quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A "religiãozeca em que tantas vezes transformamos o Evangelho de Jesus"


"Dou-me bem com a descrença e com as dúvidas de quem procura. Sinto-me confortável numa conversa entre sensibilidades religiosas diferentes e experimento como um privilégio a amizade com pessoas que não abdicam de procurar o Sentido e a Beleza da Vida e dos Gestos, apesar de não sentirem necessidade de fazerem dessa procura um itinerário religioso. Onde me sinto como peixe fora de água é na terra dos mitos e da beatice, no bairro de lata das mezinhas e das devoções sem outros fundamentos para além do medo e das superstições. Sinto-me triste no território das aparições, dos milagres de trazer por casa, dos gurus que têm uma caixinha mágica dentro da qual transportam o Espírito Santo sempre com eles e das revelações particulares que pouco mais revelam que a particularidade – tantas vezes doentia – de quem as tem.
Há horas em que o que fica para dizer é um desabafo entristecido diante da religiãozeca em que tantas vezes transformamos o Evangelho de Jesus. (...)"

Rui Santiago cssr, in Derrotar Montanhas, 13.12.2011

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Conheço uma família…

Conheço uma família que, desde há anos, se junta uma vez por ano.
De perto e de longe vêm quatro gerações, num total de perto de cem pessoas. 
Alguns mal se conhecem, sabem apenas que pertencem à família. 
Outros foram (ou vão ser) incorporação recente. 
Há quem seja íntimo e quem seja distante. Há zangas antigas, uma que outra entretanto desfeita. Feitios de muitos feitios. 
Há memórias de quem já não vem, especialmente a do ‘patriarca’ que foi um sábio discreto e solicitado, que, sem sonhar, talvez seja o segredo da reunião anual.
Esta família em nada se distingue de muitas outras famílias, a não ser, talvez, por essa vontade de encontrar-se; de afirmar que o encontro é mais importante do que a rivalidade, a apatia, a zanga ou a inveja. 
Nesses encontros não há discursos, a não ser talvez os que acontecem com o vizinho de mesa mais próximo ou o que liberta um copo a mais. Há, sim, o pôr as conversas em dia à volta da mesa comum, os jogos de graúdos e miúdos, o conforto a quem sofreu a adversidade, a evocação dos momentos e acontecimentos importantes, por vezes uma discussão mais acirrada. E sem delimitações rígidas de quem pertence ou está de fora: pelo menos à hora do café não é raro juntarem-se outros amigos e vizinhos.
Reunir-se não é obrigatório e, um dia, se não houver quem faça esse papel de convocar e organizar, pode ser que se interrompa ou até acabe. E nem por isso a família acabará, porque outros serão por certo os caminhos dos encontros e desencontros.
O que tem subsistido é a vontade do encontro, a vontade de sobrepor a convivência às pressas e pressões do dia a dia, a crença de que os laços assim se (re)fazem e que daí vem sabor e sentido à existência. 
É provável que tal vontade de encontro, a cada ano renovada, essa sim, seja aquilo que convoca e reúne. Vejo nesta maravilha simples e luminosa o acontecer da parábola que, acredito, espera e convoca a humanidade inteira, aquela humanidade que, uma vez rompidas as cadeias e derrubados os muros, se torne de facto, numa família humana.
Para isso, há que ir vencendo “os demónios do mutismo e da surdez”, a que aludiu José Augusto Mourão, o académico, poeta e frade dominicano que este ano deixou de connosco se reunir.

(Texto publicado na edição de hoje do jornal digital Página 1, da Renascença) .

domingo, 25 de dezembro de 2011

Há 50 anos: convocação do Concílio Vaticano II

No dia de Natal de 1961, há precismente 50 anos, o papa João XXIII concretizava aquilo que anunciara três anos antes, pouco depois de ter sido eleito: a convocação do Concílio Ecuménico do Vaticano II. Tal foi feito através da constituição apostólica que ficou conhecida como Humane Salutis, de que transcrevemos aqui a parte mais relevante:

