domingo, 26 de dezembro de 2004

[Natal]

Que palavras poderei buscar para vos aquentar o coração? Um santo, no sermão desta festa, bradava: ? Oh! que nenhumas palavras acho com que possa falar da Palavra Eterna e Verbo Encarnado! Assim eu também não vos sei declarar o que havemos de sentir deste suavíssimo Nascimento. Porém, quero-vos pôr uma comparação. Se houvesse muitos anos que o sol não nasceu nem apareceu nas terras, e estivéssemos todos não somente às escuras e em espessas trevas mas também carregados de ferro, tremendo com frio e em suma tristeza, e, estando assim, subitamente nascesse o sol mui resplandecente, alumiando-nos, aquentando-nos, quebrando nossas cadeias e prisões, que vos parece quão grande alegria e consolação seria a nossa?

Pois, irmãos, tais éramos, espiritualmente, antes que nascesse o sol que hoje nasceu e veio alumiar as trevas e cegueira de nossa alma; veio aquentar a frieza de nosso coração, o qual estava feito um regelo no amor de Deus e das cousas eternas; veio quebrar as cadeias de nossos pecados. (...)

As maravilhas desta clara noite excedem todas quantas viram os antigos Servos de Deus: porque, como diz um Santo, os nossos padres antigos muitas e grandes maravilhas de Deus viram. O Céu lhes orvalhou manjar de Anjos para seu mantimento. O Mar Roxo se lhes abriu em carreiras para que pudessem passar a pé enxuto. O rio Jordão se retirou para a fonte donde nascia para lhes dar livre passagem. Os muros fortíssimos da cidade de Jericó caíram subitamente a som de trombeta. O Sol se deteve no Céu por um grande espaço sem se mover, para que o povo de Deus, que pelejava contra seus inimigos, acabasse de os destruir. Estas e outras maravilhas viram: mas não lhes foi dado ver a verdadeira Luz Eterna, coberta com a nuvenzinha de carne de menino e posta em um presépio por amor de nós.

Bartolomeu dos Mártires
[extracto do Catecismo distribuído no sínodo bracarense de Novembro de 1564. in Antologia de Espirituais Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional ? Casa da Moeda, 1994]
=brigado ao Eduardo Jorge, pela descoberta.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

A experiência de Taizé

Luís Sousa Lobo
Engenheiro. Ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa

OPapa João Paulo II, quando visitou Taizé, deixou uma imagem «Passa-se por Taizé como por uma fonte. O viajante pára, mata a sede e prossegue a viagem». Mas o que há afinal de especial nessa comunidade, localizada numa pequeníssima aldeia da Borgonha, que desafia a lógica urbana e o ritmo trepidante da civilização moderna? Porque é que tantos jovens, ano após ano, década após década, geração após geração, continuam aos milhares a acorrer a Taizé, para uma semana de reflexão e vida em comum? E porque virão a Lisboa dentro de dias 40 mil jovens de toda a Europa, respondendo ao apelo da Comunidade de Taizé, para o Encontro Europeu?
Não é fácil responder em poucas palavras, mas vou procurar dar a minha explicação, de maneira sintética, recorrendo, por comodidade, a palavras-chave.
Acolhimento, sem proselitismo. Em Taizé há um sentido de acolhimento e de respeito pelos visitantes. Não há proselitismo; ninguém está a aproveitar para doutrinar. Pelo contrário, logo à chegada, são os visitantes que indicam o programa que querem escolher para marcar o ritmo dos seus dias em Taizé, que pode ir desde a participação em grupos de discussão, estudos bíblicos, encontros intercontinentais até ao retiro pessoal em silêncio. Neste caso podem pedir um acompanhamento de um irmão. Mas o programa é livre.
O único traço comum dos programas são os três momentos de oração em comum, de manhã, ao meio-dia e à noite. Mas também aí há, sobretudo, o apelo à reflexão pessoal - não há grandes homilias ou discursos apologéticos. Não faz parte da cultura de Taizé. O acolhimento em Taizé significa, sobretudo, um grande respeito por cada pessoa, pelo seu percurso de vida. Lançam-se pistas de reflexão, não se dão respostas, mas há uma grande disponibilidade para ajudar a encontrar respostas para cada um. É isto que observo sempre que visito Taizé e que acho o traço principal da sua cultura de acolhimento.
Sobriedade, bom gosto com simplicidade. Ao longo dos anos o espaço público em Taizé foi-se alargando e adaptando ao número crescente de visitantes. Hoje em dia, nas épocas altas (Páscoa e meses de Verão), os visitantes atingem os 6000 em cada semana, com chegada habitual ao domingo à tarde e partida no domingo seguinte pela manhã. Em Taizé, dentro e fora das casas, tudo é bonito e simples. Há uma harmonia que sabe bem. Na loja podem comprar-se lembranças de arte, de música, de peças de uso doméstico ou livros, em que o estilo simples de Taizé se reconhece em tudo. A comunidade não aceita doações nem heranças, e é com esta actividade que equilibra o orçamento.
Organização eficiente, mas quase invisível. Como é possível juntar 30 ou 40 mil jovens durante cinco dias numa cidade europeia sempre diferente, ou 6000 jovens com rotação semanal em Taizé, sem uma logística pesada e cara? O segredo é uma organização que se foi apurando ao longo dos anos, com a intermediação de voluntários, jovens que, em geral no final dos seus estudos, dão um tempo da sua vida para ajudar os outros através do acolhimento que se vive em Taizé. Além disso, entre cada revoada de visitantes, muitos jovens disponibilizam-se, enquadrados pelos referidos voluntários, para executarem as tarefas de apoio indispensáveis nas estruturas de alimentação, limpeza, apoio médico, etc. Esta capacidade de auto-organização fica em segundo plano, quase invisível, mas as condições de acolhimento e de apoio de todos ficam asseguradas. Tudo anda sobre rodas.
Ecumenismo prático, discreto. O sentido ecuménico é central nesta comunidade, pois constituiu o principal elemento motor para o fundador, o Irmão Roger, e o grupo que no final dos anos 40 se lhe juntou. Este ecumenismo surpreende os que põem ênfase nas diferenças entre as Igrejas cristãs. Os irmãos acabam por falar pouco de «ecumenismo», palavra talvez demasiado técnica, pondo o acento sobre a busca de caminhos de compreensão e de reconciliação nos locais onde cada um vive.
Os irmãos vêm de tradições cristãs diferentes, mas fazem os mesmos votos. Os visitantes pertencem também a tradições cristãs diferentes, ou a nenhuma, mas juntam-se com naturalidade na mesma liturgia, nas mesmas orações. Em Taizé fica óbvio que o que une as Igrejas cristãs é muitíssimo maior do que o que as divide. Ainda que o pouco que divide seja tantas vezes o que é «posto na lapela» como marca distintiva. Mas esse «clubismo» em Taizé quase desaparece. O estilo dos cânticos, a presença dos ícones, o apelo aos traços mais profundos da espiritualidade cristã constituem em Taizé uma plataforma em que todos os cristãos se sentem à-vontade - certamente com algum depuramento em relação às fórmulas a que estarão habituados. Mas essa é uma roupagem a que todos se adaptam sem dificuldades, e que acentua o sentido de universalidade e a esperança de mais paz para a Humanidade.
Sentido de Deus pelo silêncio interior. A busca de Deus ou do sentido da vida, em Taizé, é marcadamente pessoal, apesar de transparecer que a fé não é individualista, é para ser vivida com outros. Há, contudo, um grande respeito pelo outro, não havendo grandes sensacionalismos ou emoções públicas. Tudo se passa no silêncio e no coração de cada um. A liturgia e o lugar ajudam. Tudo simples e despojado. Cânticos simples e repetitivos, um pouco ao gosto das Igrejas orientais, que ajudam à reflexão interior, intercalados por períodos de silêncio longos, com durações impensáveis em qualquer das nossas celebrações - mas que é um elemento essencial no ritmo de Taizé. A procura de Deus e do sentido da vida faz-se no encontro de cada um consigo próprio, na reflexão e no silêncio, e nos encontros na partilha, na entreajuda, na descoberta de outras culturas, de outras vocações, de outras realidades. Com disponibilidade para ouvir, compreender, descobrir.
É talvez por tudo isto que, em muitas universidades nos EUA e diversos outros países, os jovens usam as «noites de oração» ao estilo de Taizé como a forma conveniente para trazer ao gosto pela vida interior os jovens que o desejem. A minha avaliação é que o espírito da Comunidade de Taizé vai muito para além da sua raiz ecuménica. Dá um exemplo da busca do sentido da vida, neste caso na perspectiva cristã, de uma forma em que o fanatismo não só não está presente como perde o sentido. A esperança no futuro e a paz encontraram em Taizé uma linguagem bastante universal.
Esta é uma contribuição inestimável no mundo de hoje. Entre os irmãos há ingleses e alemães, mas também indianos e coreanos. Há norte-americanos e canadianos, mas também dois portugueses. Estão lá presentes, a todo o tempo, os problemas do mundo. E a visão do mundo que Taizé transmite é uma visão solidária, de paz e de esperança.
Se a esperança é a marca da juventude, percebe-se porque é que tantos, sobretudo jovens, vão a Taizé «como se vai a uma fonte para matar a sede e prosseguir a caminhada».
Não sei se o meu retrato de Taizé ficou muito incompleto, esquemático ou redutor. O melhor mesmo, para quem não conheça, é experimentar. E a partir do próximo dia 28, durante cinco dias, Taizé está connosco em Lisboa - uma oportunidade rara.

In Diário de Notícias, 21.12.2004

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

...but so quickly

"Sometimes, there is God. But so quickly"
Blanche DuBois na peça de Tennessee Williams "A Streetcar Named Desire", da única vez que lhe parece acontecer uma coisa boa.
Cit por João Bénard da Costa, in Público, 17.12.2004

segunda-feira, 8 de novembro de 2004

A iniciativa das tradições e Religiões unidas propõe:

O Manifesto da Unidade na Diversidade
? Ética e espiritualidade das tradições e religiões

de paz e de justiça

Paz, Igualdade, Solidariedade



PREÂMBULO

Este Manifesto[1] parte dos valores éticos e espirituais fundamentais e universais para expor, em doze pontos, uma visão de unidade na diversidade das tradições e religiões de paz e de justiça.

. A sua visão simples, coerente e concisa permite a qualquer pessoa de boa vontade, a ele aderir, seja ela agnóstica[2] ou crente.

? O Manifesto desenvolve a divisa e a máxima da Europa e inscreve-se directamente nos trabalhos de « Uma Alma para a Europa?ética e espiritualidade? »[3].

? As suas bases permitem construir uma eco-cidadania de harmonia, de não-violência e de responsabilidade universal para uma sociedade de solidariedade e de cooperação.

? Os pontos desenvolvidos pelo Manifesto são fundamentais na educação para uma cultura de paz e de não-violência tal como a propõe a Unesco, a Onu, e numerosas organizações do diálogo inter-religioso.

? Pode favorecer o diálogo inter-tradições e inter-religioso expressando um denominador comum a todas as tradições de paz e de justiça.

