sábado, 31 de março de 2018

Jorge Luís Borges: um traço da cara crucificada a espreitar em cada espelho




Luiz Cunha, Jesus Cristo Crucificado, escultura em espelhos 
na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, Póvoa do Valado/Mamodeiro, Aveiro (1967) 
(Foto reproduzida daqui)

Diodoro Sícolo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável, e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara do Deus de Jáen; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também o Filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na Sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu num subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.


Jorge Luís Borges, Paraíso, XXXI, 108, in O Fazedor

As vozes e os silêncios das mulheres em Sábado de Páscoa


Sojourner Truth (ilustração reproduzida daqui

Na história da Páscoa cristã, o Sábado é o dia das mulheres: Maria de Nazaré guarda, no silêncio, a história de um Filho que a surpreendeu desde o primeiro momento; Maria Madalena e as outras mulheres aguardam, no silêncio, o cumprimento da promessa daquele que elas seguiam, como discípulas, “desde a Galileia”, segundo o relato dos evangelhos – o que faz delas parte integrante do grupo de companheiros de Jesus.
Este texto traz, por isso, as vozes e os silêncios de várias mulheres. No passado dia 21 de Março, o movimento Nós Somos Igreja organizou, na Capela do Rato, uma sessão sobre o tema Celebrar a Mulher: Poesia e Prosa a Várias Vozes
Com o contributo de diferentes pessoas, ouviram-se textos, poemas e canções de mulheres ou que falam sobre mulheres, propostos, lidos ou cantados por António Carlos Cortez (poeta), Camané (fadista), Carlos Alberto Moniz (músico e cantautor), Carminho (fadista), Filipa Vicente (historiadora), Gilda Oswaldo Cruz (pianista e escritora), Jorge Wemans (jornalista), José Manuel Pureza (professor universitário e deputado), Luísa Beltrão (escritora), Luísa Ribeiro Ferreira (professora universitária de filosofia), Margarida Pinto Correia directora na Fundação EDP), Maria Antónia Palla (jornalista), Nelida Piñon (escritora), Simonetta Luz Afonso (museóloga) e Vitorino (músico e cantautor).
A gravação sonora da sessão pode ser escutada aqui.
O percurso de Sojourner Truth, nascida escrava negra como Isabella Baumfree, foi evocado por Filipa Vicente; pouco depois, José Manuel Pureza leu o discurso que a antiga escrava fez na Convenção das Mulheres do Ohio, em Akron (Estados Unidos), em 1851, com o título Não sou eu uma mulher? Um discurso que recusa o silenciamento e convida  à intervenção e ao compromisso, perante as perguntas fundamentais. Fica a seguir a reprodução integral desse texto:

Bem, meus filhos, onde há fumo há certamente fogo. Eu acho que se os negros do Sul e as mulheres fossem para o Norte, todos a falar sobre direitos, os homens brancos ficariam certamente em maus lençóis. Mas afinal de que é que estão todos a falar?
Ali, aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar as sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado, os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir às carruagens, a passar por cima dos buracos lamacentos, ou me dá o melhor lugar. E não sou eu uma mulher?
Olhem para mim! Olhem para os meus braços!

Filosofia da Eucaristia, dívidas às vítimas, fogo e novidade da Páscoa – textos para um dia de silêncio



Ilustração: Bernadette Lopez (Berna), reproduzida daqui

Os cristãos vivem neste Sábado Santo o dia do grande silêncio. Referem-se aqui quatro textos sobre o sentido destes dias de Páscoa.

No seu blogue, Domingos Faria escrevia sobre Um modelo da Eucaristia filosoficamente inteligível:

O que estou a defender é o seguinte: a presença de Cristo na Eucaristia, nos elementos do pão e do vinho, é um facto institucional que se obtém em virtude da sua instituição na última ceia pela declaração (...) do próprio Cristo. E isso é um evento novo que não ocorria antes dessa declaração. Ou seja, só passou a haver presença de Cristo na Eucaristia nos elementos do pão e do vinho depois dessa convenção institucional. (...)
Com esta argumentação, se for plausível, temos um modelo filosoficamente inteligível da Eucaristia e evitamos compromissos com teorias metafísicas muito controversas. O objectivo é ter um modelo filosófica e religiosamente adequado, bem como ontologicamente minimalista. Mas será isto plausível?

Sexta, no DN, sob o título Sexta-Feira Santa, Anselmo Borges reflectia acerca do sentido da Páscoa de Jesus:
Há uma dívida incomensurável para com as vítimas inocentes, aqueles e aquelas que não viveram, multidões de homens, mulheres, crianças, talvez a maioria, cuja existência foi esmagada pelo opróbrio, a miséria, a ignomínia, o esquecimento mortal. Elas clamam por justiça. Mas quem fará justiça? A Escola Crítica de Frankfurt foi decisivamente marcada por esta pergunta. Por isso, M. Horkheimer ansiava pelo "totalmente Outro"; W. Benjamin declarou que não é possível pensar a história sem teologia; Jürgen Habermas, neste contexto, escreveu, citando J. Glebe-Möller: "Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama Deus." Aquele que tudo pode recriar, a partir do nada, para a Vida.