"13. O primeiro anúncio do concílio por nós dado, no dia 25 de janeiro de 1959, foi como a pequena semente que depusemos com ânimo e mãos trêmulas. Sustentado pela ajuda celestial, nos limitamos ao complexo e delicado trabalho de preparação. Três anos já se passaram, nos quais, dia a dia, vimos desenvolver-se a pequena semente e tornar-se, com a bênção de Deus, uma grande árvore.
Ao rever o longo e cansativo caminho percorrido, eleva-se de nossa mente um hino de agradecimento ao Senhor, por ser-nos ele pródigo em auxílios, de tal modo que tudo se desenrolou convenientemente e harmonicamente.
14. Antes de determinar os assuntos a estudar, com vistas ao futuro concílio, quisemos, antes de mais nada, conhecer o sábio e ilustrado parecer do colegio cardinalício, do episcopado de todo o mundo, dos sagrados dicastérios da cúria romana, dos superiores das ordens e das congregações religiosas, das universidades e das faculdades eclesiásticas. No transcurso de um ano terminou-se este ingente trabalho de consultas, de cujo exame brotaram claros os pontos a serem submetidos a um profundo estudo.
15. Constituímos, então, os diversos organismos preparatórios, aos quais cometemos a árdua tarefa de elaborar os esquemas doutrinários e disciplinares, de onde escolheremos aqueles que pretendemos submeter à assembléia conciliar.
16. Temos, finalmente, a alegria de comunicar que este imenso trabalho de estudo, ao qual deram sua contribuição valiosa os cardeais, bispos, prelados, teólogos, canonistas, técnicos de todas as partes do mundo, alcança já o seu termo.
17. Confiando, pois, no auxílio do divino Redentor, princípio e fim de todas as coisas, de sua Mãe e de são José, a quem, desde o início, entregamos um tão grande acontecimento, parece-nos chegada a hora de convocar o concílio ecumênico Vaticano II.
18. Portanto, depois de ouvir o parecer de nossos irmãos os cardeais da santa Igreja romana, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e com a nossa, anunciamos, indicamos e convocamos para o próximo ano de 1962, o ecumênico e geral concílio, que se celebrará na Basílica Vaticana, nos dias que serão fixados segundo a oportunidade que a boa Providência quiser nos oferecer.
19. Queremos em conseqüência, e ordenamos, que a este concílio ecumênico, por nós indicado, venham de toda parte todos os nossos diletos filhos cardeais, os veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos e bispos tanto residenciais como apenas titulares e ademais todos os que têm direito e dever de intervir no concílio.
(...)

Dada em Roma, junto a São Pedro, aos 25 de dezembro, festa do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, de 1961, quarto do nosso Pontificado.
Eu, JOÃO, bispo da Igreja católica"

Para ler na íntegra a Humane Salutis: AQUI

sábado, 24 de dezembro de 2011

Vozes e músicas de Natal

Foto: Manuel Vilas Boas
A inspiração veio do deserto, mas hoje vivem no meio das gentes, entre os mais pobres. A fraternidade das Irmãzinhas de Jesus em Chelas (Lisboa) é o tema da reportagem de Manuel Vilas Boas que passou esta manhã na TSF e pode ser ouvida de novo este domingo, dia de Natal, ao meio-dia, ou também aqui.
Ainda este sábado, às 18h (e de novo às 24h e também domingo às 18h), passa outro programa com o melhor som do Natal português. A partir das recolhas de Giacometti e Fernando Lopes-Graça, Alfredo Teixeira faz uma viagem através dos sons do Natal português. O programa ficará disponível esta tarde em  http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=2204458 .
Aqui fica o aperitivo:

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A actualidade de um sermão com 500 anos


Acaba de fazer 500 anos que um frade dominicano, Anton de Montesino (1475 - 1540) proferiu nos inícios do proecsso de conquista e ocupação da América, um sermão em que denunciou de forma contundente o modo como os espanhois tratavam os povos nativos, ditos 'índios'.
Porque o que nos chegou desse sermão bem podia hoje, mutatis mutandis, ser aplicado ao que se continua a passar em tantas partes do mundo, inclusive em Portugal, faz todo o sentido deixar aqui o respectivo texto e o testemunho de um acto de clarividência e, certamente, de coragem (como outros que, como Las Casas ou Vieira, existiram):