? A sua simplicidade pode ser útil como utensílio de comunicação mediática e pode ter um impacto significativo nos dirigentes religiosos, nas instituições e nos sistemas educativos.

? Pode favorecer a emergência de uma rede de dirigentes éticos e espirituais partilhando uma mesma perspectiva de unidade na diversisdade.

? Pode ser um paradigma a integrar na constituição de Estados de paz e de justiça.

? O reconhecimento dos seus princípios é também a condição sine qua non para que as religiões não sejam factores de enclausuramento identitários e finalmente de guerras.
O Manifesto da Unidade na Diversidade
das tradições e religiões de paz e de justiça


Nós, representantes de tradições et religiões aspirando à paz e à justiça [4], à harmonia e à não-violência, signatários do presente manifesto, reconhecemos :

1) A realidade de uma dimensão fundamental e universal da ética.

2) A realidade de uma dimensão fundamental e universal da espiritualidade.

3) A unidade na diversidade das tradições de paz e de justiça.

4) A diversidade e o pluralismo como uma riqueza.

5) Os fundamentos universais da ética e da espiritualidade como base de uma atitude respeitosa dos direitos e deveres do ser humano.

Reconhecemos também:

6) A necessidade de uma igualdade de direitos e de dignidade nas relações intertradicionais e religiosas.

7) A necessidade de um compromisso total com a sua tradição ou religião.

8) A necessidade de um diálogo intertradições ou inter-religioso profundo.

9) A necessidade da comunicação e da educação sobre o tema da unidade na diversidade.

10) A necessidade de uma cooperação intertradicional e religiosa em vez da competição de tradições e religiões.

11) A necessidade de promover um Estado garante da unidade na diversidade das tradições e religiões de paz e de justiça.

12) A utilidade de uma Rede Mundial de Dirigentes Tradicionais e Religiosos como lugar e instrumento desta cooperação e solidariedade numa perspectiva de unidade na diversidade.


Mais precisamente :

1) Reconhecemos como regra de ouro a realidade de uma dimensão fundamental e universal da ética.
Todas as tradições e religiões de paz e de justiça têm fundamentalmente uma mesma dimensão ética que se resume na regra de ouro que se enuncia : « Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti».[5]

2) Reconhecemos no Absoluto, Deus e/ou a compreensão do que eu sou, a realidade de uma dimensão fundamental e universal da espiritualidade.
Todas as tradições e religiões de paz e de justiça partilham também uma dimensão espiritual fundamental e universal, que se resume ao reconhecimento, à experiência e à compreensão de uma presença do Absoluto, de Deus ou do Ser supremo compreendido como fundamentalmente intemporal e omnipresente, transcendendo os nomes e as formas que lhe podem ser atribuídos. A dimensão universal da espiritualidade pode também resumir-se no adágio socrático : « conhece-te a ti mesmo».

3) Reconhecemos a unidade da experiência ética e espiritual na diversidade de expressão das tradições e religiões de paz e de justiça.
A dimensão universal da experiência ética e espiritual[6] é o espaço da unidade ou da convergência fundamental das tradições ou religiões de paz e de justiça. As expressões particulares desta unidade fundamental e universal são a diversidade destas tradições ou religiões. Esta diversidade de expressão corresponde a receptividades, mentalidades e sensibilidades variadas, dos diferentes seres humanos, na multiplicidade das suas matrizes sociolinguísticas.

4) Reconhecemos a diversidade e o pluralismo como uma riqueza.
A diversidade das formas e expressões particulares utilizadas pelas diferentes tradições e religiões de paz e de justiça[7] deve ser considerada, para além da simples atitude de tolerância, como uma riqueza da expressão dos poderes ilimitados do absoluto e do património ético e espiritual da humanidade.

5) Reconhecmos os fundamentos universais da ética e da espiritualidade como base de uma atitude respeitadora dos direitos e deveres dos seres humanos.
Os fundamentos da ética e da espiritualidade, universais e não confessionais, tais como os acima mencionados, são os fundamentos de uma atitude respeitadora dos direitos e deveres do ser humano[8] numa perspectiva de responsabilidade universal[9].


E também:

6) Reconhecemos a necessidade de uma igualdade de direitos e de dignidade nas relações entre tradições e religiões.
A formulação e a prática de uma «personalidade tradicional ou religiosa» análoga à «personalidade moral» considera todas as tradições e religiões de paz e justiça iguais em direitos, em deveres e em dignidade [10].

7) Reconhecemos a necessidade de um compromisso total com a sua própria tradição/religião.
Na igualdade de direitos, de deveres e de dignidade das tradições e religiões de paz e de justiça[11], um total compromisso, enquanto discípulo da disciplina da sua tradição/religião, com as suas percepções, práticas, regras e preceitos é necessário para a progressão : a transformação pessoal, a salvação ou realização dos seus membros; assim como para evitar confusões que o sincretismo ou o concordismo podem produzir.12

8) Reconhecemos a necessidade de um diálogo intertradições/ inter-religioso profundo.
O diálogo, quer entre tradições quer entre religiões é, na sua dimensão profunda, o meio de desenvolver a compreensão autêntica da unidade na diversidade; e, no seu contexto, de reconhecer as diferenças como riqueza. Assim se promovem o respeito e a apreciação mútuos e totais das tradições e religiões de paz e de justiça.

9) Reconhecemos a necessidade da comunicação e da educação para a unidade na diversidade.
A comunicação e a educação são os meios para desenvolver a compreensão verdadeira da unidade na diversidade e promover os seus valores. Cada tradição e religião deveria realizá-lo localmente junto dos seus praticantes contribuindo assim para o desenvolvimento da paz e da justiça globais13.

10) Reconhecemos a necessidade de uma cooperação inter tradições/religiões em vez da competição entre tradições/religiões.

Na base dos diferentes pontos acima expressos, as tradições e religiões de paz e de justiça podem trabalhar em sinergia e cooperar entre elas, mais do que entrar em competição. Nesta solidariedade podem unir as suas forças para desenvolver paz e justiça e assim fazer face aos numerosos desafios do mundo contemporâneo, em particular o ecológico.

11) Reconhecemos a necessidade de promover um Estado garante de uma verdadeira unidade na diversidade tal como é definida no presente Manifesto.
É necessário que a política reconheça as tradições éticas e espirituais de paz e de justiça e que um estado agnóstico, ou laico, seja garante da unidade na diversidade, das tradições/religiões tal como está expressa no presente Manifesto.

12) A utilidade de uma Rede Mundial de Dirigentes Tradicionais/Religiosos como lugar e instrumento desta cooperação e solidariedade (numa perspectiva de unidade na diversidade).
A Rede Mundial da Unidade na Diversidade, das Traditções et Religiões de paz e de justiça é uma rede informal de dirigentes ou representantes das diferentes tradições éticas e espirituais e das religiões de paz e de justiça.
A Rede reúne assim todos os praticantes destas tradições e religiões que aderem ao Manifesto.
A Rede é constituída pelos signatários do presente Manifesto e pode, a partir das consultas dos seus membros e das suas visões convergentes, falar em conformidade com os princípios do presente Manifesto para o bem de todos.
Os comentários e achegas desta Rede Mundial seriam preciosos para desenvolver a paz, a justiça e o que é benéfico para todos. Poderiam também servir para denunciar e desencorajar as más utilizações da religião e os excessos de todos os extremos.
A Rede é também o lugar de celebração da solidariedade e da diversidade na unidade.


Cólofon:

A inspiração deste Manifesto remonta às origens da tradição de Buddha e da sua visão Rimay, universalista. Foi inspirado por trinta anos de diálogo inter religioso, no mundo, na Europa e no Instituto Karma Ling e pela participação de Lama Denys, o seu compilador na dinâmica de « Uma Alma para a Europa?ética e espiritualidade». O seu texto foi escrito à Beekman Tower Residence, Baie de la Tortue, Manhattan, New-York, em 22 de Maio de 2003 após a conferência organizada na sede das Nações Unidas pelo World Council of Religious Leaders (Conselho Mundial dos Dirigentes Religiosos). O texto e a sua tradução francesa foram finalizados na semana seguinte na sede do Shanga Rimay : O Instituto Karma Ling, na Savoie em França, UE. Foi apresentado no Encontro Islam-Dharma que teve lugar no Instituto Karma Ling em 7, 8, 9 de Junho de 2003 e foi ligeiramente modificado nessa ocasião. Em seguida foi apresentado no forum « Choc des Civilisations ou Rencontre des Cultures » que teve lugar a 12 e 13 de junho 2003 em Martigny, Suíça.


Considere-se livre de utilizar este manifesto a seu bel-prazer, apropie-se dele em desapropriação, não se trata de um Manifesto de uma pessoa ou de um grupo de pessoas mas sim dos seus signatários. (Está livre de copyrights, é «copyleft / copyfree / freecopy »).

Todos os comentários ou sugestões, para melhorar ou continuar esta iniciativa, são muito benvindos e cordialmente encorajados.


Que tudo seja propício.


Mail : lamadenys@rimay.net

[1] Ver o cólofon sobre as origens deste Manifesto.

[2] O Manifesto pode convir a um «agnóstico humanista » que siga uma tradição ética e espiritual ou a um teísta ou a um monoteísta, ou a um «teísta crente». Entendendo-se agnóstico como «não dependendo de uma crença» ou «não reconhecendo um enunciado literal, qualquer que ele seja, como expressão definitiva da realidade». O teísta utiliza o conceito de Deus para o absoluto e geralmente considera a crença em Deus como um acto de fé.

[3] «Uma Alma para a Europa ? ética e espiritualidade? » foi iniciada por Jacques Delors, Antigo Presidente da Comissão Europeia e está ligada à sua célula de prospecção. O seu princípio fundador é que a Europa não se construirá simplesmente sobre as bases de um mercado e que é necessário dar-lhe uma alma, ou um coração, ético e espiritual, numa perspectiva de unidade na diversidade.
[4] Dizemos que uma tradição ou uma religião é de paz ou de justiça quando ela ensina e pratica a paz e a justiça, e igualmente a harmonia e a não-violência.
[5] Esta regra de ouro tem um alcance universal e todas as tradições e religiões a reconhecem. É um princípio de não-violência, de respeito pelo outro enquanto seu semelhante, um princípio de amor e de compaixão, base de toda a ética de paz e de justiça, e de todas as regras que daí decorrem.

[6] Tal como foi definida nos pontos 1. e 2.

[7] Compreendendo a unidade na diversidade tal como está expressa no ponto 3.

[8] Ver a Declaração Universal dos Direitos e dos Deveres do Homem.

[9] Esta noção pode exprimir-se em termos de eco-cidadania.
[10] Na inteligência da unidade na diversidade e do pluralismo como uma riqueza, tal como foram acima definidas, é necessário que as relações entre tradições e religiões de paz e de justiça sejam fundadas sobre uma igualdade de direitos e de dignidade que pode exprimir-se e operar-se pela formulação e prática de uma « personalidade tradicional ou religiosa », análoga à personalidade moral.

