segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Desertos, cardeais, mulheres e as reformas do Papa

Crónicas


(foto reproduzida daqui)

No comentário aos textos bíblicos da liturgia católica deste último domingo, Vítor Gonçalves escreve, no jornal Voz da Verdade, sobre Os nossos desertos, a propósito da narrativa das tentações de Jesus no deserto:

Jesus é o novo Adão, o homem novo, que neste momento de crise, de ruptura com os modelos triunfalistas de Messias, une a natureza e o espírito. Ele oferece à condição humana, ferida por tantas divisões, fruto do egoísmo e do orgulho, um horizonte de comunhão, uma esperança que não nega as dificuldades mas as supera. Como se nos mostrasse a fonte escondida que cada deserto tem, e nos oferecesse, pela fidelidade a uma missão de serviço e confiança em Deus, o mapa para atravessar os desertos das nossas vidas.

O texto integral pode ser lido aquias crónicas anteriores, que não tinham sido referidas neste blogue, falaram da necessidade de tocar e ser tocado (textos do Domingo VI do Tempo comum), do quotidiano como lugar de aprendizagem da felicidade (Domingo V do Tempo Comum) e da missão de libertar e vencer o mal (Domingo IV do Tempo Comum)


Na crónica de domingo no Público, frei Bento Domingues escreve, sob o título Mudar radicalmente a religião (1):

Não tive condições para seguir as cerimónias que envolveram a nomeação dos novos “príncipes da Igreja”. Um amigo, pouco dado a críticas à hierarquia eclesiástica, manifestou-me, no entanto, o seu desapontamento. Daquilo tudo, só as palavras do Papa estavam ajustadas a um programa de reforma da cúria e da Igreja. Seria arcaico exigir dos novos cardeais vestes parecidas com as do carpinteiro de Nazaré. Mas aquele espectáculo era a reprodução de sempre do mau gosto purpurado. As delegações portuguesas, ao convidar o Papa para vir a Fátima, revelaram pouca imaginação e, até parece, uma oposição ao seu programa. 

O texto integral pode ser lido aqui. Nas crónicas anteriores, frei Bento tinha abordado, primeiro, a relação do declínio do cristianismo com a questão do papel das mulheres (As mulheres chegaram demasiado tarde?). Antes, em duas crónicas com o título As vantagens de não ser infalível, defendera a ideia que talvez o Papa Francisco ande a preparar um Concílio, a propósito de algumas linhas programáticas do seu pontificado e, de novo, falara do lugar das mulheres na Igreja Católica, a propósito do encontro do Conselho Pontifício para a Cultura acerca do mesmo tema.


Na penúltima crónica no DN, com o título Púrpura e periferias, Anselmo Borges falou da nomeação dos novos cardeais e, concretamente, do novo cardeal Manuel Clemente:

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Pedro Meca (1935-2015), o companheiro da noite: “Que palavra pode substituir a palavra revolução?”


Pedro Meca (foto reproduzida daqui)


Esteve em Lisboa em 1998, visitando organizações de apoio aos sem-abrigo. Numa delas, quando passava no sector da roupa, perguntou: “Onde está o espelho?” Não havia. Os sem-abrigo, os pobres, não têm direito a ver-se ao espelho? “Têm, o espelho faz mesmo falta. Há gente que não se vê inteiro há anos.”
“Romper com o assistencialismo” era a lógica proposta por este “companheiro da noite”, que morreu esta semana com 80 anos, em Paris. O funeral decorreu nesta manhã de sábado, na capela do convento de Saint Jacques, na capital francesa. Foi o “companheiro da noite dos que nada tinham, um mendicante”, disseram os dominicanos da província de França, anunciando a morte do homem que dedicou a sua vida a estar e viver com os mais pobres, ajudando-os a encontrar trabalho e a devolver-lhes a dignidade perdida e a autoestima.
A história do espelho contou-a Pedro Meca, nessa passagem por Lisboa, quando lhe fiz também uma entrevista (publicada no livro Deus Vem a Públicoed. Pedra Angular/Sistema Solar).
Pedro-Maria Meca  Zuazù nasceu em Villava, Pamplona (no País Basco espanhol, perto da fronteira com França), em 1935. Aos 17 anos foi para França com a família, acabando por se tornar frade dominicano. Conheceu ainda o Abbé Pierre, fundador dos Companheiros de Emaús, com quem trabalhou, como empregado de bar, no Claustro, um bar aberto para os sem-abrigo.
Em 1985, decidiu fundar a associação Companheiros da Noite que, sete anos depois, inaugurou na rua Gay-Lussac, no coração do Quartier Latin, de Paris, o bar La Moquette. O espaço, aberto até às cinco da manhã, destina-se a quem vive na rua e não tem sítios para conversar ou beber um café quente. Ali ninguém pode dormir, mas apenas sentir que pode estar. Conversando, fazendo silêncio, jogando às cartas, festejando aniversários, encontrando amigos e conhecidos ou, até, participando em debates regulares ou oficinas de escrita.