Fray Antonio Montesino.jpgPara daros a conocer estas verdades me he subido aquí yo, que soy la voz de Cristo 
en el desierto de esta isla. Y, por tanto, conviene que con atención no cualquiera, sino con todo vuestro corazón y con todos vuestros sentidos, la oigáis; la cual voz os será la más nueva que nunca oísteis, la más áspera y dura y espantable y peligrosa que jamás no pensasteis oír.
Esta voz os dice que todos estáis en pecado mortal y en él vivís y morís por la crueldad y tiranía  que usáis con estas inocentes gentes.
Decid: Con qué derecho y con qué justicia tenéis en tan cruel y horrible servidumbre a estos indios? Con qué autoridad habéis hecho tan detestables guerras a estas gentes, que estaban en sus tierras mansas y pacíficas donde tan infinitas de ellas, con muerte y estragos nunca oídos habéis consumido? Cómo los tenéis tan opresos y fatigados, sin darles de comer ni curarlos en sus enfermedades en que, de los excesivos trabajos que les dais, incurren y se os mueren y, por mejor decir, los matáis por sacar y adquirir  oro cada día?  Y qué cuidado tenéis  de quien los adoctrine  y que conozcan  a su Dios y creador,  sean bautizados, oigan misa, guarden las fiestas y domingos?
Éstos no son hombres? No tienen ánimas racionales? No estáis obligados a amarlos como a vosotros mismos? Esto no entendéis? Esto no sentís? Cómo estáis en tanta profundidad de sueño tan letárgico dormidos? Tened por cierto que en el estado en que estáis no os podéis más salvar que los que carecen y no quieren la fe de Jesucristo.


Fr. Antón de Montesino O.P
21 de dezembro de 1511
(Via: Religion Digital)
Crédito da imagem; Wikipedia; estátua de Frei Antón de Montesino, na cidade de santo Domingo, República Dominicana

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

"Deus Vem a Público - Entrevistas sobre a transcendência"

O facto de o autor ser membro da equipa deste blog (e fica assim feita a competente declaração de interesses) não pode inibir a referência a uma obra que acaba de ser publicada e que é certamente um acontecimento editorial, no seu âmbito. Refiro-me a "Deus Vem a Público: Entrevistas sobre a transcendência", cujo autor é o jornalista do Público e um internacionalmente premiado especialista em assuntos religiosos - António Marujo.
A obra, de quase 500 páginas, reúne aquele que é o primeiro volume de uma série de entrevistas com nomes cimeiros das religiões, da filosofia, da teologia, da cultura, da ciência, da política, da arte ... Entre outros: Abbé Pierre, Aga Khan, Aloísio Lorscheider, Andrea Riccardi, Bronisław Geremek, Dalai Lama, Erri de Luca, Eugen Drewermann, Gianfranco Ravasi, Gianni Vattimo, Godfried Danneels, Hans Küng, Irmão Roger de Taizé, Jacques Arnould, Jacques Gaillot, Jean-Yves Calvez, Johann Baptist Metz, José António Pagola, Joseph Comblin, Jordi Savall, Juan José Tamayo, Juan Masiá, Jürgen Moltmann, Lavinia Byrne, Leonardo Boff, Raimon Panikkar, Rino Fisichella, Timothy Radcliffe.
Muitos destes documentos testemunham sobre o pensamento oficial, sobre a heterodoxia, sobre o olhar original, o testemunho de vida, a busca de sentido. Todos eles se interrogam sobre esse mistério que é Deus, que continua a ocupar e mobilizar energias na nossa contemporaneidade.
Ler o livro é, assim, atravessar universos plurais de surpresa e abrir-se a encontros inesperados. Nestas entrevistas - e transcrevo um excerto da introdução do autor - "se debatem cortinas de dogmas que por vezes tolhem a possibilidade de um debate sério e mais rico sobre muitas das questões que a Deus e à humanidade dizem respeito. Ou revela-se o espantoso empenhamento radical de mulheres e homens na construção de uma «parábola de comunhão» para a casa comum da família humana. Ou ousa-se propor novos horizontes aos modos de olhar.
Esta obra que, juntamente com o segundo volume que se anuncia - bem poderá ser vista como o compêndio de uma carreira com mais de 20 anos a acompanhar o fenómeno religioso no mundo actual - constitui, de algum modo, um desafio a todos, sejam crentes ou não crentes, porque não remete para um qualquer universo esotérico, mas para as grandes e incontornáveis perguntas do nosso viver pessoal e colectivo. desse ponto de vista, é susceptível de abrir horizontes de desanuviamento para um mundo encerrado em si mesmo e carente de chaves para reinventar o futuro.

domingo, 18 de dezembro de 2011

"Deus incarnou: (...) a notícia mais incrível que se pode imaginar", segundo Eduardo Lourenço