[11] Tal como está expressa no ponto 5.

12 NB : Verifica-se na prática que uma compreensão autêntica da unidade na diversidade e dos seus desenvolvimentos tal como foram apresentados no Manifesto reforçam o compromisso pessoal de cada praticante com a sua própria tradição/religião; (e) isto, aprofundando a sua compreensão e a sua experiência.

terça-feira, 2 de novembro de 2004

Geração Doente

Por GRAÇA FRANCO
PÚBLICO, 01 de Novembro de 2004

A "Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.

A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.

Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".

Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.

Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.

Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.

Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".

Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...

"Jamais vu!"

Entre a esquerda libertária e a direita libertina só não digo venha o diabo e escolha porque, por princípio, não gosto de lhe conceder qualquer direito. Em comum, elas têm um pensamento intolerante e único em matérias morais (ou imorais) que, no mínimo, começa a tornar-se irritante. Pensar o contrário deixou de ser reprovável e improvável para passar a ser "impossível".

Fora das duas correntes e com a agravante de não me identificar nem com a direita liberal, nem com a esquerda clássica, vejo-me entre os "opinion makers" da praça como uma espécie de raridade em vias de extinção. Teria a vantagem de me colocar ao abrigo do risco do "déjà vu", não fosse transformar as minhas humildes opiniões em sérias candidatas à classificação de "jamais vu".

Não é que eu posso mesmo, e sem "corar", responder ao repto aqui lançado pelo professor Prado Coelho (a que sempre me habituei a respeitar a óbvia superioridade intelectual), informando-o que nem todos os católicos apostólicos romanos vivem a respectiva religião envergonhadamente e "à la carte". Ou seja, que faço parte daqueles milhões que tenta viver em consonância com o Vaticano, sem que tenhamos de suportar o insulto de ultraconservadores reaccionários. Que fique claro: em Itália nunca votaria no senhor Buttiglione, nem no seu partido, nem no seu Governo. Não partilho muitas das suas ideias sobre a família (que extravasam em muito as posições da Igreja) ou sobre a imigração. No Parlamento Europeu raramente votaria com ele e talvez até votasse frequentemente contra ele mas, porque ambos partilhamos a mesma noção de pecado, fico a saber que, como ele, jamais poderei ser comissária. Paciência, adeus regresso a Bruxelas.

E o meu "pecado" incapacitante parece ser o de, como muitos outros, seguirmos a doutrina de João Paulo II, tanto na condenação firme da guerra preventiva (com a consequente oposição à actual política norte-americana), como na opção preferencial pelos pobres (com a defesa acérrima de uma maior justiça social) - dois pontos que regra geral agradam à esquerda e a direita gosta de omitir -, como nas questões morais que vivemos com maior ou menor dificuldade dada a condição de simples pecadores. Mas, enfim, vivemos, pregamos e publicamente defendemos.

Coisas tão fora de moda como o apelo à vida casta dos solteiros, ou dos homossexuais e divorciados com anterior casamento católico (porque para os católicos o matrimónio é indissolúvel). Isso não significa perseguir ninguém, nem desrespeitar a sua escolha, ainda que decidam viver pública e assumidamente em situações que a Igreja identifica claramente como situações "de pecado". Não se trata de perseguir os homossexuais, pactuar com a sua discriminação, atentar contra a sua dignidade, privá-los dos seus direitos, como não significa marginalizar os recasados ou criminalizar o adultério. Dá para entender? Pelo contrário, o próprio Cristo impediu a lapidação (era a pena de então, numa sociedade que ironicamente autorizava o divórcio) da mulher adúltera, mandando-a em paz com esta simples advertência: "vai e não voltes a pecar". Bem podia ter-lhe dito: "vai que isso não é mais pecado", segundo a minha nova lei. Não disse. Como não o disse à Samaritana, casada pela quinta vez e a viver em união de facto com um homem casado com outra. Há dois mil anos a vida sentimental não era muito mais tranquila do que a actual. É esse Cristo que Paulo pregou, com escândalo, a uma sociedade onde a homossexualidade era tão ou mais comum do que na actual, que continua a escandalizar-nos com as suas propostas radicais. Um Cristo a exigir loucuras de fé.

Intriga-me apenas que quem tem as maiores dúvidas sobre a própria existência de Deus, como Eduardo Prado Coelho, possa ter tão profundas certezas sobre quais os comportamentos que O ofendem ou não (é isso que significa pecado, ofensa a Deus). Eu não tive nenhuma revelação divina. À falta de fonte mais segura, para tentar evitar ofendê-Lo, sigo as instruções do magistério. Todos os meus amigos homossexuais sabem como penso e há mesmo alguns que pensam como eu. Os meus amigos que vivem em adultério (e são muitos mais!), também. Somos todos pecadores de variadíssimos pecados, mas isso não nos deve impedir a todos de ambicionar a santidade. E ela é possível. Hoje celebra-se a sua vitória no Céu e na terra. É porque os Santos existem que hoje é feriado. Sabiam? Não costumo fazer destas crónicas palco de apostolado (deixo a minha catequese para outros "fora"). Aqui não acho próprio. Mas o meu silêncio perante o repto do professor soava a cobardia. E não gosto de cobardes.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Conservadores e progressistas

From Homer to Hip-Hop
The Jesuit scholar Walter Ong studied the evolution of human consciousness via the history of communication.
by Jeet Heer

"(...) In their evolving attitudes toward popular culture, the McLuhan circle anticipated dramatic changes within Catholicism. The middle decades of the 20th century were an exciting time to be a Catholic intellectual?Vatican II was gestating, but there was great uncertainty as to how the church should deal with the modern world. Thoughtful Catholics felt the competing tug of tradition and change.
Some Catholics wanted their church to pull up the drawbridges and prepare for a long siege against a hostile world. Others pressed the church to embrace modernity indiscriminately. Perhaps the glory of McLuhan and his circle was that they avoided the temptations of these competing positions: they went in for neither the recriminatory nostalgia of the conservatives nor the faddish novelty-seeking of the progressives. Rather, they wrote as open-minded analysts, trying to figure out exactly why the modern world was changing and what could be held on to and even recovered in a turbulent era.(...)"

sábado, 16 de outubro de 2004

Os novos donos da verdade

"(...) o italiano Rocco Buttiglione vê o seu nome vetado para comissário europeu não por causa daquilo que defende do ponto de vista legislativo mas sim pelas suas convicções religiosas. Se recuássemos algumas décadas, Rocco Buttiglione seria provavelmente interrogado não sobre o casamento e a homossexualidade - que era então unanimemente considerada à esquerda e à direita como um comportamento censurável quando não criminoso - mas sobre o que pensava da origem da vida, matéria que deu azo a enormes polémicas entre católicos e ateus e levou a que convicções religiosas e espírito científico fossem considerados incompatíveis. Cada época selecciona quem está disposta a calar e a apagar. Geralmente essa escolha faz-se em nome do bem comum. Às vezes, até se faz em nome da liberdade.

Helena Matos, Público, 16.10.2004

Liberdade, Tolerância e Os Novos Donos da Verdade

Rocco Buttiglione e um professor de filosofia conhecido tanto pela sua fina inteligência como por ser um católico devoto e próximo do Papa. Como católico tem, naturalmente, as suas convicções. Acredita, por exemplo, que a homossexualidade é imoral e constitui um "pecado". E, como homem culto, conhece a origem da palavra "matrimónio", que traduz o conceito de um contrato que visa proteger a mulher e os seus filhos, implicando obrigações para os maridos.
Uma parte disto são convicções pessoais, outra é conhecimento da história. No entanto quando Rocco Buttiglione as assumiu publicamente como membro designado da futura comissão europeia presidida por Durão Barroso com a pasta da Justiça e dos Assuntos Internos, a esquerda reagiu indignada, com destaque para os socialistas Josep Borrell (Espanha) e António Costa, para quem um ex-membro do gabinete de Berlusconi nunca poderá assumir tal pasta.
Na verdade, por muito detestável que se possa considerar o actual Governo italiano, ele existe porque os partidos que o formam ganharam as eleições. Logo tem legitimidade para, no quadro das actuais regras europeias, nomear para a Comissão Europeia quem entender e não quem for preferido pelos que perderam as eleições. São essas as regras do jogo nos nossos sistemas democráticos que, mesmo imperfeitos, dispõem de sistemas de pesos e contrapesos suficientes para os fazerem funcionar.
Para isso, no entanto, é necessário que, para além de se respeitarem as regras, se respeitem as opiniões dos outros. E, por muito que isso custe ao senhor Borrell, as opiniões sobre moralidade de Buttiglione não valem menos do que as suas. Já a sua atitude tolerante contrasta pela positiva em relação à intolerância do socialista espanhol.
Porquê? Pela simples razão que Buttiglione, sem abdicar das suas convicções, não pretende impô-las aos que delas discordam. Basta notar no que disse perante a Comissão que, pomposamente, chumbou o seu nome (um chumbo não vinculativo): primeiro, explicou que sabia "distinguir entre moralidade e lei", o que implica que "muitas coisas podem ser consideradas imorais sem terem por isso de ser proibidas"; depois, com lógica, acrescentou que podia "considerar que a homossexualidade era um pecado sem que isso implique que querer criminalizá-la". Afinal, "o Estado não tem o direito de meter o seu nariz neste domínio".
Trata-se de uma declaração corajosa de alguém que não abdica da sua fé particular e que mostra impecáveis credenciais liberais. Mostra que o filósofo italiano não omite por conveniência aquilo em que acredita, que admite a existência de outros pontos de vista e que, ao contrário dos que se julgam "donos da verdade", acredita "na liberdade, o que implica que não se imponha ao outros o que consideramos ser o mais correcto".
Ainda bem que assim pensa, pois isso garante que não imporá a partir de Bruxelas nenhuma agenda política particular ou de grupo, respeitando as diferenças culturais existentes, nomeadamente no domínio em discussão, entre os povos dos 25 membros das União. Porém ser um homem livre e franco e assumir-se como católico é que parece ser "pecado", e mortal, para os que não percebem que são eles que vestem a pele dos Torquemada dos nossos dias."
José Manuel Fernandes
Público, 15 de Outubro de 2004

terça-feira, 14 de setembro de 2004

"Choque de civilizações ou choque de ignorâncias?"

