Os novos donos da verdade
"(...) o italiano Rocco Buttiglione vê o seu nome vetado para comissário europeu não por causa daquilo que defende do ponto de vista legislativo mas sim pelas suas convicções religiosas. Se recuássemos algumas décadas, Rocco Buttiglione seria provavelmente interrogado não sobre o casamento e a homossexualidade - que era então unanimemente considerada à esquerda e à direita como um comportamento censurável quando não criminoso - mas sobre o que pensava da origem da vida, matéria que deu azo a enormes polémicas entre católicos e ateus e levou a que convicções religiosas e espírito científico fossem considerados incompatíveis. Cada época selecciona quem está disposta a calar e a apagar. Geralmente essa escolha faz-se em nome do bem comum. Às vezes, até se faz em nome da liberdade.
Helena Matos, Público, 16.10.2004
Liberdade, Tolerância e Os Novos Donos da Verdade
Rocco Buttiglione e um professor de filosofia conhecido tanto pela sua fina inteligência como por ser um católico devoto e próximo do Papa. Como católico tem, naturalmente, as suas convicções. Acredita, por exemplo, que a homossexualidade é imoral e constitui um "pecado". E, como homem culto, conhece a origem da palavra "matrimónio", que traduz o conceito de um contrato que visa proteger a mulher e os seus filhos, implicando obrigações para os maridos.
Uma parte disto são convicções pessoais, outra é conhecimento da história. No entanto quando Rocco Buttiglione as assumiu publicamente como membro designado da futura comissão europeia presidida por Durão Barroso com a pasta da Justiça e dos Assuntos Internos, a esquerda reagiu indignada, com destaque para os socialistas Josep Borrell (Espanha) e António Costa, para quem um ex-membro do gabinete de Berlusconi nunca poderá assumir tal pasta.
Na verdade, por muito detestável que se possa considerar o actual Governo italiano, ele existe porque os partidos que o formam ganharam as eleições. Logo tem legitimidade para, no quadro das actuais regras europeias, nomear para a Comissão Europeia quem entender e não quem for preferido pelos que perderam as eleições. São essas as regras do jogo nos nossos sistemas democráticos que, mesmo imperfeitos, dispõem de sistemas de pesos e contrapesos suficientes para os fazerem funcionar.
Para isso, no entanto, é necessário que, para além de se respeitarem as regras, se respeitem as opiniões dos outros. E, por muito que isso custe ao senhor Borrell, as opiniões sobre moralidade de Buttiglione não valem menos do que as suas. Já a sua atitude tolerante contrasta pela positiva em relação à intolerância do socialista espanhol.
Porquê? Pela simples razão que Buttiglione, sem abdicar das suas convicções, não pretende impô-las aos que delas discordam. Basta notar no que disse perante a Comissão que, pomposamente, chumbou o seu nome (um chumbo não vinculativo): primeiro, explicou que sabia "distinguir entre moralidade e lei", o que implica que "muitas coisas podem ser consideradas imorais sem terem por isso de ser proibidas"; depois, com lógica, acrescentou que podia "considerar que a homossexualidade era um pecado sem que isso implique que querer criminalizá-la". Afinal, "o Estado não tem o direito de meter o seu nariz neste domínio".
Trata-se de uma declaração corajosa de alguém que não abdica da sua fé particular e que mostra impecáveis credenciais liberais. Mostra que o filósofo italiano não omite por conveniência aquilo em que acredita, que admite a existência de outros pontos de vista e que, ao contrário dos que se julgam "donos da verdade", acredita "na liberdade, o que implica que não se imponha ao outros o que consideramos ser o mais correcto".
Ainda bem que assim pensa, pois isso garante que não imporá a partir de Bruxelas nenhuma agenda política particular ou de grupo, respeitando as diferenças culturais existentes, nomeadamente no domínio em discussão, entre os povos dos 25 membros das União. Porém ser um homem livre e franco e assumir-se como católico é que parece ser "pecado", e mortal, para os que não percebem que são eles que vestem a pele dos Torquemada dos nossos dias."
José Manuel Fernandes
Público, 15 de Outubro de 2004
Sem comentários:
Enviar um comentário