Um café numa chávena de louça e com colher de metal

No La Moquette, o café é sempre oferecido numa chávena com um pires e a respectiva colher de metal. “Os sem-abrigo diziam muitas vezes que o que tocavam ia sempre para o lixo”, explicava Pedro Meca.
Em cada Natal, recorda o serviço de imprensa das Obras Missionárias Pontifícias (OMP) de Espanha, Pedro Meca celebrava eucaristia numa tenda instalada no centro de Paris, e na qual participavam mais de mil pessoas sem casa. O La Moquette passou também a assegurar que as pessoas que morriam na rua, e cujo corpo não era reclamado por ninguém, tivessem um funeral digno. Muitos companheiros de rua do falecido participam nessas celebrações, proporcionando uma despedida digna ao falecido.  

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Queremos uma sociedade mais justa? – uma Sessão de Estudos promovida pelo Metanoia


(foto reproduzida daqui)

“O ponto de interrogação no título não é nada inocente. Ao regressarmos a este tema estamos conscientes de um certo cansaço, de alguma impaciência, de bastante desilusão, de uma dúvida crescente.” A afirmação pode ser lida na apresentação da Sessão de Estudos 2015, promovida pelo Metanoia – Movimento Católico de Profissionais e que decorre sábado e domingo da próxima semana (dias 28 de Fevereiro e 1 de Março), na Casa Diocesana de Vilar, no Porto.
O programa, que pode ser consultado aquiprevê a participação dos economistas Carlos Farinha Rodrigues e Manuela Silva e do juiz Álvaro Laborinho Lúcio. Farinha Rodrigues, que intervém às 10h45 de sábado, 28, fará um ponto de situação sobre as desigualdades em Portugal. Às 14h30, Manuela Silva intervém acerca do tema “De uma ‘economia que mata’ a uma economia mais justa”. Finalmente, às 16h45, Laborinho Lúcio fala sobre “Justiça Social e Cidadania – Caminhos para uma Sociedade mais Justa”. Um filme e um debate sectorial completam o programa.
O encontro propõe-se, segundo os organizadores, atingir quatro objectivos:
“1. Fazer um ponto de situação da sociedade portuguesa em matéria de justiça social, em vertentes como a distribuição de rendimentos e de oportunidades, os índices de pobreza, as virtualidades e os limites das políticas públicas aplicadas.
2. De forma particular, analisar algumas áreas específicas para perceber como estão a contribuir para a reprodução das desigualdades ou para a sua redução. Para tal, selecionámos áreas da educação, da saúde e do emprego/trabalho, sem prejuízo de contributos noutras áreas que os participantes queiram apresentar.
3. Tentar explicitar alguns subentendidos – antropológicos, filosóficos, políticos, teológicos -, procurando responder a perguntas como estas:
- Porque temos uma sociedade tão injusta?
- Porque devemos procurar uma sociedade mais justa?
- O que estamos dispostos a fazer para termos uma sociedade mais justa?
- Qual o lugar da ação pessoal, das organizações e do Estado?
4. Identificar perspetivas, caminhos e campos de intervenção que merecem mais atenção, conhecimento e ação.”
O texto de apresentação da iniciativa acrescenta ainda, sobre a contextualização da Sessão de Estudos, os seguintes enunciados:

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Músicas que falam com Deus (34) - Sem amor, nenhuns olhos são videntes - música de Arvo Pärt em Lisboa



