domingo, 26 de dezembro de 2004

[Natal]

Que palavras poderei buscar para vos aquentar o coração? Um santo, no sermão desta festa, bradava: ? Oh! que nenhumas palavras acho com que possa falar da Palavra Eterna e Verbo Encarnado! Assim eu também não vos sei declarar o que havemos de sentir deste suavíssimo Nascimento. Porém, quero-vos pôr uma comparação. Se houvesse muitos anos que o sol não nasceu nem apareceu nas terras, e estivéssemos todos não somente às escuras e em espessas trevas mas também carregados de ferro, tremendo com frio e em suma tristeza, e, estando assim, subitamente nascesse o sol mui resplandecente, alumiando-nos, aquentando-nos, quebrando nossas cadeias e prisões, que vos parece quão grande alegria e consolação seria a nossa?

Pois, irmãos, tais éramos, espiritualmente, antes que nascesse o sol que hoje nasceu e veio alumiar as trevas e cegueira de nossa alma; veio aquentar a frieza de nosso coração, o qual estava feito um regelo no amor de Deus e das cousas eternas; veio quebrar as cadeias de nossos pecados. (...)

As maravilhas desta clara noite excedem todas quantas viram os antigos Servos de Deus: porque, como diz um Santo, os nossos padres antigos muitas e grandes maravilhas de Deus viram. O Céu lhes orvalhou manjar de Anjos para seu mantimento. O Mar Roxo se lhes abriu em carreiras para que pudessem passar a pé enxuto. O rio Jordão se retirou para a fonte donde nascia para lhes dar livre passagem. Os muros fortíssimos da cidade de Jericó caíram subitamente a som de trombeta. O Sol se deteve no Céu por um grande espaço sem se mover, para que o povo de Deus, que pelejava contra seus inimigos, acabasse de os destruir. Estas e outras maravilhas viram: mas não lhes foi dado ver a verdadeira Luz Eterna, coberta com a nuvenzinha de carne de menino e posta em um presépio por amor de nós.

Bartolomeu dos Mártires
[extracto do Catecismo distribuído no sínodo bracarense de Novembro de 1564. in Antologia de Espirituais Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional ? Casa da Moeda, 1994]
=brigado ao Eduardo Jorge, pela descoberta.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

A experiência de Taizé

Luís Sousa Lobo
Engenheiro. Ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa

