e "à la carte". Ou seja, que faço parte daqueles milhões que tenta viver em consonância com o Vaticano, sem que tenhamos de suportar o insulto de ultraconservadores reaccionários. Que fique claro: em Itália nunca votaria no senhor Buttiglione, nem no seu partido, nem no seu Governo. Não partilho muitas das suas ideias sobre a família (que extravasam em muito as posições da Igreja) ou sobre a imigração. No Parlamento Europeu raramente votaria com ele e talvez até votasse frequentemente contra ele mas, porque ambos partilhamos a mesma noção de pecado, fico a saber que, como ele, jamais poderei ser comissária. Paciência, adeus regresso a Bruxelas.
E o meu "pecado" incapacitante parece ser o de, como muitos outros, seguirmos a doutrina de João Paulo II, tanto na condenação firme da guerra preventiva (com a consequente oposição à actual política norte-americana), como na opção preferencial pelos pobres (com a defesa acérrima de uma maior justiça social) - dois pontos que regra geral agradam à esquerda e a direita gosta de omitir -, como nas questões morais que vivemos com maior ou menor dificuldade dada a condição de simples pecadores. Mas, enfim, vivemos, pregamos e publicamente defendemos.
Coisas tão fora de moda como o apelo à vida casta dos solteiros, ou dos homossexuais e divorciados com anterior casamento católico (porque para os católicos o matrimónio é indissolúvel). Isso não significa perseguir ninguém, nem desrespeitar a sua escolha, ainda que decidam viver pública e assumidamente em situações que a Igreja identifica claramente como situações "de pecado". Não se trata de perseguir os homossexuais, pactuar com a sua discriminação, atentar contra a sua dignidade, privá-los dos seus direitos, como não significa marginalizar os recasados ou criminalizar o adultério. Dá para entender? Pelo contrário, o próprio Cristo impediu a lapidação (era a pena de então, numa sociedade que ironicamente autorizava o divórcio) da mulher adúltera, mandando-a em paz com esta simples advertência: "vai e não voltes a pecar". Bem podia ter-lhe dito: "vai que isso não é mais pecado", segundo a minha nova lei. Não disse. Como não o disse à Samaritana, casada pela quinta vez e a viver em união de facto com um homem casado com outra. Há dois mil anos a vida sentimental não era muito mais tranquila do que a actual. É esse Cristo que Paulo pregou, com escândalo, a uma sociedade onde a homossexualidade era tão ou mais comum do que na actual, que continua a escandalizar-nos com as suas propostas radicais. Um Cristo a exigir loucuras de fé.
Intriga-me apenas que quem tem as maiores dúvidas sobre a própria existência de Deus, como Eduardo Prado Coelho, possa ter tão profundas certezas sobre quais os comportamentos que O ofendem ou não (é isso que significa pecado, ofensa a Deus). Eu não tive nenhuma revelação divina. À falta de fonte mais segura, para tentar evitar ofendê-Lo, sigo as instruções do magistério. Todos os meus amigos homossexuais sabem como penso e há mesmo alguns que pensam como eu. Os meus amigos que vivem em adultério (e são muitos mais!), também. Somos todos pecadores de variadíssimos pecados, mas isso não nos deve impedir a todos de ambicionar a santidade. E ela é possível. Hoje celebra-se a sua vitória no Céu e na terra. É porque os Santos existem que hoje é feriado. Sabiam? Não costumo fazer destas crónicas palco de apostolado (deixo a minha catequese para outros "fora"). Aqui não acho próprio. Mas o meu silêncio perante o repto do professor soava a cobardia. E não gosto de cobardes.
Por GRAÇA FRANCO
PÚBLICO, 01 de Novembro de 2004
A "Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.
A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.
Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".
Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.
Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.
Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.
Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".
Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...
"Jamais vu!"
Entre a esquerda libertária e a direita libertina só não digo venha o diabo e escolha porque, por princípio, não gosto de lhe conceder qualquer direito. Em comum, elas têm um pensamento intolerante e único em matérias morais (ou imorais) que, no mínimo, começa a tornar-se irritante. Pensar o contrário deixou de ser reprovável e improvável para passar a ser "impossível".
