quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O pormenor e o padrão


Imagine que tem uma pequena avaria no carro. O sinal luminoso para virar – “pisca” – ficou preso, sempre ligado. Quem o vê na estrada julga que está permanentemente com a intenção de sair na próxima rua, quando, na verdade, não passa de um equívoco, de um pormenor mecânico. Para evitar dissabores com a anomalia, vai à oficina da marca do automóvel. Dizem-lhe que se trata de uma pequena avaria no sistema eléctrico, que tem de ser totalmente substituído, e pedem algumas centenas de euros. Resolve então ir ao mecânico do bairro. Pacientemente, ele estuda o mecanismo, desmonta o volante, faz uma limpeza, substitui uma pequena peça e volta a instalá-lo. O sinal fica a funcionar e o mecânico pede alguns euros pelo trabalho.
O sábio mecânico procura a origem do problema e pode encontrá-la na teimosia da persistência. Pode falhar, é o risco da curiosidade, mas procura. Com agilidade e engenho, necessidade também, rasga o padrão imposto sobre os mais desatentos. Na era dos “consumíveis”, o consumidor anda padronizado, refém de estratégias comerciais em autofagia, que ampliam o lucro e promovem o desperdício.
Hoje, na comunicação mediática, domina também a síntese sobre a análise, o padrão sobre o pormenor. Podemos passar padronizados pela vida, nos gostos e desgostos, e até na resignação, incapazes de vislumbrar o específico, o intransmissível e perene nas relações humanas, cedendo às convenções e à cegueira das aparências efémeras.
Como vírgula que muda o sentido de um texto, o pormenor pode fazer toda a diferença, da engenharia à desmontagem do tempo, capaz de facilitar a reciclagem e a reutilização da história. Se a grande história marca posição e se impõe nas enciclopédias, a investigação histórica pode revelar o pormenor que esclarece ou inverte a grande história.
De Confúcio a Gandhi, há toda uma sabedoria da essência e do pormenor, sem a qual o todo perde o sentido. Como nos textos “sagrados” há toda uma procura da “verdade” que ganha a forma do “absoluto” pela multiplicidade de pormenores na aventura da Palavra e das palavras.
Há pormenores que se revestem de escândalo, colidem com as tradições, podem até alterar presépios e “crucificar” historiadores. Mas há sobretudo os pormenores mais acessíveis, que se manifestam com tal nitidez que nem precisam de grande focagem. O problema está na desfocagem da finitude humana. A tendência é para ver o que convém na circunstância de um momento e não O momento que um pormenor pode revelar na infinitude de uma oportunidade.
(Joaquim Franco, crónica no programa Princípio e Fim da Rádio Renascença, no passado dia 25)


sábado, 24 de novembro de 2012

Semana Social: que conclusões para a intervenção da Igreja?


Da Semana Social católica, que neste domingo termina no Porto, é já possível extrair algumas ideias importantes. Alguns tópicos para uma síntese:
- o Estado social tem que ser preservado em nome da caridade e da justiça (Guilherme d’Oliveira Martins – G.O.M.);
- o pensamento social da Igreja é claro na defesa dos princípios do Estado social; como exemplo de intervenção sobre o actual momento, G.O.M. citava o nº 32 da encíclica “Caritas in Veritate”, de Bento XVI: “A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje, que as opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza e que se continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção. Bem vistas as coisas, isto é exigido também pela ‘razão económica’. O aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social — e, por este caminho, põe em risco a democracia —, mas tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do ‘capital social’, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil;
- estamos diante de uma nova era: as instituições que nos conduziram até aqui estão em falência e os novos poderes não estão credenciados nem são sujeitos ao escrutínio (Manuel Carvalho da Silva);
- no quadro actual, é necessário reforçar a justiça distributiva, ainda mais tendo em conta o aumento das desigualdades sociais;
- há uma profunda crise de confiança dos cidadãos no poder político e no poder financeiro;
- a austeridade está a provocar mais desigualdades e a criar situações insustentáveis para a vida de muitas pessoas; a situação é dramática para muita gente; as razões da crise estão mesmo no agravamento das desigualdades e no funcionamento dos mercados financeiros;
- se o Estado não servir para promover uma melhor justiça social e um futuro melhor para todos, não serve para nada (padre Lino Maia);
- Portugal é o país mais desigual da Europa e a Igreja não pode deixar de denunciar o sistema que permite esta realidade;
- a regulação dos mercados financeiros tem que ser mundial, como recordou recentemente o Conselho Pontifício Justiça e Paz;
- o primeiro princípio da doutrina social da Igreja, que é anterior ao direito à propriedade privada, é o do destino universal dos bens (A. Bruto da Costa);
- os princípios da doutrina social da Igreja não são, muitas vezes, assumidos ou aplicados nem sequer por responsáveis ou por instituições da Igreja; “os católicos não dão muita importância” à doutrina social da Igreja, apesar do seu carácter pioneiro em muitas matérias (Manuela Silva e Francisco Sarsfield Cabral);
- a riqueza da doutrina social da Igreja deveria ser apreendida pelo conjunto dos crentes, em ordem à mudança das estruturas e à mudança dos corações; mas isso só acontecerá se a própria Igreja respeitar a dignidade das pessoas e se viver a justiça, a solidariedade e a comunhão (Manuela Silva);
- o fundamento da esperança cristã é como um amigo que promete vir a nossa casa; essa promessa deve levar os cristãos à partilha, como quem coloca na mesa mais um prato para o amigo que prometeu vir (Alfredo Bruto da Costa);
- os cristãos devem propor e criar novos estilos de vida, a partir de experiência concretas que podem passar pelas redes de vizinhança e pelo apoio aos mais pobres;
- os políticos não valorizam a crise dos mais pobres, daqueles que têm fome e sofrem o desemprego ou não têm dinheiro para pagar a casa. 