Por Eduardo Lourenço

É uma constatação que na nossa época, depois de tantos séculos de vida, vivida globalmente sob o signo da certeza ou das certezas, a partir de uma certeza que as englobava todas e lhes dava sentido, deparámos com algo a que nós abreviadamente ou não abreviadamente chamámos modernidade. Entrámos num período em que muitos pensadores, no interior mesmo dessa esfera que tinha sido a esfera da certeza por excelência, se puseram a discutir a natureza de verdades, sobretudo da verdade que engloba essas verdades. Abriu-se assim a porta a uma época de crise. Agora fala-se muito em crise como se acabássemos de descobrir uma novidade, quando afinal toda a modernidade é já uma época de crise e da crise como uma evidência primeira. Registe-se em todo o caso a obsessão primeira e a prática primeira daqueles que por diversos motivos se desinscrevem em relação a esses discursos que eram discursos de evidência, não só de evidência na ordem racional mas também na ordem existencial, que condicionavam tudo o que nós chamamos as atitudes em todas as ordens, desde a ordem ética à ordem cultural, num sentido geral, e mesmo à ordem social. Todos tinham alguma relação com essa época que nós podemos chamar uma época de organicidade. E de repente, particularmente no Ocidente, dá-se uma viragem. Esta crise poderá também ter existido noutras culturas que conhecemos menos bem, pelo menos eu; é possível que no interior dessas culturas tenha havido movimentos de contestação, de discussão interna. Mas eu creio que não há nenhuma História que nós conhecemos até hoje em que isso se tenha dado com tal profundidade como naquela que nós chamamos a história do Ocidente, em todo este conjunto de verdades, de referências, de valores durante tanto tempo associados ao que designamos de civilização europeia. Não só na sua fase fundadora, aquela que releva do pensamento grego, depois na sua retradução em termos ligeiramente diferentes (até mais diferentes do que as pessoas imaginam) no que nós chamamos a versão romana desses mesmos valores, que condicionam sobretudo a visão e o destino político do que nós chamamos Europa, mas também na sua fase de confrontação com o cristianismo.