“Sem amor, nenhuns olhos são videntes” é o mote para o concerto que se realiza esta sexta-feira, a partir das 21h00, na Sé de Lisboa. Com entrada livre (apenas sujeita à limitação do espaço), o momento alto do concerto será a estreia nacional da peça Drei Hirtenkinder aus Fatima (Três Pastorinhos de Fátima), da autoria de Arvo Pärt, um dos nomes de referência na música contemporânea e talvez o mais importante compositor actual de música sacra. 
A estreia coincide com o dia da festa litúrgica dedicada a Jacinta e Francisco Marto, os dois videntes de Fátima beatificados em 2000 pelo Papa João Paulo II, na sua última viagem ao santuário português. A peça é uma encomenda ao compositor estoniano no contexto da celebração do centenário dos acontecimentos de Fátima.
De acordo com informações do Santuário, Alfredo Teixeira, consultor artístico para o referido concerto, aponta as “caraterísticas singulares” do concerto, que se apresenta “sob o signo do paradoxo”, a começar pelo facto de o recital de Arvo Pärt, a “mais frágil das obras, a menor em duração, porventura a mais simples quanto ao material musical”, se oferecer “como o lugar culminante de uma viagem musical”.
Drei Hirtenkinder aus Fatima, peça escrita em alemão, “sinaliza esse ethos cristão que apela a uma visão do mundo na perspetiva dos mais frágeis, lugar onde o ingénuo é reconhecido como o mais sábio, o excluído toma os primeiros lugares, o sem voz pode ser escutado”, acrescenta Alfredo Teixeira.
Para esta peça, o compositor escolheu um versículo do Salmo 8, na versão que aparece no Evangelho de Mateus (21,16): “Pela boca dos meninos e das criancinhas de peito tiraste o perfeito louvor”.

Arvo Pärt, uma espiritualidade intemporal

Entre as obras de Arvo Pärt podem destacar-se Passio, Da Pacem, Lamentate, Orient Occident, Tabula Rasa ou várias sinfonias. Sobre Lamentate, por exemplo, o próprio compositor escreve que a sua peça tenta reflectir o esbatimento da fronteira entre o temporal e o intemporal. Quando se escuta a música do estoniano, a experiência que temos é de facto a desse esbatimento: as suas peças traduzem uma espiritualidade intensa, quase intemporal, mas enraizada no tempo. 

João Gonçalves, o padre das prisões

Há muitos anos, mais de 40, que o padre João Gonçalves bate às portas das prisões. Tudo começou com um grupo de jovens que queria conversar com presos para reflectir depois nas suas reuniões. Passado este tempo, continua a dizer que se sente querido pelos presos com quem fala. “Pena que nem sempre tenhamos todo o tempo que eles precisam para lhes darmos: o tempo da escuta, tempo da atenção e o tempo da reciprocidade e do diálogo”, dizia ele, numa entrevista a Manuel Vilas Boas, que deve ser ouvida, emitida na TSF a 22 de Dezembro de 2013
Nesta entrevista, João Gonçalves defende que o ideal seria substituir a pena de prisão por outras penas. Os criminosos deveriam ser tratados, diz, e o crime deveria ser prevenido.
Como capelão, João Gonçalves entrou muitas vezes no Estabelecimento Prisional de Aveiro, apenas para conversar com os presos. Não se lembra, garante, de alguma vez ter perguntado a alguém a razão de estar detido numa cadeia.
O padre João, como é tratado por tantos, é alguém que impressiona pela sua humanidade, proximidade e simplicidade desarmantes. Já foi pároco de Nossa Senhora da Glória (onde está a Sé de Aveiro) e desempenhou (desempenha) muitos cargos na diocese de Aveiro e a nível nacional. Entre eles, o de vigário episcopal para a pastoral social. Responsável actual da Pastoral Penitenciária da Igreja Católica, continua a apresentar-se como um homem de escuta.


A sua vida como capelão de cadeias é o tema do documentário O Padre das Prisões (o vídeo de apresentação pode ser visto acima), realizado por Daniela Leitão, com guião de Inês Leitão. Esta sexta-feira, entre as 0h e as 24h (ou seja, a partir da meia-noite de quinta-feira), o filme estará disponível no Facebook, a pretexto do Dia Internacional da Justiça Social. Depois disso, para já, só poderá ser visto na sessão de apresentação pública do filme, no edifício da antiga Capitania de Aveiro, às 16h de sábado – sessões semelhantes serão promovidas em Lisboa, Porto e Braga, por enquanto sem datas marcadas.
(Nesta outra entrevista, à TVI, o padre João Gonçalves conta algumas histórias da sua vida como capelão prisional.)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