Fora das duas correntes e com a agravante de não me identificar nem com a direita liberal, nem com a esquerda clássica, vejo-me entre os "opinion makers" da praça como uma espécie de raridade em vias de extinção. Teria a vantagem de me colocar ao abrigo do risco do "déjà vu", não fosse transformar as minhas humildes opiniões em sérias candidatas à classificação de "jamais vu".
Não é que eu posso mesmo, e sem "corar", responder ao repto aqui lançado pelo professor Prado Coelho (a que sempre me habituei a respeitar a óbvia superioridade intelectual), informando-o que nem todos os católicos apostólicos romanos vivem a respectiva religião envergonhadamente e "à la carte". Ou seja, que faço parte daqueles milhões que tenta viver em consonância com o Vaticano, sem que tenhamos de suportar o insulto de ultraconservadores reaccionários. Que fique claro: em Itália nunca votaria no senhor Buttiglione, nem no seu partido, nem no seu Governo. Não partilho muitas das suas ideias sobre a família (que extravasam em muito as posições da Igreja) ou sobre a imigração. No Parlamento Europeu raramente votaria com ele e talvez até votasse frequentemente contra ele mas, porque ambos partilhamos a mesma noção de pecado, fico a saber que, como ele, jamais poderei ser comissária. Paciência, adeus regresso a Bruxelas.
E o meu "pecado" incapacitante parece ser o de, como muitos outros, seguirmos a doutrina de João Paulo II, tanto na condenação firme da guerra preventiva (com a consequente oposição à actual política norte-americana), como na opção preferencial pelos pobres (com a defesa acérrima de uma maior justiça social) - dois pontos que regra geral agradam à esquerda e a direita gosta de omitir -, como nas questões morais que vivemos com maior ou menor dificuldade dada a condição de simples pecadores. Mas, enfim, vivemos, pregamos e publicamente defendemos.
Coisas tão fora de moda como o apelo à vida casta dos solteiros, ou dos homossexuais e divorciados com anterior casamento católico (porque para os católicos o matrimónio é indissolúvel). Isso não significa perseguir ninguém, nem desrespeitar a sua escolha, ainda que decidam viver pública e assumidamente em situações que a Igreja identifica claramente como situações "de pecado". Não se trata de perseguir os homossexuais, pactuar com a sua discriminação, atentar contra a sua dignidade, privá-los dos seus direitos, como não significa marginalizar os recasados ou criminalizar o adultério. Dá para entender? Pelo contrário, o próprio Cristo impediu a lapidação (era a pena de então, numa sociedade que ironicamente autorizava o divórcio) da mulher adúltera, mandando-a em paz com esta simples advertência: "vai e não voltes a pecar". Bem podia ter-lhe dito: "vai que isso não é mais pecado", segundo a minha nova lei. Não disse. Como não o disse à Samaritana, casada pela quinta vez e a viver em união de facto com um homem casado com outra. Há dois mil anos a vida sentimental não era muito mais tranquila do que a actual. É esse Cristo que Paulo pregou, com escândalo, a uma sociedade onde a homossexualidade era tão ou mais comum do que na actual, que continua a escandalizar-nos com as suas propostas radicais. Um Cristo a exigir loucuras de fé.
Intriga-me apenas que quem tem as maiores dúvidas sobre a própria existência de Deus, como Eduardo Prado Coelho, possa ter tão profundas certezas sobre quais os comportamentos que O ofendem ou não (é isso que significa pecado, ofensa a Deus). Eu não tive nenhuma revelação divina. À falta de fonte mais segura, para tentar evitar ofendê-Lo, sigo as instruções do magistério. Todos os meus amigos homossexuais sabem como penso e há mesmo alguns que pensam como eu. Os meus amigos que vivem em adultério (e são muitos mais!), também. Somos todos pecadores de variadíssimos pecados, mas isso não nos deve impedir a todos de ambicionar a santidade. E ela é possível. Hoje celebra-se a sua vitória no Céu e na terra. É porque os Santos existem que hoje é feriado. Sabiam? Não costumo fazer destas crónicas palco de apostolado (deixo a minha catequese para outros "fora"). Aqui não acho próprio. Mas o meu silêncio perante o repto do professor soava a cobardia. E não gosto de cobardes.
Subscrever:
Mensagens (Atom)