E preciso ver que provavelmente a maior de todas as crises não será esta a que nós chamamos a crise da modernidade. Nós, que, entre outras, temos a herança da cultura romana, podemos imaginar a rutura no seio do Império Romano provocada pelo abalo da chegada do que chamamos o cristianismo. O advento do cristianismo foi também um momento de crise, uma crise na perspetiva do futuro. Quer dizer, o cristianismo vai triunfar historicamente, vai impor-se como um conjunto de crenças que são vividas como sendo não só como uma verdade, à maneira grega, da ordem do inteligível, uma verdade filosófica, mas como uma novidade absoluta que punha em causa toda a visão grega e vai ser ela própria, quando triunfar na ordem histórica, na sequência da institucionalização do cristianismo com a vitória de Constantino, o código cultural, religioso, dentro do qual a nossa Europa vai a pouco e pouco entrar.
Estes anos de civilização cristã são ao mesmo tempo um diálogo contínuo com o antigo mundo. Podia não ter acontecido isso. Tenho em mente outras grandes afirmações de crenças orgânicas, como seja o caso do Islão. No Islão nós não encontramos (exceto numa certa fase, induzida por aquilo que se passava no Ocidente) essa espécie de um diálogo contínuo de ter de se confrontar com a ideia de uma verdade que não é exatamente aquela que condiciona e que é a visão própria daquilo que nós chamamos a civilização cristã. Diálogo impossível no tempo anterior a Santo Agostinho. Santo Agostinho teve um papel fantástico na cultura do Ocidente porque ele viveu nos dois mundos. Conheceu os dois mundos.
Mas este diálogo não foi fácil. Que a verdade tenha sido definida por alguém em termos de "Eu sou a verdade, o caminho", é algo impossível de conceber na mente de um grego. Nenhum grego podia conceber isto. A verdade é qualquer coisa que diz respeito a uma evidência, ao conhecimento que nós temos dos objetos naturais, a começar naturalmente pelo físico. Quer dizer, em toda a filosofia antiga, aquilo a que os gregos chamam o divino é sempre uma realidade da ordem natural, aquela que obriga os homens a repensar-se diante desse espírito que é fornecido pelo cosmos e pela admiração e espanto que ele causa, donde nasce a filosofia. Penso que isso vai entrar mais tarde dentro da visão cristã. Mas a visão cristã não é dessa ordem, por mais platónica que ela se torne mais tarde. Santo Agostinho não tem essa preocupação. Ressalvando no entanto que em Santo Agostinho temos o diálogo fundamental que vai condicionar todo um pensamento ocidental, que vai tentar reconciliar com o pensamento filosófico essa certeza. Se bem que essa certeza não é uma certeza da ordem do conhecimento propriamente dito mas que é aquilo que mais tarde os grandes pensadores dessa nova visão, já em época de crise, vão apresentar como sendo da ordem do coração, e não da ordem do Cosmos, da Natureza.
Estou aqui, pois, a falar de certezas diferentes: a certeza antiga e a certeza tal como o cristianismo a vai apresentar, que é uma certeza existencial, que vai ser definida na ótica cultural do Ocidente como sendo do domínio da fé. A fé é um conceito paradoxal. Porque a fé é a mais violenta das certezas ou das evidências.
E por outro lado a fé é igualmente a consciência de que não é evidente segundo a ordem da razão, a consciência de que essas coisas em que se crê, em que, mais do que se crê, se investe a totalidade da vida, constituem a substância das coisas esperadas, esperadas segundo aquela esperança, que está inscrita em qualquer palavra das fundamentais ditas por Jesus Cristo. Pode-se falar de outra fé, a fé budista ou outras, mas não podemos misturar todos os conceitos; a fé é um fenómeno que só tem leitura no interior da nossa vivência religiosa. Pode-se falar de fé num sentido lato, mas então a fé passa a ser uma realidade de ordem psicológica que tenha em conta que qualquer manifestação humana se reporta realmente ao futuro em que nós pomos mais esperança ou menos esperança, em que acreditamos que algo se vai realizar... Mas a fé, tanto quanto penso em função da vivência cristã, é qualquer coisa de outra ordem. A fé, penso eu, é uma graça particular. Não há possibilidade de tratar da fé em termos que não sejam aqueles que são definidos pela mesma vivência e afirmação de fé. Dir-me-ão que será a mesma coisa para um muçulmano. Se eu fosse muçulmano provavelmente eu também acreditava, mas tenho a impressão de que o Alcorão me dá uma visão do que é Deus, mas na verdade essa visão de Deus no Alcorão parece-me ser mais próxima de algum modo da ideia de Deus na antiguidade.
O Deus do Alcorão não dialoga com os homens. Não se faz carne. Não incarnou. Está mais próximo de algum modo da ideia que dele faziam os antigos, desde Aristóteles, do que propriamente da experiência que funda a religião cristã. Eu penso que tudo isto se situa, se vive menos na ordem teórica que na ordem prática. Traduz uma certa maneira de um certo comportamento que unifica todos aqueles que têm essa prática. E não precisam de grandes razões de ordem teológica para justificar aquilo que lhes parece uma evidência fundamental. É mais fácil aceitar um Deus criador e senhor do mundo, que tem uma unidade, que é totalmente transcendente, que tem da parte do mundo que criou, particularmente da humanidade, uma relação de obediência, mas que não é um Deus que veicule a ideia de um amor especial em relação àquilo que criou. Parece um pouco como o Deus bíblico que tem uma proteção especial para com um povo em particular. Há uma ideia de etnicidade nesse tipo de religião. Não é o caso do cristianismo que afirma claramente que Deus incarnou. E isto não é crível humanamente falando. Isto é a notícia mais incrível que se pode imaginar. E é em função dela que se pode dizer "creio", "não creio". E crer nisto é qualquer coisa que responde aos anseios mais profundos da humanidade, mas não é suscetível de demonstração, nem sequer de mostração. É uma coisa que se transmite, como um segredo de família, de uma família nova, que aparece na Terra, de uma nova maneira de ser humano, em que os homens estão sob uma proteção especial de um Deus que cuida efetivamente deles, que não é indiferente ao destino da humanidade. De uma humanidade de cujo destino não estamos afastados, sendo de uma certa maneira, responsáveis pelo próprio destino de Deus.
De maneira que a incerteza faz parte integrante do coração da crença que exige por outro lado que nós tenhamos aquilo que nós chamamos Deus como a coisa mais evidente, mais evidente do que qualquer outra verdade humana mas de um outro género; porque se fosse do mesmo tipo das outras verdades, das verdades que nós podemos efetivamente construir ou desejar ou demonstrar, então nós estaríamos noutro tipo de atitude. Numa atitude diferente desta que nos põe a viver diante de uma crença, de uma religião que é fundada fundamentalmente sobre a confiança na palavra de alguém, de uma palavra diferente de todas as palavras. E é essa palavra e o teor dessa palavra que fundou a sua própria realidade, que a construiu.
Eu sei que Jesus dialoga sobre um fundo, não direi de conceitos, mas de evidências que são aquelas que estão realmente na Bíblia, e que de algum modo ele vai revisitar essas mensagens que estão escritas na Bíblia e dar-lhes uma outra tonalidade. São as mesmas e não são as mesmas. Não são as mesmas porque não desenham atrás dela uma voz, que é uma espécie de comando superior, uma voz de poder infinito.
Desenham uma voz contrária e essa me parece ser a novidade do cristianismo, a voz de um Deus que é não poder, que é contrária àquilo que conceptualmente nós imaginamos como seja esse poder, porque nós próprios humanos desejaríamos ter essa varinha de condão, como uma coisa mágica, que nos permitisse dominar o mundo, construir totalmente a nossa vida, etc. E o que há de espantoso em Jesus, tal como leio o Evangelho, é a visão de um Deus indigente, um Deus que não é só pai dos homens, mas que de algum modo precisa dos homens para por esses mesmos homens ser visto verdadeiramente como um Deus e não como uma força que tem o poder, como nós imaginamos, de converter os objetos, que não dá espaço possível para que o homem se viva como liberdade.