D. Manuel Clemente: ideias sobre a actualidade e as memórias da infância e do estudante


Manuel Clemente no jardim de casa da família

A propósito da sua nomeação como cardeal, D. Manuel Clemente deu uma entrevista a Joaquim Franco, da SIC, em que dá a conhecer aspectos do seu pensamento sobre temas da actualidade como o islão, a situação na Grécia e em Portugal, o eventual acesso dos divorciados à comunhão depois de voltarem a casar e da adopção por casais homossexuais.
Na entrevista, o patriarca de Lisboa afirma ter “dificuldade em acreditar” que o filho de um casal homossexual “apreenda tão facilmente como outra criança que a complementaridade de sexos é importante para a realização de uma humanidade total”.
Uma das outras questões que tem estado em debate, nomeadamente no Sínodo sobre a Família, é a do acesso dos divorciados à comunhão, depois de voltarem a casar. “A misericórdia não exclui a responsabilidade”, diz D. Manuel Clemente sobre o tema, preferindo a anulação do primeiro matrimónio: “Se o matrimónio não é nulo, é válido, e se é válido, continua.”
Sobre o papel das mulheres na Igreja, afirma que não vê dificuldade em que elas assumam dicastérios na Cúria Romana, mas diz que o sacerdócio é para os homens: “Igualdade não quer dizer indistinção”, diz o patriarca, acrescentando que não aceitaria facilmente concelebrar com uma mulher no altar e dizendo que “não é indistinto que Cristo se tenha apresentado masculinamente”.
Confessando a sua “grande ignorância” sobre as questões da Cúria Romana, afirma que esta estrutura “juntou muita coisa ao longo dos séculos que é dispensável”.
Os atentados de Paris, a liberdade de expressão e a blasfémia são outra das questões abordadas na entrevista, a par da situação na Grécia depois da vitória do Syriza e da realidade portuguesa durante a crise.
A entrevista pode ser vista aqui na íntegra.

Num outro trabalho, de Rosário Lira, na Antena 1, dá-se a conhecer o percurso de Manuel Clemente, “de menino a cardeal”. Aqui se fala da boa disposição do patriarca de Lisboa, da sua proximidade e do lado mais pessoal, que acaba por influenciar aquilo que ele é, enquanto padre e, depois, como bispo.
A reportagem pode ser ouvida aqui.

Na Renascença, está também disponível um outro trabalho em vídeo e texto, de Matilde Torres Pereira e Joana Bourgard, que recorda sobretudo a infância e os tempos de estudante de Manuel Clemente.
A reportagem pode ser lida e vista aqui.

Frei Bento Domingues na Católica (Porto) a debater terrorismo religioso e sociedade moderna

Agenda

Mês e meio depois dos atentados contra a redacção do Charlie Hebdo, em Paris, e quando continuam a chegar notícias de execuções de cristãos pelo chamado Estado Islâmico, a Universidade Católica debate, no seu pólo do Porto, a questão do terrorismo de base religiosa.
Integrado o ciclo EuroInfoLiteracia, o debate conta com a intervenção de frei Bento Domingues, que falará sobre o papel das religiões e a relação entre a sociedade e as diferentes crenças.
O debate decorre a partir das 11h30 desta quinta-feira, dia 19, no campus da Foz da Católica Porto. O ciclo EuroInfoLiteracia integra oito debates com oradores “de renome internacional para, mensalmente, conduzirem uma sessão centrada numa temática europeia”. O debate é aberto e gratuito, mas sujeito a inscrição obrigatória.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Ir a Roma e ver os sem-abrigo

Crónica

No DN de hoje, Miguel Marujo escreve a propósito da homilia de ontem do Papa Francisco, e dos sem-abrigo que rodeiam a Praça de São Pedro: 

É ditado popular que nem todos cumprem: ir a Roma e ver o Papa. Mas é impossível não ver os sem-abrigo, nos quais quase tropeçamos nas arcadas de edifícios do Vaticano e da Cidade Eterna. São muitos, tapados por cobertores, que escondem o rosto e a miséria. De dia, vê-se que esses muitos são também imigrantes que procuraram na Europa a vida que a guerra, a fome e a pobreza lhes roubaram nos seus países de origem. (...)
Talvez os governantes europeus devessem vir mais a Roma, mas não para ver o Papa.

(o texto integral pode ser lido aqui)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

A homilia do Papa Francisco no consistório: três palavras, duas lógicas e um desafio