Sobre o tema do post anterior, e para quem estiver interessado em entrar em alguns dos temas debatidos na conferência de Barcelona, sugiro a leitura da transcrição, disponível online, de uma das mesas, intitulada "Choque de civilizaciones o choque de ignorancias?"
"Novas ignorâncias, novas literacias"

Foi uma experiência de grande desnidade a participação, na semana finda, nesta conferência internacional promovida pela UNESCO, no Foum Mundial das Culturas, em Barcelona.
Deixo o texto de apresentação:
"L?incompréhension mutuelle des peuples a toujours été, au cours de l?histoire, à l?origine de la suspicion et de la méfiance entre nations, par où leurs désaccords ont trop souvent dégénéré en guerre". Ces mots, extraits de l?Acte constitutif de l?UNESCO (1945), résonnent avec une nouvelle urgence aujourd?hui. Alors que la mondialisation a permis un rapprochement entre les peuples, elle a également été accompagnée par l?émergence ? ou la ré-émergence dans un contexte nouveau, de formes inquiétantes d?ignorance. Prises ensembles, celles-ci constituent les "nouvelles ignorances". Cette Conférence se concentre sur quatre d?entre elles : l?ignorance de la diversité, l?ignorance de l?Autre, l?ignorance de l?éthique et l?ignorance du futur. La Conférence a pour objectif de déterminer comment faire face à l?émergence de ces "nouvelles ignorances" par le biais de l?élaboration de "nouvelles alphabétisations" ? celles-ci rassemblant les savoirs, les valeurs et les compétences nécessaires pour y répondre. Apprendre à vivre ensemble à l?heure de la mondialisation impose un engagement renouvelé en faveur de la connaissance mutuelle, du développement du libre échange des idées et des savoirs, de l?augmentation des échanges entre les peuples, et du développement de valeurs partagées."

segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Enviesamentos

O documento "Carta a los obispos de la Iglesia Católica sobre la colaboración del hombre y la mujer en la Iglesia y en el mundo" (recorro aqui à versão em castelhano), divulgado no sábado pela Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano, não parece trazer nada de especialmente novo sobre o tema. Depois de o ler, ocorrem-me dois ou três comentários:
  • Preocupado em desmontar contradições de algumas correntes feministas, o documento esquece o valor intrínseco inerente ao processo histórico da emancipação das mulheres. O que diz bastante da "mentalidade" que subjaz à reflexão.
  • Isso mesmo se observa no destaque que a Congregação para a Doutrina da Fé confere ao lugar da mulher na família, omitindo um aspecto que se esperaria fosse pelo menos referido e valorizado: a participação do homem nas tarefas domésticas e na educação dos filhos. O documento contém argumentos para valorizar este aspecto do problema, mas os autores não foram por aí.
  • Não se percebe de todo, a meu ver, a lógica da argumentação que leva, no ponto 16, a reafirmar que a ordenação sacerdotal seja exclusivamente reservada aos homens.
  • O título do texto refere-se ao homem e à mulher. Os 17 pontos da reflexão apresentam-se centrados, de uma forma quase obsessiva, na mulher. Os especialistas da análise textual encontrarão aqui farta e interessante matéria de estudo.
  • A conclusão, para mim, é esta: não pondo em causa a legitimidade e interesse da posição oficial do Vaticano sobre o tema, o documento propõe-se combater enviesamentos com posições elas próprias também enviesadas.

quarta-feira, 21 de julho de 2004

O tratamento da morte de Lourdes Pintasilgo
 
O passado fim-de-semana foi marcado pela morte súbita da Eng.ª Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de grande relevo em diferentes áreas da vida social, cultural e política, o seu testemunho de vida e a alegria e convicção que pôs naquilo em que se envolveu foi reconhecido até mesmo por aqueles que dela discordavam. Ficará como referência em campos como o reconhecimento do papel das mulheres na sociedade, o aprofundamento e enriquecimento da vida democrática e a renovação da experiência cristã.
Seria de esperar que, perante a morte de alguém de tal envergadura, para mais nas circunstâncias inesperadas e no contexto em que ocorreu, o ?Jornal de Notícias? desse ao caso o tratamento e o destaque que ele merecia, a exemplo de outros casos análogos recentes.
Ora o que verificámos é que isso não aconteceu. O tratamento foi pobre tanto do ponto de vista do destaque como do conteúdo. Essa percepção do provedor é partilhada pelo leitor Hermano Manuel P. Padrão que fez saber, por correio electrónico, o seu ?descontentamento (para dizer o mínimo)?, pelo tratamento dado à morte de alguém que foi ?única mulher que, neste País, assumiu o cargo de primeira ministra e, posteriormente, a única mulher que se candidatou à Presidência da República, reconhecida internacionalmente, participante em inúmeros ?foruns? com a nata intelectual ou política mundial?. ?Não merecia que o registo da sua morte merecesse um relevo tão parco no JN, mais chocante se o compararmos com o desaparecimento de outras duas figuras gradas do nosso País, as recentíssimas mortes do Prof. Sousa Franco e da nossa melhor Poeta, Sofia de Mello Breyner Andersen?, acrescentava o leitor.
O director de Redacção deste Jornal, interpelado pelo provedor, reconhece: ?A morte [de Lourdes Pintasilgo] coincidiu com a crise política e tratamo-la mal. A secção era a mesma, tivemos dificuldades em desviar gente?.
Fica dada a explicação, embora entenda ser discutível a opção de ocupar  páginas com desenvolvimentos de uma crise que, nos dias em referência, nem trouxe grandes novidades, deixando num plano secundário o tratamento de um acontecimento que teve repercussão inclusive internacional.Na linha de outros media, foi-se pela via mais óbvia, que consistiu em citar, na edição de domingo, os estafados depoimentos dos dirigentes político- partidários. E o que esta mulher significou em áreas tão diversas como as artes, os movimentos das mulheres, as ONG (organizações não governamentais)? Não teriam nada de porventura mais relevante a dizer? E o facto de nenhum bispo ter estado presente no funeral nem se ter pronunciado (com a honrosa excepção, uns dias depois, do bispo de Aveiro, numa ?carta ao director?) não era motivo de interesse jornalístico? Não se justificava que o JN tivesse tomado a iniciativa de interpelar a hierarquia católica?
in JN, 18.07.2004

segunda-feira, 12 de julho de 2004

Presença da ausência

Diz o Cibertúlia e eu não posso senão subscrever:
"Maria de Lourdes Pintasilgo teve hoje o aplauso de centenas de populares. Anónimos e conhecidos. Mas faltou um aplauso, uma mensagem, uma presença - a de um bispo (qualquer) que fosse da Igreja portuguesa. Pintasilgo não era uma católica ortodoxa, como porventura foi Sousa Franco, e não era A Voz, como foi Amália. Mas na sua heterodoxia foi inovadora e acolhedora de uma outra forma de ser Igreja. E, na sua simplicidade, foi a voz de deserdados ou desalinhados. O senhor cardeal-patriarca de Lisboa, que presidiu aos funerais de Sousa Franco ou Amália, para Pintasilgo não teve sequer uma palavra pública, nem enviou um dos seus bispos auxiliares à cerimónia deste domingo. Às vezes, é difícil ser Igreja nesta Igreja."

domingo, 11 de julho de 2004

Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004)

Obrigado, agora, para sempre
"Descobri que certos homens e certas mulheres, com quem partilhamos a terra e o tempo históricos, através de um verso, de um canto, de uma frase, nos iluminam os caminhos por onde tentamos chegar mais longe e mais alto. E aí encontrei as razões de uma admiração, que não tinha do "pintasilguismo presidencial", de que aliás não comunguei.
Por isso, mais do que parabéns, lhe disse obrigado.
Obrigado, agora, para sempre, querida Maria de Lourdes".
Adelino Gomes

Maria de Lourdes
"O que mais me dói, minha Amiga, é saber que partiu na mágoa de um estranho momento da vida do seu país. Dói-me saber que a pressa que vestiu para a viagem, tenha sido ela própria tecida a fios de uma dor, fulminante de tão inconformada. Não o merecia, Maria de Lourdes, não o merecíamos.
Quero que saiba que os seus ensinamentos e exemplos permanecem muito vivos em mim e que, passado o desconcerto da notícia sobre a sua partida, ficaram hoje ainda mais reforçados como lição maior do que é o direito e o dever de cada um de nós de contribuir para o bem da res publica - da polis do nosso terreiro e da polis do grande quintal que é o mundo.
Falo do bem, minha Amiga, porque foi a dar-lhe brilho que sempre aplicou a sua inteligência, tão curiosa sobre todas as coisas, tão imaginativa, tão a favor das pessoas, sobretudo das que a seu favor pouco ou nada têm e pouco ou nada lhes é proposto que tenham.
Falo do bem, minha Amiga, porque o bem é uma categoria fundadora da vida privada e da vida pública dos homens e porque, com impúdica desonra e cobardia, muitos dos que em nosso nome falam e decidem, dão sinais de lhe ignorarem os atributos e as exigências.
Nesta hora de despedida, quero ainda que saiba, Maria de Lourdes, que me sinto credora da sua voz e que vou tentar merecer, sem desfalecimentos, o legado da sua herança".
Maria João Seixas

«Eis-nos sitiados»
«Deus não vem fazer aquilo que o homem não foi capaz de fazer (...). Deus deixa acontecer e toma à sua própria conta com as fatalidades da História como se tivesse provocado e querido. Deus da História, mesmo assim? Sem dúvida. Mas não do alto como um produtor de marionetas. Deus da História nos seus avanços e recuos. (...) E nós? No fundo de nós mesmos sentimo-nos sitiados . De todos os lados nos vem a imagem desoladora da nossa incapacidade para gerirmos o planeta, a nossa cidade, as nossas coisas, os nossos afectos . Que fazer então? Denunciar. Dizer. Enunciar os erros em que caímos, os becos sem saída deste mundo, do país da sociedade dos nossos afectos. Mas aí rebenta o grande escândalo (...) Porque nas sociedades entorpecidas por falsas visões não é tido por conveniente denunciar a injustiça, o erro, a ilusão. Nem sequer a zona mais íntima dos nossos afectos segue leis diferentes.»

Maria de Lourdes Pintasilgo
Do livro 'Dimensões da Mudança'

quarta-feira, 7 de julho de 2004

Quem sou eu?

"Quando, três ou quatro anos atrás, passou pelo Brasil, Jostein deu uma entrevista brilhante à TV Cultura de São Paulo. E a idéia forte em torno da qual se construiu a conversa foi essa de que ninguém descobrirá quem é se apenas olhar para si próprio. "
Carlos Chaparro
in Comunique-se, 1.7.2004

sexta-feira, 2 de julho de 2004

Sophia

"Sozinha caminhei no labirinto
Aproximei o meu rosto do silêncio e da treva
Para buscar a luz de um dia limpo"

sexta-feira, 25 de junho de 2004

Almodovar: "Mala educación"

Na newsletter da SIGNIS:
"In recent years, he has perfected his style, his ability to create intelligent melodramas, channel his flamboyant still into thoughtful and moving explorations of the human experience, often bizarre experiences. 'All About My Mother' won the Ecumenical award at Cannes in 1999.
'Bad Education' has been in planning stages for many years. In 2002, when Almodovar announced that he would move into production, there were immediate claims that the film would be anti-clerical. It would be a film about his own experiences of Catholic education in Spanish schools of the 1960s. This was re-iterated in articles and interviews and was the first question at the press conference in Cannes where 'Bad Education' was the film chosen for Opening Night.
However, Almodovar himself has been disclaiming the anti-clerical charge. He has said that had he made the film twenty years earlier, it would have been quite anti-clerical. He says now that he has mellowed and that, although he does not have what he calls 'the luxury' of believing in God, he values much of what he experienced in the Church (especially in liturgies, celebrations and art) during his childhood. He says he asked God to give him faith when he was a boy but God did not give it to him. He also said recently that the priests at school said that watching films was a sin and that he had to choose sin. These themes are incorporated into 'Bad Education'."

quinta-feira, 3 de junho de 2004

Cristãos?