No jornal Voz da Verdade, Vítor Gonçalves escreve sobre Ver e acreditar, tomando o Domingo da Ressurreição:
Vemos a generosidade dos que amam e servem com alegria,
e acreditamos que o Ressuscitado nos recorda como o Pai não desiste de ninguém.
Vemos a maravilha de inventores e criadores de beleza,
e acreditamos que o Ressuscitado leva o fogo do Espírito onde ainda é noite e faz frio.
Vemos os lentos passos para a justiça e para a paz,
e acreditamos que o Ressuscitado multiplica o nosso dom total. 

Também no mesmo jornal, Alexandre Palma escreve sobre a Novidade da Páscoa:
A Páscoa oferece-se, precisamente, como novidade. Assim a apresenta o próprio Ressuscitado: «Eis que faço novas todas as coisas» (Ap 21, 5)! Sendo passagem, ela é-o para uma «nova Jerusalém», para «odres novos», para uma «nova Aliança», para uma «nova humanidade», para uma «vida nova». Ela é profecia plena de uma novidade possível, porque simultaneamente seu anúncio e realidade. E é-o, ainda, na forma como o novo não é nela uma revolução, mas recriação. Nela se consolida, sim, essa confiança de que algo novo é desejável, de que algo de bom é possível. Mas também que tal se alcança pela transformação do que existe e não pela sua destruição ou, sequer, pela sua substituição. A vida nova do Ressuscitado é a transformação em Deus de toda a sua história precedente. Não é a sua anulação, mas a sua definitiva renovação.





sexta-feira, 30 de março de 2018

Músicas que falam com Deus (41 b): Olhar para as estrelas e cantar a Quaresma


César Prata e Sara Vidal (foto reproduzida daqui)

A inspiração veio do cientista Stephen Hawking: “Lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os vossos pés”. Por causa desse apelo, César Prata e Sara Vidal foram à procura de cantos da religiosidade popular do tempo da Quaresma. Desse trabalho resultou o disco Cantos da Quaresma, já aqui referido há dias e que nesta Sexta-feira Santa foi o tema de um programa da TSF, em que Manuel Vilas Boas entrevistou os dois músicos.
O disco alinha as músicas por ordem cronológica, de Quarta-Feira de Cinzas até às alvíssaras, aos aleluias e ao Domingo da Ressurreição. No programa, podem-se ouvir várias músicas do disco, intercaladas com explicações dos músicos.
Natural da Guarda, César Prata faz formação em instrumentos tradicionais, cultura popular e informática musical. Dedicado à recolha de património imaterial, é intérprete vocal e toca, entre outros instrumentos, guitarra, kalimba, sanfona, adufe e percussões.
Sara Vidal, originária da Nazaré, é licenciada em história moderna e contemporânea, na variante de gestão e animação, pelo ISCTE e com mestrado em gestão de Bens Culturais pela Universidade da Corunha. Fez parte dos Luar na Lubre, grupo galego de música tradicional e participa em diversos grupos de música tradicional portuguesa. É, também, intérprete de voz e toca harpa celta e adufe.
O programa pode ser escutado aqui.

O “Seder” de Páscoa: fazer perguntas, a base da liberdade


O Seder de Pessah (a ceia da Páscoa judaica) começa com perguntas, porque as perguntas são a base da liberdade, diz o rabi Eliahu Birnbaum. Falando neste vídeo, em castelhano, sobre a refeição ritual que recorda a saída dos israelitas do regime de escravatura a que estavam sujeitos no Egipto dos Faraós, o rabi Birnbaum acrescenta: “Uma pessoa que é um escravo não pode fazer perguntas”. “Fazer uma pergunta significa expandir-se, expandir o seu pensamento”, de modo a mudar o mundo e mudar-se a si mesmo”, acrescenta.
O rabi Eliahu Birnbaum é responsável do movimento Shavei Israel, que procura aproximar comunidades que se afastaram do judaísmo por circunstâncias diversas (aquipode ler-se uma entrevista, em castelhano, sobre esse trabalho).
No Seder (que é celebrado hoje, sexta-feira, 30 de Março, ou dia 14 do mês de Nisan do ano de 5778 do calendário hebraico), não se trata de fazer apenas perguntas informativas acerca do que aconteceu há uns 3200 anos atrás, acrescenta ainda Birnbaum. Mas também perguntas “pessoais e existenciais”, de modo a que cada um sinta que saiu também do Egipto – e não apenas os seus antepassados –, de forma a criar “um vínculo entre a nossa geração e a geração que saiu do Egipto”.
(aqui pode ouvir-se, com a tradução para português e em versão animada, uma interpretação de Echad Mi Yodea, a canção tradicional que as crianças entoam, no início da refeição de Seder.)