E provavelmente o que há de mais extraordinário no cristianismo é essa coincidência de uma ideia do divino como omnipotente, como todo poderoso, como nós dizemos, e o facto de que a «ação», de Deus é uma «ação» de ter concebido o homem livre, totalmente livre. Parece-me que Deus é o espaço de liberdade que os homens são capazes de conceber como sendo o espaço da única liberdade que merece esse nome. E não o contrário. O Deus cristão não é um ser que manda, que instaurou uma série de imperativos que os homens têm forçosamente que cumprir. A ideia de Deus, tal como o evangelho no-la mostra, é a ideia de um Deus que está, de uma certa maneira, à mercê daquilo mesmo que ele criou, porque somos livres para o poder recusar. Mas provavelmente não era isto que eu queria dizer (risos).
Há dois dias li um texto muito interessante do nosso caríssimo Bento Domingues intitulado assim: "Deus não sabe como se chama". Bem... nós provavelmente é que precisamos de saber como chamá-lo.
A autodefinição que vem no texto sagrado, que se dá como se fosse uma ficção, é a de uma entidade que na ordem linguística, na ordem lógica, se define como uma espécie de tautologia sublime, porque não há outra maneira de se definir. Nós não nos podemos definir assim. Se alguma vez um homem se apresentar como "eu sou quem sou", realmente já está muito próximo do internamento... (risos). Porque a experiência humana que nós temos, quer pessoal quer coletiva, não corresponde a essa autoafirmação.
Mas está escrito na Bíblia: "Eu sou quem sou", o que nos permite subentender um recado: "agora explorai essa revelação". É uma autoafirmação que não é da ordem lógica. Mas nem para essa autoafirmação é necessário recorrer a um conceito que nós chamamos fé. A fé aparece e tem razão de ser num contexto daquilo que para a experiência humana parece totalmente inaceitável. E é totalmente inaceitável numa ordem da razão que nós conhecemos, aquela que é fundadora do Ocidente e nos permite assumir o tipo de evidências a que nós acedemos, a partir daquilo que mais tarde se chamará a ciência, no sentido próprio do termo, lógica na ordem formal. Aparentemente esta afirmação "Eu sou quem sou" que me parece uma afirmação de tipo psicológico, metafísico, se quiserem, parece à primeira vista não ser diferente das visões filosóficas de um Platão, de um Aristóteles, do que é o ser, do que é o não ser.
Estamos aqui dentro daquilo que não é da ordem da fé. Por mais extraordinárias que sejam as reflexões da metafísica ocidental elas não pertencem a esse domínio. Quando S. Paulo, desejoso de ter um público que compreendesse a novidade dessa nova visão que ele tinha tido do que é o santo, o sagrado, o divino propriamente dito, mas um divino de outra ordem, tentando em Atenas criar estratégias face a um ceticismo grego de uma humanidade que, na pluralidade de deuses (algo que não é da ordem do racional mas uma forma de racionalidade que permitia domesticar a experiência humana dessa época) vê numa inscrição dedicada a todos os deuses uma inscrição pequena dedicada "ao Deus desconhecido". E S. Paulo, que é um grande retórico, diz:
"Eu venho pregar esse Deus, que vós desconheceis, vós tendes todos os deuses, mas não tendes esse Deus". Aos gregos que representavam a razão humana mais subtil da cultura do Ocidente diz-lhes: «Vós conheceis tudo mas não tendes esse Deus».
E começa naturalmente a falar dessa nova referência, dessa nova incarnação do divino, de um Deus humano, de um Deus humano em si próprio. Os gregos estavam habituados a lidar com o pensamento de grandes filósofos mas quando S. Paulo anunciou que Jesus ressuscitou, o areópago não se riu, mas os presentes afastaram-se e foram-se embora. O que ele estava dizendo era para eles incrível.
Mas é tão incrível na hora em que ele o disse em Atenas como hoje é incrível. Não temos (e neste aspeto Wittgenstein tinha razão) nem mais meios nem mais espaço do que a linguagem, ela mesma. Porque a linguagem não está à nossa disposição. Nós somos a linguagem que dispõe de nós. Podemos sempre fazer uma inversão na linguagem como fez Tertuliano que disse: "Creio porque é absurdo". Bem... isto é considerado como o máximo da cegueira do ponto de vista humano, ou uma espécie de provocação máxima ou ainda de um mau comportamento do discurso humano. Naquela altura ainda ninguém conhecia uma experiência em termos poético-culturais chamada surrealismo. Dizer "creio porque é absurdo" não era uma graça cultural de que os intelectuais e os poetas têm o segredo. Era qualquer coisa séria. Em última análise nós também não somos os senhores daquilo que nos define no campo da razão. Aquilo que nos distingue na ordem meramente profana de todos os seres que nós conhecemos é o sermos criados assim ou de nos terem inventado assim através da História, mas a razão não está no lugar do Deus que contestamos porque é tão difícil de apreender o que se não pode nomear. A razão é o esforço máximo da inteligência humana de que é capaz para compreender o cosmos em todas as suas dimensões, de compreender o que nós somos e, na medida do possível, tentar desvendar ou antecipar o que nos espera, o nosso destino. Simplesmente, todos nós sabemos (e mesmo se não o soubéssemos, os antigos já o sabiam) que a razão é também outra coisa e que mesmo o homem antigo que vive numa espécie de luminosidade de fundo está confrontado com uma opacidade relativamente ao seu destino.
Impelido pela mais luminosa das suas intenções, o mais sábio dos homens para os gregos, Édipo, o que interrogou a Esfinge, o que se propôs decifrar o mistério sem o qual o homem não é senhor do seu destino, não percebe exatamente qual o seu destino; ele é o decifrador do enigma mas por sua vez, como se fosse realmente personagem de um conto inventado por um Kafka, que ainda não existia, ele cai na armadilha de sua própria luz, da sua própria luminosidade.
Estamos todos nesta condição. Deus está fora dessa ordem, dessa perspetiva, particular e única que é aquela que é criada. E como dizia Kierkegaard, a fé cria o seu próprio objeto. A esse título ela não se pode discutir. Não se pode discutir aquilo que é discutível. Kierkegaard diz que os homens primitivos (qualificativo hoje já um tanto rejeitado), se pedem qualquer coisa ao fetiche ou se querem que esse fetiche intervenha, e se isso faz parte da sua própria pulsão, eles estão a rezar ao Deus verdadeiro. Toda a dificuldade dos incertos do meu género é saber como se distingue o "fetiche" do Deus verdadeiro. E ainda não consegui resolver este problema mas penso que na minha maneira de encarar isto, o único fetiche de que eu me fui desprendendo chama-se efetivamente o "fetiche" da razão. Não cultivando com tanto fervor como devia esse fetiche, só me resta esperar que o não fetiche por excelência, uma outra coisa, de outra ordem, seja mais verdadeiro do que o conjunto das verdades puramente racionais, que são as minhas, de que não abdico, mas que não bastam para aquilo que ele próprio é, em certas horas de todos nós, como algo de propriamente indescritível, incompreensível, quando nós estamos diante de obstáculos que não podem sequer ser nomeados, porque nós não somos capazes de os nomear. Então aparece uma outra nomeação, uma espécie de antinomeação que seria a nomeação verdadeira.
E nessa nomeação verdadeira inscreve-se aquilo que por via racional está mais perto daqueles que vivem essa relação com a verdade em que a fé tradicional realmente é vivida. E esta é por enquanto a "prière" dum incerto e não a "antiprière" dum autor que foi para nós no Ocidente, nomeadamente para a cultura portuguesa, na 2ª metade do séc. XIX, um autor que perturbou o discurso católico tradicional chamado Ernesto Renan, "A oração da Acrópole".
Eu não tenho categoria para estar na acrópole e entre as duas acrópoles, a de S. Paulo e a de Renan, ainda me inclino hoje mais para a de S. Paulo que para a de Renan.