Francisco Sarsfield Cabral, in Público, 3.5.2004

Um dos traços da recente evolução política nos Estados Unidos está na força eleitoral que ganhou a chamada direita cristã, hoje a mais importante base de apoio dos Republicanos. A um europeu custa imaginar que muitos americanos ainda considerem blasfema a teoria da evolução de Darwin. Mas, para os fundamentalistas, que são sobretudo protestantes evangélicos, a Bíblia tem apenas o sentido literal. O que os leva, também, a considerarem que a Palestina pertence a Israel por direito divino - daí a viragem de Washington a favor de Sharon. E os movimentos anti-aborto dos fundamentalistas não vêem contradição entre serem pró-vida e apoiarem com entusiasmo a pena de morte.

Só que falta ao actual poder em Washington o sentido ético que seria de esperar de cristãos. Não são apenas as ligações da Administração Bush a interesses económicos, como os petrolíferos ou a Enron. É o olímpico desprezo que esse Governo manifesta por tratados, pelo direito internacional, pelos aliados e pelos direitos dos suspeitos de terrorismo. Talvez sem se darem conta, estes propagandistas de valores alegadamente cristãos são, afinal, cultores pós-modernos do relativismo moral, fascinados pelo seu próprio poderio militar. Por isso prevalece o direito da força sobre a força do direito, como notou o Vaticano. Por isso Bush e o seu unilateralismo contrariam a importância que João Paulo II (como antes Paulo VI) atribui à ONU e à cooperação internacional. Por isso, ainda, o Papa se opôs à guerra do Iraque - e vê-se agora como tinha razão.

A retórica pretensamente cristã da Casa Branca e apoiantes servirá para ganhar votos. Mas ela encobre uma forma virulenta de paganismo, que valoriza acima de tudo o dinheiro e a força.

segunda-feira, 31 de maio de 2004

Futebol, a nova religião

"(...)São sinais que resultam de o futebol se ter transformado numa nova religião, uma religião laica, com a sua ideologia, a sua fé, as suas massas, as suas cerimónias e ritos, as suas "catedrais" e clero, a sua economia. Não admira que a Conferência Episcopal portuguesa tenha alertado há meses, em invulgar comunicado, para o peso excessivo que o futebol vem assumindo no país: o futebol é, de facto, a única crença e instituição que pode tomar o lugar do catolicismo na sociedade portuguesa.
Apesar dos conflitos entre clubes e seus adeptos, o futebol une a nação: une pobres e ricos em torno do mesmo tema, o único possível para esse diálogo; une os portugueses até nas divergências, pois no futebol mesmo o ódio fornece uma linguagem comum a todos, que substitui a da religião. Ora, ao fazê-lo, o futebol fornece muito do que é necessário para se manter a coesão social. Em democracia, a política precisa dessa única linguagem comum na sociedade, e por isso apropria-se dela.
Além disso, o futebol substitui o debate sobre os problemas sociais, económicos e políticos, o que é um alívio para todos os políticos, nomeadamente para os que estão no poder. Se o povo falasse de política como fala de futebol nem os do Bloco de Esquerda tinham descanso perante a descoberta das suas carecas, quanto mais os partidos da área do poder governativo."
Eduardo Cintra Torres, Público, 31.5.2004

quarta-feira, 19 de maio de 2004

Concordata

António Costa Pinto, no DN:

"A Concordata da democracia foi finalmente assinada. Ultrapassamos assim a do Estado Novo, assinada em 1940 por um devoto Salazar, ainda que renitente em oferecer à Igreja Católica tudo o que ela queria. Precisávamos de uma nova ou bastava deixar cair a antiga? Os Estados democráticos não ganham muito com elas, mas a história é madrasta e a das relações entre Estado e Igreja no século XX não foi famosa.
A 1.ª República viu na Igreja um dos factores centrais do atraso português, tentou «limpar-lhe» a base de apoio e levou com ela em cima no final dos anos 20. Ainda assim, Salazar, apesar de pio católico, esteve longe das concessões do seu vizinho Franco e manteve grande parte da herança republicana.
O salazarismo ofereceu à Igreja grande parte do «monopólio das almas», o que para uma ditadura de direita até não foi mau.
A alternativa não seria a democrática, mas a fascista dos braços estendidos, bem mais preocupante. A Concordata de 1940 cede no divórcio e em muito mais, mas pede a «catolicização do império», ainda muito atrasada. Nos anos 50, a Acção Católica já mobilizava mais do que o Regime e dominava muito das suas organizações oficiais, e Salazar teme a dissidência. Esta acabou por vir, pois a Igreja Católica, ao contrário do que pensam os que a vêem de fora, é mais plural do que eles imaginam. Dito isto, em termos de teoria política liberal não sei se precisávamos de uma nova Concordata. Mas, lido o texto, também não se vê grande mal no que foi assinado."

terça-feira, 18 de maio de 2004

Quatro perguntas sobre a Concordata

António Marujo, no Público: Quatro perguntas sobre a Concordata:

"Era necessária uma nova Concordata?
Quando o Governo presidido por António Guterres decidiu encetar o processo de elaborar uma nova Lei de Liberdade Religiosa (LLR), debateu-se a necessidade de um acordo específico com a Igreja Católica. Para alguns, esta deveria entrar na lógica das restantes confissões religiosas, submetendo-se à lei geral. Para outros, o facto de ser a confissão maioritária dos portugueses deveria levar o Estado a contemplar essa especificidade. O próprio patriarca de Lisboa, entrando no debate, admitiu (entrevista ao Público, Junho de 2001) que uma lei seria suficiente, mas que a Concordata dava aos católicos portugueses 'uma estabilidade legislativa' que uma lei ordinária não permitiria.
Na radicalidade da sua doutrina, o cristianismo afirma-se despojado e desligado do poder - mesmo se, em vários momentos da História, o poder foi (muito mal) ligado à profissão da fé e exercido de forma arbitrária. Aceitar um tratado internacional que dê determinadas garantias à comunidade dos crentes do país estaria assim em contradição - ou pelo menos em desacordo - com aquela perspectiva.
O problema está na 'estabilidade' legislativa que a Concordata garante - ao contrário da lei ordinária, que poderia variar ao sabor das maiorias governativas. A hierarquia católica, escaldada pela História - Marquês de Pombal, liberalismo, I República - preferiu jogar à defesa. Ainda mais com alguns argumentos ouvidos durante o debate sobre a LLR e a Concordata, que faziam temer o pior: colocavam a dimensão religiosa como legítima para a sacristia ou mesmo para qualquer esfera extra-terrestre. Para os crentes, e para o cristianismo em particular, a fé tem uma dimensão pública que não se pode escamotear - e que o Estado, representando todos os cidadãos, tem o dever de levar em conta em todos os aspectos, já que também contempla a dimensão educativa, cultural, de saúde, desportiva ou outras.
Jogando à defesa, a hierarquia católica não arriscou o que poderia ter arriscado. Poderia tê-lo feito e com isso estaria a ser mais profética, como se diz em linguagem teológica. Mas, pesando uma e outra argumentação, aceita-se que, neste momento, possa haver uma nova Concordata. (...)"
Continuar a ler AQUI.

segunda-feira, 10 de maio de 2004

As religiões e a cultura da Paz
Frei Bento Domingues
Mário Figueirinhas Editor, Porto, 2004

Este livro, que tem o prefácio de Lídia Jorge, é hoje apresentado no Porto, nos anexos da Igreja de Cristo Rei (à Avenida Gomes da Costa), pelas 18.30. A ocasião será pretexto também para uma homenagem ao editor, promovida pela Paróquia de Cristo Rei e pelo Centro D. António Ferreira Gomes.

domingo, 2 de maio de 2004

Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA:
"We worship the prince of peace, not war"

"When I was younger, almost all Baptists were strongly committed on a theological basis to the separation of church and state. It was only 25 years ago when there began to be a melding of the Republican Party with fundamentalist Christianity, particularly with the Southern Baptist Convention. This is a fairly new development, and I think it was brought about by the abandonment of some of the basic principles of Christianity.

First of all, we worship the prince of peace, not war. And those of us who have advocated for the resolution of international conflict in a peaceful fashion are looked upon as being unpatriotic, branded that way by right-wing religious groups, the Bush administration, and other Republicans.

Secondly, Christ was committed to compassion for the most destitute, poor, needy, and forgotten people in our society. Today there is a stark difference [between conservative ideology and Christian teaching] because most of the people most strongly committed to the Republican philosophy have adopted the proposition that help for the rich is the best way to help even poor people (by letting some of the financial benefits drip down to those most deeply in need). I would say there has been a schism drawn – on theology and practical politics and economics between the two groups."

Former President Jimmy Carter, America's first evangelical Christian president
in The American Prospect
April 9, 2004

segunda-feira, 26 de abril de 2004

"Buscando a Deus"

por ISAAC DÍAZ PARDO, in La Voz de Galicia, 26.4.2004

ESTES DÍAS anduvo por Galicia Adolfo Pérez Esquivel, premio Nobel da Paz no 1980 pola súa loita na defensa dos dereitos humanos.

Pérez Esquivel fíxose arquitecto e escultor na Universidade de La Plata [La Plata é a capital da provincia de Buenos Aires]. Católico militante, fundou no 1974 o Servicio de Paz y Justicia, o que o enfrentou ás dictaduras que padeceu o cono sur de América ao denunciar as atrocidades cometidas polo rexímenes militares que o tiveron detido e torturado, e en algunha ocasión con bispos da nova interpretación da ciencia do amor ao próximo que ilumina a algúns seres buscando en Deus unha solución ás discordias humanas na paz e na xustiza. Mais este é un mundo difícil no que prevalecen os sistemas económicos inxustos e a violencia como forma de manter a inxustiza -ás veces disfrazada de xustiza- como defensa dos intereses económicos dos privilexiados.

Non é só Pérez Esquivel quen anda detrás da paz e da xustiza coa súa fe de crente convencido, axudando aos que sufren a miseria e a explotación, cunha aptitude admirable, nun mundo no que non se lle ve solución a este animal recén saído da selva, pois non se sabe por onde vai cun predominio dos que andan a buscar petróleo, e outros negocios, e non perden o tempo en buscar a Deus.

Este arxentino é verdadeiramente un iluminado, algo ten que ver coa súa formación de artista, de arquitecto, que influiron na súa sensibilidade. Penso que cando hai autenticidade, xa sexa plástico ou poeta, o ser atópase como proido polas causas xustas. Se teño algún lector, invítoo a que analice a obra material ou inmaterial dos que acadaron trascendencia para ver nela o compromiso que tiveron os outros autores coa sorte dos homes. Pero o mundo é así: uns poucos idealistas entre moitos que só están a sacar tallada con todo e coa obra que fan outros.