São três palavras – compaixão, marginalização e integração – para retratar “duas lógicas de pensamento e de fé: o medo de perder os salvos e o desejo de salvar os perdidos”. E um desafio: que os cristãos “não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial”.
Na homilia desta manhã, na Basílica de São Pedro, o Papa dirigiu-se aos novos cardeais – entre os quais o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e o bispo de Santiago (Cabo-Verde), D. Arlindo Furtado – para lhes dizer que a sua credibilidade e a da Igreja se descobre e revela “no evangelho dos marginalizados”.
Num texto de apelos muito fortes, o Papa disse que os cristãos não podem ser uma casta, que Jesus não temeu preconceitos nem escândalos, que a Igreja não deve condenar “eternamente ninguém”. Antes, acrescentou, deve “arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo”, defendendo que a caridade não é neutra ou indiferente e o contacto é a “verdadeira linguagem comunicativa”. 
Ao concluir a homilia (que pode ser lida aqui na íntegra), o Papa Francisco afirmou: “Exorto-vos a servir a Igreja de tal maneira que os cristãos – edificados pelo nosso testemunho – não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial. Exorto-vos a servir Jesus crucificado em toda a pessoa marginalizada, seja pelo motivo que for; a ver o Senhor em cada pessoa excluída que tem fome, que tem sede, que não tem com que se cobrir; a ver o Senhor que está presente também naqueles que perderam a fé, que se afastaram da prática da sua fé ou que se declaram ateus; o Senhor, que está na cadeia, que está doente, que não tem trabalho, que é perseguido; o Senhor que está no leproso, no corpo ou na alma, que é discriminado. Não descobrimos o Senhor, se não acolhemos de maneira autêntica o marginalizado. Recordemos sempre a imagem de São Francisco, que não teve medo de abraçar o leproso e acolher aqueles que sofrem qualquer género de marginalização. Verdadeiramente, amados irmãos, é no evangelho dos marginalizados que se joga, descobre e revela a nossa credibilidade!”
O Papa Bergoglio tomou o texto do evangelho da missa, que conta o episódio da cura de um leproso, para se referir três palavras-chave: a compaixão, que “leva Jesus a agir de forma concreta: a reintegrar o marginalizado”.
Sobre a marginalização, Francisco referiu o modo como eram tratados os que sofriam a doença da lepra: “o leproso suscita medo, desprezo, nojo e, por isso, é abandonado pelos seus familiares, evitado pelas outras pessoas, marginalizado pela sociedade; mais, a própria sociedade o expulsa e constringe a viver em lugares afastados dos sãos, exclui-o.” A finalidade da legislação de Moisés, que permanecia no tempo de Jesus, era a de “‘salvar os sãos’, ‘proteger os justos’ e, para os defender de qualquer risco, marginalizava ‘o perigo’ tratando sem piedade o contagiado”

Jesus revoluciona e sacode

Para contrariar esta situação, o Papa propôs uma atitude de integração, à semelhança do que Jesus faz: “Jesus revoluciona e sacode intensamente aquela mentalidade fechada no medo e autolimitada pelos preconceitos.” Mais: “Jesus, novo Moisés, quis curar o leproso, quis tocá-lo, quis reintegrá-lo na comunidade, sem Se ‘autolimitar’ nos preconceitos.”
Jesus, acrescentou Bergoglio, não se preocupou com o contágio, nem adia a resposta com o argumento de que vai “estudar a situação”. O que lhe importa é “reintegrar a todos na família de Deus”, sem se preocupar com qualquer escândalo.
Neste capítulo, as palavras do Papa não foram meigas, como já é habitual: “Jesus não teme este tipo de escândalo. Não olha às mentes fechadas que se escandalizam até por uma cura, que se escandalizam diante de qualquer abertura, qualquer passo que não entre nos seus esquemas mentais e espirituais, qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensar e à sua pureza ritualista. Ele quis integrar os marginalizados, salvar aqueles que estão fora do acampamento”.
O Papa retirava assim a conclusão inevitável: “Trata-se de duas lógicas de pensamento e de fé: o medo de perder os salvos e o desejo de salvar os perdidos. Hoje, às vezes, também acontece encontrarmo-nos na encruzilhada destas duas lógicas: a dos doutores da lei, ou seja marginalizar o perigo afastando a pessoa contagiada, e a lógica de Deus que, com a sua misericórdia, abraça e acolhe reintegrando e transformando o mal em bem, a condenação em salvação e a exclusão em anúncio.”
Estas duas lógicas percorrem toda a história da Igreja, continuou Francisco, para quem o caminho deve ser “sempre o de Jesus”: a misericórdia e a integração. “Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas ‘periferias’ da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus.”

Nesta lógica, “a caridade não pode ser neutra, indiferente, morna ou esquiva”, antes “contagia, apaixona, arrisca e envolve”, é criativa e encontra “a linguagem certa para comunicar com todos aqueles que são considerados incuráveis e, portanto, intocáveis”. O contacto, acrescentou o Papa, “é a verdadeira linguagem comunicativa, a mesma linguagem afectiva que comunicou a cura ao leproso”. E, voltando-se para os novos cardeais agora nomeados, Francisco disse que “este é o caminho da Igreja: não só acolher e integrar, com coragem evangélica, aqueles que batem à nossa porta, mas ir à procura, sem preconceitos nem medo, dos afastados revelando-lhes gratuitamente aquilo que gratuitamente recebemos.