A justiça como rosto social da caridade


Luciano Manicardi, monge do mosteiro de Bose, em Itália, disse esta manhã na Semana Social católica que a justiça é o rosto social da caridade e que a fome, a falta de abrigo e de trabalho "não toleram esperas"“A caridade é amor ao irmão, a justiça é amor dos direitos do irmão”, afirmou, defendendo a complementaridade entre as duas dimensões, uma ideia que, recorda, já vem expressa também na encíclica “Deus Caritas Est”, de Bento XVI.
Manicardi (na foto), autor de vários livros (alguns publicados em Portugal, como "Viver Uma Fé Adulta" ou "A Caridade dá que Fazer") acrescentou que, no Antigo Testamento, “a justiça nasce na ira, na raiva, na indignação perante a injustiça”. E mesmo Jesus “sabe mostrar que a ira é o outro rosto da compaixão”.
A importância destas afirmações destaca-se mais ainda num momento em que, em Portugal e na Europa, o debate, por vezes, opõe as duas dimensões. Se é importante ajudar a minorar a fome de quem tem fome, é igualmente (ou ainda mais...) importante criar estruturas sociais justas que permitam que as pessoas deixem de passar fome. Essas estruturas passam pelo emprego, salário justo, direito ao descanso e às férias, respeito pela dignidade de cada um, equidade e justiça fiscal, funcionamento transparente e eficaz do sistema de justiça.
Esta divisão entre as duas dimensões, defendida por tantos mesmo dentro da Igreja, pode estar no que já aqui chamei “as duas igrejas que nunca se encontram” – e que leva também à secundarização da acção social da Igreja, como ontem lamentava um padre, que tem um lugar de responsabilidade na estrutura de acção social católica.
Nesta Semana Social estão membros de instituições como a Cáritas ou a Comissão Justiça e Paz, de movimentos de operários e trabalhadores cristãos, de grupos como as Conferências de São Vicente de Paulo. Mas onde está, por exemplo, a Associação Cristã de Empresários e Gestores? Onde estão os economistas da Universidade Católica que defendem este modelo de governação baseado nos baixos salários, no desemprego e no poder dos “mercados”? Era importante colocar essas duas igrejas a encontrar-se e debater e a saber ler a doutrina social da Igreja para os tempos que vivemos.
Há outros desabafos que se ouvem entre participantes: a acção social é o parente pobre da acção da Igreja e uma iniciativa como a Semana Social apenas remedeia o que se passa. E há quem lamente que muitos padres não dêem a esta dimensão a mesma prioridade que dão à liturgia ou à catequese.
É verdade que nem sequer da parte do episcopado se vê o mesmo empenhamento que em outras realizações. Apesar de ser iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), apenas alguns bispos passam pela Semana Social – abaixo de Coimbra, por exemplo, não há um único bispo presente. E mesmo o presidente da CEP, cuja participação esteve prevista, cancelou-a por causa de um compromisso na Universidade Católica.
“Se fosse uma semana de liturgia, estaria cá muito mais gente e os padres mobilizavam-se mais”, diz o padre referido, ainda em desabafo, lamentando também a inexistência de grupos de acção social em muitas paróquias do país. Apesar de, ontem, o presidente da CNIS (Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade), padre Lino Maia, ter elogiado o papel desses grupos.
A economista Manuela Silva colocou outra questão: além do testemunho de uma vida pessoal, a Igreja precisa de dar um testemunho comunitário de um outro modo de viver. E como se faz isso hoje? Manicardi respondeu que a qualidade da comunidade foi um dos temas do recente Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização. O então cardeal Ratzinger falava há anos, recordou, do fracasso da catequese nos tempos modernos, com o êxito da educação individualista. É necessário, assim, narrar a vida de um Jesus vivo. "É preciso olhar para o espaço eclesial. Deve voltar a partir-se da vida religiosa para pretender o que significa vida comunitária. E devem formar-se pequenas comunidades, como dizia o cardeal Martini, que saibam dar espaço a grandes valores alternativos ao espaço mundano: primeiro lugar aos pobres, capacidade de reconhecimento da pessoa..."