Tiven que acompañar a Esquivel na súa conferencia en Oleiros, e só se me ocorreu saudalo con aquel poema de León Felipe no que di: «Hay un hombre que trafica con las cosas / y otro hombre que las quiere organizar / el organizador es el artista [dixen sinalando a el] el otro es el chalán / y la lucha en el mundo ha sido siempre / entre artistas y chalanes nada más».

Aínda que sexan poucos, Esquivel non está solo na búsqueda de Deus na paz e na xustiza. De algunha maneira esta especie que somos, que en algún momento adquiriu conciencia de si mesmo, e aprendeu a chorar polos males alleos cando a sorrir pola súa felicidade, empezou a preguntarse que facemos acó, de onde vimos, para que vimos, e así empezamos a buscar a Deus, dende o eido no que nacemos, con sabor a esa terra e á súa circunstancia, para xustificar a nosa vida. Non importa a existencia, ou non, do ser que nos axuda, pois o seu existir, ou non, ficará a pesar das nosas crenzas.

Eu remataba de estar cun amigo que non cre na convivencia co mundo musulmán, que só tentará eliminarnos, polo que tivemos que botalos da Península. Meu amigo non sabe que botamos aos mouros, aos xudeus e aos republicanos.

Esquivel cre que non importa a diferencia de credos, que temos que entendernos respectando as crenzas da cada quen.

quarta-feira, 14 de abril de 2004

Homens muito voltados para um modo de ver

"(...)
Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo o lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior"

Daniel Faria
"Homens que são como lugares mal situados"

domingo, 11 de abril de 2004

"Tempos difíceis"

António Barreto, no Público, hoje:
"Há tempos assim, em que nos querem encostados à parede, em que vivemos rodeados de círculos de fogo, em que a razão é substituída por um qualquer automatismo, em que o pensamento mecânico vive do preconceito e da dependência e em que o cliché e a banalidade substituem o esforço de raciocínio rigoroso e independente. Há tempos assim, em que é preciso estar com alguém, em que é necessário estar contra alguém, em que tudo nos empurra para ser branco ou preto, em que nos querem obrigar a vestir uma camisola, em que contrariar um amigo faz de nós seu inimigo, em que ter opinião diferente de um aliado faz de nós um adversário, em que pensar livremente é sinónimo de traição, em que reconhecer uma qualquer razão a alguém implica estar ao seu serviço e em que a autonomia de espírito é a todos os títulos condenada. Há tempos assim, em que o medo impede de pensar livremente, em que o receio leva a ceder à violência e em que o pavor obriga a curvar perante o terror. (...)"

sábado, 10 de abril de 2004

Tempos de inquietude

Há um sentido do acreditar que leva a lançar um olhar beato sobre a vida e o mundo, cuidando que as coisas se encaminharão finalmente num sentido positivo. Não sou especialmente sensível a esse modo de estar na vida. Acredito que o futuro é maior do que o nosso esforço, mas que não prescinde dele.
E por isso me inquieto com o que sou, o que vejo, o que oiço.
Vivi os dois últimos meses em Espanha, perto das inquietações e das perguntas que, como um enorme cogumelo depois da explosão, os atentados do 11 de Março levantaram.
Li e ouvi bastante. Quase não vi televisão. Falei com muita gente. Inquietei-me com os termos de referência de uma parte dos debates. Senti a falta de instrumentos e de conceitos para pensar o que se passa no mundo, intuindo que algo de muito fundo está a emergir.
Sendo cada vez mais claro que as sociedades se têm de defender do terror, não menos claro é que não podem construir a sua casa sobre o medo e o retraimento. Muito menos sobre a guerra.
Mas o temor do Outro, o desinteresse e a ignorância pela sua história, pela sua situação são tão grandes como o nosso etnocentrismo. Os muros que, cegos, erguemos, esbarram com esse dado básico que é estarem do lado de cá aqueles que queremos deixar extra-muros. E estão do lado de cá porque precisamos deles. Isto é, precisamos deles e temos medo deles. Um paradoxo? A História está cheia de tais paradoxos.
Três princípios

"All forms of social communication (...) evidence three basic principles: the priority of truth -- we are never justified in recounting lies; the dignity of the individual -- our communication should enhance and not diminish our innate human dignity; the common good -- our communication should contribute to the good of the community and not harm it morally or in any other way."
John Foley, 28.3.2004

sexta-feira, 9 de abril de 2004

"Uma barbaridade que fere toda a lógica"

No Jornal de Notícias de hoje:

"(...)Entre o domingo de Ramos e o domingo de Páscoa, a cidade dos arcebispos liberta o esplendor contido da espiritualidade construída durante 40 dias, em que o Santíssimo Sacramento é exposto à adoração dos fiéis (lausperene).
Mas, porque o objectivo é alargar o âmbito das celebrações, a comissão encarregue pela organização promoveu concertos corais-sinfónicos em muitas igrejas da cidade, para além da Sé. (...)"

No Público:

O bispo de Viana do Castelo proibiu "a realização de concertos ou outros eventos culturais em templos religiosos da sua diocese, por considerar que esses espaços devem ser utilizados exclusivamente para o culto ou para actos com ele relacionados."

Comentário de António Gonçalves:
"Uma pedrada no charco, finalmente. Perante o silêncio que é imposto nos templos religiosos da diocese de Viana do Castelo - no que diz respeito à audição de obras musicais de carácter erudito - pelo respectivo bispo, um produtor de espectáculos do género, David Martins, não se conteve e afirmou aquilo que muitos mais sabiam, e sabem, e não ousavam, nem ousam, dizer: "Uma barbaridade que fere toda a lógica".

quinta-feira, 8 de abril de 2004

FAITH ONLINE

A new national survey by the Pew Internet & American Life Project finds that nearly two-thirds of online Americans use the Internet for faith-related reasons. The 64% of Internet users who perform spiritual and religious activities online represent nearly 82 million Americans. Those who use the Internet for religious or spiritual purposes are more likely to be women, white, middle aged, college educated, and relatively well-to-do. In addition, they are somewhat more active as Internet users than the rest of the Internet population."There has been much speculation about the impact of the Internet on religion, particularly as increasing numbers of Americans have been turning to sources other than their own traditions and clergy," said Prof. Stewart Hoover of the University of Colorado at Boulder, the lead author of the Pew Internet Project report. "The survey provides clear evidence that the majority of the online faithful are there for personal spiritual reasons, including seeking outside their own traditions," Hoover added, "but they are also deeply grounded in those traditions, and this Internet activity supplements their ties to traditional institutions, rather than moving them away from church." The survey found that two-thirds of those who attend religious services weekly use the Internet for personal religious or spiritual purposes.

quarta-feira, 31 de março de 2004

Parece mentira

Gabriel Perissé (*)
In Observatório da Imprensa, 30.3.2004

É célebre o paradoxo do mentiroso: Epimênides, sacerdote de Apolo, cretense que viveu no século VI a.C., disse de seus compatriotas: "Os cretenses mentem o tempo todo". Ora, se Epimênides é mais um cretense que vive dizendo mentiras... nem todos os cretenses serão mentirosos. Ou, talvez, Epimênides seja o único cretense capaz de dizer verdades, e a verdade, então, é que todos os cretenses são sempre mentirosos, exceto Epimênides.

A verdade mesmo é que ninguém consegue ser mentiroso 24 horas por dia. Mentir um dia cansa, e possivelmente o próprio Epimênides, mentiroso renitente, fez uma pausa e, sendo profeta, disse essa verdade, citada por Paulo em sua epístola a Tito, que ficara em Creta para difundir o cristianismo: "Dixit quidam ex illis, proprius ipsorum propheta: ‘Cretenses semper mendaces’."

Mas se mentir o tempo todo é impossível, dizer sempre a verdade não é nada fácil. A verdade, afirmou Platão, "é que a verdade é um alvo em que poucos acertam".

"O que é a verdade?" – perguntou o procurador romano Pôncio Pilatos a um judeu inocente, prestes a morrer de asfixia numa cruz: Quid est veritas? – Pergunta que não merecia resposta...

Mas houve uma resposta, silenciosa como tantas verdades verdadeiras. Por trás das mesmas quatorze letras da frase acima, o texto bíblico em latim deixou implícita, num anagrama, a frase demolidora: Est vir qui adest, ou seja: é o homem que está na tua presença, ele é a verdade.

A verdade é o ser humano, é a pessoa humana em sua radical presença. Nisto se assenta uma possível ética da comunicação. Somos pessoas, e nossa verdade como pessoas é critério para avaliar o que falamos/escrevemos, o que lemos/ouvimos.

Perdemos personalidade quando mentimos, ou quando acreditamos na mentira sabendo que de mentira se trata.

Perdemos liberdade quando mentimos, ou quando dizemos que tudo é verdade, mentira deslavada.

Perdemos tempo quando mentimos, ou quando fingimos não ter entendido a verdade, exclamando em tom de falsa surpresa: "Parece mentira!".

Perdemos amigos quando mentimos, ou (para alguns algo muito pior) perdemos clientes.

Perdemos leitores (e até eleitores) quando mentimos, ou quando aceitamos que mintam em nosso nome, ou, ainda, quando ficamos indiferentes — tanto faz, tanto fez, me deixem em paz.

Toda mentira supõe saber ou ter uma idéia da verdade. A verdade, sombra luminosa que acompanha a mentira, faz dela a notícia que amanhã esquecerei.

(*) Doutor em Educação pela USP e escritor

sábado, 13 de março de 2004

UM OUTRO OLHAR
SOBRE AS DESIGUALDADES E A EXCLUSÃO SOCIAL


UM OUTRO COMPROMISSO
COM UM MUNDO MAIS JUSTO E SOLIDÁRIO


1. Nesta Quaresma de 2004, a CNJP vem dirigir-se aos cristãos, suas comunidades, organizações e movimentos, com um objectivo: convidar a uma paragem, a fim de, com verdade e abertura de coração, reflectirmos sobre a sociedade a que pertencemos, os seus problemas e opções, o seu presente e o seu futuro, à luz dos critérios evangélicos e da doutrina social da Igreja católica. Com o objectivo de provocar essa reflexão partilhamos convosco os tópicos seguintes.

2. Vemos com grande preocupação que se tenha instalado entre os nossos concidadãos e concidadãs uma certa apatia e um aparente conformismo perante situações de desigualdade e de exclusão social crescentes, no nosso país e no mundo. Trata-se de realidades verdadeiramente clamorosas, mormente quando se tem presente que a Humanidade atingiu já níveis de produção tão elevados, que permitiriam assegurar a todas as famílias do mundo mínimos de subsistência. O simples facto de tal não ser verdade – e de o não ser a uma escala tão gigantesca – é razão bastante para não nos conformámos com o mundo em que vivemos, com o estilo de vida que levamos, o qual permite reproduzir esse mesmo estado de coisas.