Eduardo Lourenço
"A Demanda no Mundo da Incerteza" in Reflexão Cristã, nn 37-38-39 (2011) (Revista do Centro de Reflexão Cristã) (via site da Pastoral Nacional da Cultura)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"O homem prende-se a muitas coisas inúteis"

"O homem prende-se a muitas coisas inúteis: riqueza, ambição, interesses mesquinhos: vive emaranhado numa teia. De forma que não tem tempo de ver, nem de ouvir, nem de se conhecer. Quantas criaturas existem que nunca olharam para o céu? Natureza, árvores, montes, rios, esse pélago que vejo do meu quarto deixa-os indiferentes, as horas de preguiça e de sonho deixam-os indiferentes. Nunca tiveram tempo para amar as coisas simples e grandes da vida. O que é eterno não o viveram. Alguns morrem sem terem reparado que existiram. (...) Habituar-se a gente a viver com ideias simples é como habituar-se a andar com fatos velhos e rotos. Indigna os outros. De forma que tem de se viver arredado.
Para se ser feliz na vida é preciso ser-se pobre. Sentir-se que o pão que se come não é tirado a nenhuma boca, nem o lume que nos aquece roubado a alguma velhice friorenta. As coisas desprezadas são as melhores da vida: a paz, as horas esquecidas, a água desnevada que se bebe, os minutos de silêncio em que se sente Deus connosco. De que serve acumular ódios, ambições, riquezas? Não é isto demais para uma vida terrena? A vida artificial é que transformou o homem. Da vida artificial é que nasceu o orgulho, a ambição, os erros, o crime, e até a piedade. Se todos vivêssemos da verdadeira existência, o homem seria feliz. Como se pode redimir tudo isto? Pregando o Amor. Só o Amor nos pode ainda salvar." Raul Brandão, Os Pobres [nos 81 anos da sua morte, que hoje ocorrem] (Obrigado, Helena Teixeira da Silva)