OPapa João Paulo II, quando visitou Taizé, deixou uma imagem «Passa-se por Taizé como por uma fonte. O viajante pára, mata a sede e prossegue a viagem». Mas o que há afinal de especial nessa comunidade, localizada numa pequeníssima aldeia da Borgonha, que desafia a lógica urbana e o ritmo trepidante da civilização moderna? Porque é que tantos jovens, ano após ano, década após década, geração após geração, continuam aos milhares a acorrer a Taizé, para uma semana de reflexão e vida em comum? E porque virão a Lisboa dentro de dias 40 mil jovens de toda a Europa, respondendo ao apelo da Comunidade de Taizé, para o Encontro Europeu?
Não é fácil responder em poucas palavras, mas vou procurar dar a minha explicação, de maneira sintética, recorrendo, por comodidade, a palavras-chave.
Acolhimento, sem proselitismo. Em Taizé há um sentido de acolhimento e de respeito pelos visitantes. Não há proselitismo; ninguém está a aproveitar para doutrinar. Pelo contrário, logo à chegada, são os visitantes que indicam o programa que querem escolher para marcar o ritmo dos seus dias em Taizé, que pode ir desde a participação em grupos de discussão, estudos bíblicos, encontros intercontinentais até ao retiro pessoal em silêncio. Neste caso podem pedir um acompanhamento de um irmão. Mas o programa é livre.
O único traço comum dos programas são os três momentos de oração em comum, de manhã, ao meio-dia e à noite. Mas também aí há, sobretudo, o apelo à reflexão pessoal - não há grandes homilias ou discursos apologéticos. Não faz parte da cultura de Taizé. O acolhimento em Taizé significa, sobretudo, um grande respeito por cada pessoa, pelo seu percurso de vida. Lançam-se pistas de reflexão, não se dão respostas, mas há uma grande disponibilidade para ajudar a encontrar respostas para cada um. É isto que observo sempre que visito Taizé e que acho o traço principal da sua cultura de acolhimento.
Sobriedade, bom gosto com simplicidade. Ao longo dos anos o espaço público em Taizé foi-se alargando e adaptando ao número crescente de visitantes. Hoje em dia, nas épocas altas (Páscoa e meses de Verão), os visitantes atingem os 6000 em cada semana, com chegada habitual ao domingo à tarde e partida no domingo seguinte pela manhã. Em Taizé, dentro e fora das casas, tudo é bonito e simples. Há uma harmonia que sabe bem. Na loja podem comprar-se lembranças de arte, de música, de peças de uso doméstico ou livros, em que o estilo simples de Taizé se reconhece em tudo. A comunidade não aceita doações nem heranças, e é com esta actividade que equilibra o orçamento.
Organização eficiente, mas quase invisível. Como é possível juntar 30 ou 40 mil jovens durante cinco dias numa cidade europeia sempre diferente, ou 6000 jovens com rotação semanal em Taizé, sem uma logística pesada e cara? O segredo é uma organização que se foi apurando ao longo dos anos, com a intermediação de voluntários, jovens que, em geral no final dos seus estudos, dão um tempo da sua vida para ajudar os outros através do acolhimento que se vive em Taizé. Além disso, entre cada revoada de visitantes, muitos jovens disponibilizam-se, enquadrados pelos referidos voluntários, para executarem as tarefas de apoio indispensáveis nas estruturas de alimentação, limpeza, apoio médico, etc. Esta capacidade de auto-organização fica em segundo plano, quase invisível, mas as condições de acolhimento e de apoio de todos ficam asseguradas. Tudo anda sobre rodas.
Ecumenismo prático, discreto. O sentido ecuménico é central nesta comunidade, pois constituiu o principal elemento motor para o fundador, o Irmão Roger, e o grupo que no final dos anos 40 se lhe juntou. Este ecumenismo surpreende os que põem ênfase nas diferenças entre as Igrejas cristãs. Os irmãos acabam por falar pouco de «ecumenismo», palavra talvez demasiado técnica, pondo o acento sobre a busca de caminhos de compreensão e de reconciliação nos locais onde cada um vive.
Os irmãos vêm de tradições cristãs diferentes, mas fazem os mesmos votos. Os visitantes pertencem também a tradições cristãs diferentes, ou a nenhuma, mas juntam-se com naturalidade na mesma liturgia, nas mesmas orações. Em Taizé fica óbvio que o que une as Igrejas cristãs é muitíssimo maior do que o que as divide. Ainda que o pouco que divide seja tantas vezes o que é «posto na lapela» como marca distintiva. Mas esse «clubismo» em Taizé quase desaparece. O estilo dos cânticos, a presença dos ícones, o apelo aos traços mais profundos da espiritualidade cristã constituem em Taizé uma plataforma em que todos os cristãos se sentem à-vontade - certamente com algum depuramento em relação às fórmulas a que estarão habituados. Mas essa é uma roupagem a que todos se adaptam sem dificuldades, e que acentua o sentido de universalidade e a esperança de mais paz para a Humanidade.
Sentido de Deus pelo silêncio interior. A busca de Deus ou do sentido da vida, em Taizé, é marcadamente pessoal, apesar de transparecer que a fé não é individualista, é para ser vivida com outros. Há, contudo, um grande respeito pelo outro, não havendo grandes sensacionalismos ou emoções públicas. Tudo se passa no silêncio e no coração de cada um. A liturgia e o lugar ajudam. Tudo simples e despojado. Cânticos simples e repetitivos, um pouco ao gosto das Igrejas orientais, que ajudam à reflexão interior, intercalados por períodos de silêncio longos, com durações impensáveis em qualquer das nossas celebrações - mas que é um elemento essencial no ritmo de Taizé. A procura de Deus e do sentido da vida faz-se no encontro de cada um consigo próprio, na reflexão e no silêncio, e nos encontros na partilha, na entreajuda, na descoberta de outras culturas, de outras vocações, de outras realidades. Com disponibilidade para ouvir, compreender, descobrir.
É talvez por tudo isto que, em muitas universidades nos EUA e diversos outros países, os jovens usam as «noites de oração» ao estilo de Taizé como a forma conveniente para trazer ao gosto pela vida interior os jovens que o desejem. A minha avaliação é que o espírito da Comunidade de Taizé vai muito para além da sua raiz ecuménica. Dá um exemplo da busca do sentido da vida, neste caso na perspectiva cristã, de uma forma em que o fanatismo não só não está presente como perde o sentido. A esperança no futuro e a paz encontraram em Taizé uma linguagem bastante universal.
Esta é uma contribuição inestimável no mundo de hoje. Entre os irmãos há ingleses e alemães, mas também indianos e coreanos. Há norte-americanos e canadianos, mas também dois portugueses. Estão lá presentes, a todo o tempo, os problemas do mundo. E a visão do mundo que Taizé transmite é uma visão solidária, de paz e de esperança.
Se a esperança é a marca da juventude, percebe-se porque é que tantos, sobretudo jovens, vão a Taizé «como se vai a uma fonte para matar a sede e prosseguir a caminhada».
Não sei se o meu retrato de Taizé ficou muito incompleto, esquemático ou redutor. O melhor mesmo, para quem não conheça, é experimentar. E a partir do próximo dia 28, durante cinco dias, Taizé está connosco em Lisboa - uma oportunidade rara.

In Diário de Notícias, 21.12.2004

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

...but so quickly

"Sometimes, there is God. But so quickly"
Blanche DuBois na peça de Tennessee Williams "A Streetcar Named Desire", da única vez que lhe parece acontecer uma coisa boa.
Cit por João Bénard da Costa, in Público, 17.12.2004