3. É inaceitável que o progresso económico que o nosso país alcançou nos últimos 30 anos e as ajudas comunitárias entretanto recebidas não se tenham traduzido numa redução substancial da pobreza, designadamente nas suas expressões mais severas, de falta de alimento e de habitação condigna, de dificuldades no acesso à educação e à saúde, de insuficiência de recursos bastantes para garantir uma vida digna, segundo os padrões correntes na nossa sociedade. Cerca de 1/5 dos nossos concidadãos conhecem a pobreza com maior ou menor severidade, e uma parte deles nunca teve situação diferente, porque a pobreza se tornou hereditária e esteve sempre presente nas suas vidas.

4. É preocupante que o desemprego tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos e afecte, hoje, mais de 400 mil pessoas, das quais boa parte sem quaisquer perspectivas realistas de vir a encontrar um novo emprego, a curto ou médio prazo.

5. Para as pessoas empregadas, a duração e as exigências do trabalho intensificaram-se e absorvem hoje uma parcela cada vez maior do tempo pessoal, gerando situações stressantes e efeitos colaterais sérios na vida familiar, no relacionamento humano e na saúde das próprias pessoas. O recurso sistemático ao trabalho extraordinário, muitas vezes com desrespeito das normas legais vigentes e dos preceitos internacionais, é uma prática com que a sociedade e os governos não deveriam pactuar, nem sequer por omissão, designadamente em tempo de desemprego avultado, como presentemente sucede.

6. É intolerável que os níveis de remuneração média dos trabalhadores e o salário mínimo permaneçam consideravelmente abaixo dos valores médios que se verificam nos outros países da União Europeia, em contraste com remunerações escandalosamente altas de gestores e de outros profissionais, como ainda recentemente foi noticiado pela imprensa.
Mais grave ainda é o facto de que os níveis de salário mínimo e pensão mínima sejam fixados em valores que, reconhecidamente, ficam, no caso do primeiro, muito próximo do limiar de pobreza e, no caso da segunda, abaixo desse limiar. Ou seja, são estabelecidos com a certeza antecipada de que as pessoas que os têm como única fonte de rendimento não poderão assegurar uma subsistência digna. Idêntico raciocínio se poderá fazer quanto ao rendimento mínimo. Em situação particularmente gravosa ficam as pessoas naquelas condições que têm de fazer face a despesas com saúde avultadas, em virtude de padecerem de doença crónica, serem portadoras de deficiência ou simplesmente em razão da sua idade, já que as comparticipações dos fundos públicos vêm sendo progressivamente reduzidas.

7. Por outro lado, os padrões de qualidade dos serviços públicos de educação, de saúde e, de modo geral, dos demais bens públicos, longe de revelarem desejáveis melhorias, parecem regredir, provocando efeitos particularmente negativos para as pessoas de menores rendimentos. O argumento da falta de recursos do Estado não deve ser aceite acriticamente, antes deverá levar a que se questione as prioridades que estão subjacentes nos critérios dos decisores políticos. Merecem particular reparo os investimentos públicos que têm sido feitos em obras faraónicas e projectos de utilidade social duvidosa, beneficiando apenas determinados sectores da população.

8. O processo de privatização em curso, nomeadamente no que toca a bens públicos básicos, designadamente a água, os correios ou os transportes urbanos, para não falar da saúde e da educação, poderão configurar cenários de maior desigualdade e cavar o fosso entre ricos e pobres, acabando por mercantilizar direitos humanos e sociais básicos.

9. E que pensar do que está a ocorrer com o parque habitacional que aumentou consideravelmente em número de fogos disponíveis e qualidade da construção, mas não está ao alcance de uma parte significativa da população, que continua, designadamente nas grandes cidades, em situação de habitação precária, quando não atirada para bairros periféricos de habitat degradado? Sabe-se que é elevado o número de casas desocupadas, que funcionam para os seus proprietários apenas como capital expectante, sem qualquer uso social. Há indícios de que a compra de casas luxuosas em alguns casos está associada à lavagem de dinheiro e à corrupção. Por outro lado, é manifesto o défice de habitação social e as dificuldades com que deparam as pessoas de baixos recursos para terem acesso a uma casa condigna compatível com as suas posses. Estas realidades impõem-se à nossa reflexão.

10. Muitos milhares de imigrantes têm procurado no nosso país condições de trabalho e de vida que, por variadas razões, não conseguem lograr nos seus países de origem. Sem o seu contributo, Portugal não teria conhecido os níveis de crescimento económico que alcançou no passado recente. Contudo, muitas vezes, esses trabalhadores estrangeiros não são respeitados na sua dignidade e nos seus direitos; não encontram condições mínimas de habitação; e deparam mesmo com algumas resistências na sua integração nas nossas comunidades.

11. Em todos os quadrantes políticos, reconhece-se que os investimentos em educação e em saúde e de modo geral nos vários domínios da qualidade de vida são de primordial importância para o nosso país, pela dupla razão de que vêm ao encontro de um direito de cidadania e deste modo reforçam a coesão social e porque vêm preencher um requisito básico do desenvolvimento da qualidade dos recursos humanos, condição indispensável à viabilização de uma sociedade de informação e do conhecimento de que tanto se espera. Não é, pois, aceitável que, nestas áreas fundamentais, não estejam asseguradas condições de igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso, correndo riscos de desigualdades e exclusões agravadas no futuro.

12. Se alargarmos o nosso horizonte de reflexão a outros espaços geográficos, como é cada vez mais imperioso fazer por razões éticas e por vivermos em tempo de mundialização, não podemos ignorar a extensão e a intensidade dramáticas da pobreza que grassa em vastas regiões de outros continentes, com destaque para a África, a Ásia, a América Central e alguns países do continente latino-americano. À pobreza extrema de uma grande parte da população que vive nessas regiões, acrescem doenças evitáveis, o analfabetismo, a corrupção dos dirigentes e as guerras. São disfunções em grande parte produzidas pelo modelo económico vigente e a hegemonia das grandes potências no domínio das relações comerciais – sistemas proteccionistas nos países do Centro, imposição de preços baixos às matérias-primas oriundas dos países em desenvolvimento, apertadas regras de dependência tecnológica e assistência técnica, regime de patentes, asfixia financeira devida a encargos com a dívida externa.
Como encaramos estes problemas? Reconhecemos aí a nossa quota parte de responsabilidade? Pelas nossas posturas ideológicas e políticas? Pelas nossas actuações, enquanto investigadores, técnicos ou parceiros comerciais, com impacto nas relações com esses países? Pelo nosso não envolvimento ou desinteresse em organizações da sociedade civil mais atentas a estas problemáticas? Pelas nossas atitudes e comportamentos quotidianos, de um consumo irresponsável, de esbanjamento de recursos, de falta de solidariedade no plano mundial?


LER A REALIDADE SEGUNDO O OLHAR DE JESUS

13. Se fazemos este elenco de situações que tanto nos magoam – ou deviam magoar – não é para as colocar, uma vez mais, diante dos nossos olhos, como se de um ecrã de cinema se tratasse, como se fosse uma mera imagem exterior que não dissesse respeito aos nossos horizontes de preocupação, excepto quando nos toca sermos nós próprios/as as vítimas.
Fazemo-lo por três razões.

14. Em primeiro lugar, porque reconhecemos que existe na população portuguesa uma fraca sensibilização à pobreza e à desigualdade, não as considerando como males sociais, isto é, produzidos pela própria sociedade e prejudiciais para a mesma. Tanto a grande desigualdade como a pobreza e a exclusão social são realidades ainda toleradas por parte de muitos dos nossos concidadãos e concidadãs; diríamos que, para muitos, são fenómenos aceites com demasiada complacência e resignação, no pressuposto da sua inevitabilidade, uma espécie de marca do destino, quando não a consequência de alguma culpabilidade dos próprios pobres.
Há países europeus em que o grau de aversão e recusa da grande desigualdade e da pobreza e exclusão social é bem superior ao nosso. Já faz parte da consciência dos cidadãos desses países a certeza de que a exclusão social e em menor escala a grande desigualdade de riqueza, rendimento ou de oportunidades, além de serem condenáveis por razões éticas e/ou cívicas, constituem factores que põem em risco a própria democracia, a coesão social e a paz.
Nestes países, os cidadãos estão dispostos a pagar mais impostos e outras contribuições para prevenir ou corrigir a exclusão e em geral para viabilizar o cumprimento dos direitos de cidadania. São países em que os leques salariais e de remunerações têm menor amplitude e aceitam-se políticas redistributivas mais claras e eficientes.
Sentimos que, também entre nós, é necessário fomentar uma consciência mais esclarecida a este respeito. Cremos que é tempo de insistir junto dos nossos concidadãos e dos cristãos em particular sobre a necessidade de um outro modo de olhar as situações de empobrecimento nas suas múltiplas vertentes e da grande desigualdade que se instalou nas nossas sociedades, de compreender os mecanismos económicos, financeiros e políticos, que as produzem e alimentam, de tomar consciência de como tais situações comprometem a coesão social e constituem uma ameaça à paz.

15. A segunda razão que nos move a incentivar esta reflexão é o facto de constatarmos que em certos meios políticos e na comunicação social, frequentemente se veiculam ideias preconceituosas relativamente aos modelos económicos vigentes, designadamente no que se refere à sua inevitabilidade, e suporte teórico, daí retirando legitimação para certas políticas e práticas de gestão. Por exemplo, é frequente o argumento da necessidade de controlo orçamental (o que, em si mesmo, ninguém contesta) para justificar medidas de restrição da despesa pública, o que já não pode ser aceite sem ponderação dos seus efeitos sobre a extensão e a qualidade dos serviços públicos prestados (educação, saúde, investigação, habitação social, acção social, etc.) ou as reduções drásticas de remunerações e regalias dos funcionários públicos sem negociação com os interessados e sem contrapartidas. De resto, a despesa é apenas um dos factores de ajustamento; este consegue-se também através da recuperação de receitas fiscais devidas, através de medidas eficazes de combate à fraude e à evasão fiscais e, em geral, com o aperfeiçoamento de uma política tributária mais equitativa e eficiente.
No que se refere às empresas, preocupa-nos que, com frequência, fiquem por sancionar práticas de gestão danosa, por vezes, a par de elevados proveitos dos seus gestores, e, em particular, o encerramento das mesmas, à revelia da participação dos respectivos trabalhadores que são atirados para despedimentos colectivos, os quais tantas vezes põem em risco as economias locais dependentes da empresa que encerra a sua actividade somente para ir procurar em outras paragens lucros mais vultuosos.

16. A terceira razão que nos move nesta reflexão é o reconhecimento de que os cristãos pouco confrontam as suas atitudes e comportamentos na sociedade (trabalho, negócios, ensino e investigação, participação cívica e política) com as exigências que decorrem da sua fé em Jesus Cristo. Sucede, assim, que os valores humanos e cristãos interferem pouco ou nada nas suas respectivas práticas de vida. Ora, há cristãos em todos os sectores da vida económica, social e política – gestores e quadros técnicos de empresa, banqueiros, educadores e professores, políticos, deputados, governantes, juízes, detentores de cargos públicos – sem que se observem sinais que testemunhem as suas referências cristãs.
Por outro lado, temos de reconhecer que, em muitas das nossas comunidades e assembleias, paira uma muralha de silêncio sobre estas problemáticas e são muito ténues as interpelações dirigidas ao compromisso dos cristãos com os valores evangélicos quando está em causa a sua aplicação na transformação das sociedades a que pertencem, em ordem à construção da justiça e da paz.