domingo, 4 de dezembro de 2011

A memória no feminino ­- Uma evocação de Maria de Lourdes Pintasilgo


Mulher ímpar na sociedade portuguesa das últimas décadas, mulher das cidades futuras como lhe chamou o título de um livro que recolhe depoimentos sobre a sua personalidade, Maria de Lourdes Pintasilgo é evocada nesta segunda-feira na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).
A iniciativa encerra o ciclo "A memória no feminino", promovido pela SPA e pela Associação Abril. A sessão decorre a partir das 18h30 e conta com a participação de Alfreda Fonseca, Luísa Beltrão (autora de uma biografia de Pintasilgo) e Maria do Loreto Paiva Couceiro.
O auditório da SPA fica na Av. Duque de Loulé, 31, em Lisboa. 

Elites Católicas em Portugal


Elites católicas em Portugal: o Papel da Acção Católica (1940-1961) é o título do livro, da autoria de Paulo F. de Oliveira Fontes que será apresentado esta segunda-feira, dia 5 de Dezembro, a partir das 18h15, no Auditório 2 (Edifício Antigo), da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa. Na sessão, intervêm os historiadores D. Manuel Clemente e Luís Salgado de Matos.
O livro resulta da tese de doutoramento do investigador do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), da UCP. Nele se analisa a evolução dos movimentos da Acção Católica numa época de reconfiguração do regime político ditatorial que dominava em Portugal e em que a própria Igreja Católica preparava mudanças no seu interior - o Concílio Vaticano II, do qual se assinalam em 2012 os 50 anos do início, estava já em andamento nos últimos anos a que o estudo de Paulo Fontes se refere.
Mais informação sobre o CEHR pode encontrar-se aqui.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

José Augusto Mourão evocado em Lisboa

Neste sábado, dia 3, às 17h, decorre em Lisboa uma evocação da vida, personalidade e obra de frei José Augusto Mourão. Músico, poeta, professor, tradutor de Proust, um dos introdutores da semiótica em Portugal e referência nesta área de estudos, José Augusto Mourão morreu em Maio e era frade dominicano. Homem despojado, queria “net-monges” para os tempos de hoje e olhava a estética como central para a experiência cristã contemporânea.
Num dos textos de A Palavra e o Espelho (ed. Paulinas), escrevia ele: “A vida tornou-se texto a partir do meu corpo. Já sou texto. A História, o amor, a violência, o tempo, o trabalho, o desejo, inscrevem-se no meu corpo.”
A sessão evocativa decorre na Igreja do Convento dos Cardaes (Rua do Século, 123, em Lisboa). Participam, entre outros, frei José Carlos Lopes Almeida, Moisés Martins e José Bragança de Miranda.
No final, haverá um concerto homenageando a música de frei Mourão, já que essa foi também uma faceta imprescindível do seu labor criativo.
Aqui podem ler-se mais informações.

Os 75 anos de existência da LOC e a actualidade