17. Em que pensaria Jesus quando, dirigindo-se aos seus discípulos, lhes dizia: vós sois a luz do mundo, vós sois o sal da terra, vós sois o fermento que uma mulher junta à massa para a levedar?
Que nos quer dizer a nós, mulheres e homens do começo deste século XXI, a nós que vivemos em Portugal, um país membro da União Europeia, uma das grandes potências económicas do Mundo?
Certamente quer encorajar-nos a não nos deixarmos conformar com as situações de injustiça e com os mecanismos que lhes estão subjacentes, que contradizem os critérios e valores do Evangelho e o paradigma do reino de Deus que a todos nós cristãos cabe anunciar.

18. Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é estar na primeira linha de quem defende e promove direitos fundamentais:
§ a dignidade e o valor de toda a pessoa humana, de cada mulher e de cada homem, da criança, do jovem, do adulto ou da pessoa idosa;
§ o direito de cada pessoa encontrar na sociedade a que pertence condições para uma vida digna, nomeadamente o direito ao trabalho com garantias e sua justa remuneração, mas também o acesso a uma habitação condigna, à saúde, à educação, à segurança;
§ o direito à liberdade de palavra e de expressão, de deslocação, de associação e de participação cívica e política, tanto no próprio país como à escala mundial.
Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é, para além disto, escolher estar do lado dos empobrecidos e dos mais fracos (opção preferencial pelos pobres, como lembra o Concílio Vaticano II), compartilhar as suas dificuldades e ir em sua ajuda, empenhando-se em remover as causas estruturais da pobreza nas suas múltiplas vertentes.
Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é defender o princípio fundamental do destino universal dos bens da terra e consequentemente procurar com todo o empenho que aqueles se destinem prioritariamente à subsistência e melhoria de condições de vida para todos e não em benefício exclusivo de alguns.
Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é reconhecer que a propriedade privada ou a livre concorrência não são valores absolutos, mas antes instrumentos ao serviço da produção e da eficiência da economia.
Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é não pactuar com estruturas injustas, denunciando-as e promovendo as soluções alternativas e inovadoras que estiverem ao seu alcance; ou refutando os argumentos da inevitabilidade de certas práticas, contrapondo-lhes soluções paradigmáticas de maior justiça na organização da economia e da sociedade, nas empresas como na administração pública e adoptando atitudes e comportamentos pessoais de consumo, de produção, de troca, de gestão que sejam coerentes com os valores evangélicos.
Ser “luz”, “sal” ou “fermento” hoje é ser capaz de enquadrar os critérios mundanos da competitividade, da eficácia e da eficiência pelo referencial primeiro do Amor, o sinal pelo qual serão reconhecidos os discípulos de Cristo.

19. Estamos conscientes de que o “outro olhar” a que fazemos apelo não é alcançável sem uma reflexão séria e profunda, em clima interior de abertura ao Espírito de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Sugerimos, por isso, que esta temática, cuja importância para o modo de ser cristão hoje, esteja presente, quer na oração pessoal de cada cristão, quer em iniciativas comunitárias neste tempo privilegiado da Quaresma. Cada cristão e cada comunidade saberá escolher as formas concretas que melhor se adequarem a cada caso.

20. É certo que, ao contrário daquilo que muitas vezes aceitamos com fácil comodismo, podemos sempre fazer algo para mudar este estado de coisas. Bastaria que, numa sociedade em que a maioria das pessoas se reconhece como cristã, vivêssemos mais de acordo com os critérios Evangélicos para que os problemas colectivos que enfrentamos encontrassem resposta. Se o nosso coração se alegrasse mais e desse mais valor aquela pessoa que conseguiu romper com a sua situação de pobreza e exclusão do que à ostentação do sucesso daquele que já muito tem, fomentaríamos um “outro olhar”, outros valores e outras atitudes na nossa sociedade. A Esperança no Cristo ressuscitado do Domingo de Páscoa desafia constantemente as nossas certezas condescendentes sobre um “mundo-que-não-podemos-mudar”.

Quaresma de 2004
Comissao Nacional Justiça e Paz

quarta-feira, 10 de março de 2004

Novidade na "Campo das Letras":
RELIGIÃO: OPRESSÃO OU LIBERTAÇÃO?
de Anselmo Borges

"Qual é, para mim, a vocação deste magnífico livro de Anselmo Borges? Iniciar-nos na arte difícil de ver o que se vê. Ajudar-nos a descobrir, no coração da realidade multifacetada, nos fragmentos da experiência humana, no deslumbramento do mundo, os fios que nos ligam à Fonte da alegria e, no meio do sofrimento e perante o abismo da morte, a escutar o apelo da vida".
Frei Bento Domingues, O. P. (do Prefácio)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

Cem anos da Brotéria

A Gradiva e a Revista Brotéria organizam no próximo dia 14, um colóquio sobre "Fé, Ciência, Cultura: Desafios de Futuro", com a participação de Peter Stilwel, João Resina e Guilherme d'Oliveira Martins. A iniciativa decorre às 15 horas, no Grande Auditório do Colégio de S. João de Brito
(Estrada da Torre, 28, Lumiar, Lisboa), no âmbito da evocação do centenário da revista Brotéria. No mesmo dia, às 18 horas, Eduardo Lourenço apresenta a obra "Fé, Ciência, Cultura: Brotéria – 100 Anos" .

terça-feira, 3 de fevereiro de 2004

Pluralismo e Diálogo Inter-Religioso

"Pluralismo e Diálogo Inter-Religioso para uma leitura de Jacques Dupuis" é o tema da tese de mestrado em Filosofia, área de especialização em Fenomenologia e Filosofia da Religião que Cristina de Jesus Marques Rodrigues apresenta na Universidade do Minho. A discussão pública tem lugar no próximo dia 5, quinta-feira, às14H30, na Sala de Actos do Instituto de Letras e Ciências Humanas. Jacques Dupuis é um teólogo jesuíta que viveu na Índia de 1948 a 1984 e foi nos últimos anos objecto de investigação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, nomeadamente por causa do seu livro "Toward a Christian Theology of Religious Pluralism"

terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Miklos Fehér

Diante do espectáculo da morte
- da morte dada em espectáculo -
ainda há lugar para descobrir
... a morte.
Impossível dissimular,
fazer de conta.

Como um raio, tudo se desvanece
e fica ela, desafiante, procadora,
embrulhada num sorriso doce.

De súbito, quem se agredia abraça-se,
quem delimitava os campos
descobre que um só campo existe,
comum.

Repentinamente,
é o acordar para a fragilidade,
a membrana fina
que separa de um além misterioso e inelutável,
para o sem-sentido de tanta coisa,
de tanta tralha
com que carregamos os dias.

Esta vida que se desvela,
e que nos descobre;
esta terra comum de quem se descobre
despido e solidário
não será o sinal
de que "a vida não acaba,
apenas se transforma"?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

A Igreja na Cidade
o poder do encantamento e a força do testemunho


Eduardo Jorge Madureira Lopes
in Diário do Minho, 25.1.2004


Os lugares comuns parecem ter consagrado ad aeternum a identidade católica de Braga como se duas ou três designações religiosas — a “cidade dos arcebispos”, a “Roma portuguesa”... — fossem o bastante para, definitivamente, pôr a salvo a alma da cidade. Também os pouco abundantes olhares literários sobre Braga repararam na religiosidade da terra, que alguns autores julgaram mais dada à devoção do que ao amor ao próximo. Há, claro, diferenças entre a imagem que é devolvida pela reputação e a que é mostrada pelo espelho. Sucede que o espelho de hoje já não reflecte a imagem da cidade católica, como observou D. Jorge Ortiga, durante uma tertúlia realizada em Dezembro num antigo café do centro histórico.

É difícil dizer algo de novo sobre o que deve ser a Igreja em Braga nos dias de hoje. A Igreja, neste ou noutro lugar, neste ou noutro tempo, se é permitido usar o que S. Lucas disse num contexto algo diferente, “são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”. A Igreja é um convite a um testemunho. Um convite endereçado todos os dias a cada um. Enzo Bianchi, prior da comunidade de Bose, em Itália, um dos mais importantes centros de espiritualidade da Europa, recorda que “a humanidade precisa mais de testemunhos do que de advogados de uma verdade em relação à qual o máximo a que podemos aspirar é ser pobres mendicantes”.

Os “advogados” sobrecarregam de palavras um mundo com pouca paciência para escutar, um mundo que precisa menos de lições de moral e mais de testemunhos. Só estes, como o padre António Vieira tão bem explicou, operam milagres. E “o milagre que corresponderia aos interesses da nossa época, o milagre de que a nossa época tem necessidade e ao qual seria sensível, julgo que seria o milagre do amor e da fraternidade dos cristãos”, afirma o padre Louis Evely. Uma coisa assim ajudaria a mudar o mundo: “o mundo converteu-se ao princípio, quando se dizia dos cristãos: ‘Vede como eles se amam!’”.

A Igreja é um anteprojecto do mundo (de um mundo diferente do que quer que tudo e que todos sejam uma mercadoria que se compra e que se vende). Ela não é, como alguns parecem julgar, uma cadeia de distribuição de sacramentos ou uma repartição (uma burocracia auto-suficiente) onde alguns funcionários mal-humorados atendem os que pretendem subscrever a bom preço Planos de Poupança Eternidade. Respeitando a liberdade de cada um e promovendo espaços de partilha, a Igreja deve, portanto, ir ao encontro do mundo para lhe apresentar uma maneira de viver diferente da que se está a querer impor por todo o lado. Desse modo, será o sal da terra e a luz do mundo.

É verdade que “não basta — ainda que seja necessário — organizar a política e a economia de forma a que os homens vivam e sejam felizes”, escreve o cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, que considera que “é necessário propor-lhes uma visão deles próprios e do futuro, capaz de lhes oferecer um horizonte de pensamento e a sua parte de sonho. A beleza tem a graça secreta de fazer despertar o amor, como a centelha que faz começar o fogo, cuja chama ilumina e nos aquece. A inteligência não se extingue na sua função crítica. E as religiões murcham mais por perderem a sua capacidade de maravilhar do que pela dificuldade de proporem dogmas. A pior coisa que pode acontecer a uma notícia não é parecer desagradável, mas sim parecer maçadora”.

E, neste tempo saturado de informação, é essencial reencontrar a capacidade de maravilhar (há obras de arte que mantêm essa capacidade intacta, como é o caso da Paixão segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach. Depois de ouvir esta obra, dirigida por Nikolaus Harnoncourt, o escritor Antonio Muñoz Molina compreendeu “a imperiosa urgência de um testemunho”). O poder do encantamento e a força do testemunho — não as palavras que vão sendo trituradas por cansados funcionários de Deus — ajudarão a certificar a proposta de sentido que está na Palavra de Vida, na Boa Nova que Jesus Cristo nos legou.