sábado, 28 de fevereiro de 2009

Integristas dizem que NÃO estão prontos para reconhecer o Concílio Vaticano II

Nesta sexta-feira, houve desenvolvimentos no trágico caso do bispo negacionista Richard Williamson. O Vaticano fez saber, através do seu porta-voz, que o suposto pedido de desculpas formulado pelo bispo não chega - podem ler-se aqui os pormenores. Ao fim do dia, o superior da Fraternidade Sacerdotal São Pio X era citado pela France Presse, afirmando que o grupo que dirige "não" está pronto a reconhecer o Concílio Vaticano II. A entrevista foi dada quinta-feira ao "Courrier" de Genebra e a pergunta era clara: "A Fraternidade está pronta a reconhecer o Vaticano II?" A resposta também: "Não."

Depois disto, continua sem se perceber o que faz correr o Papa. O desejo de unidade? Qual unidade? Com quem há mais de quatro décadas rejeita o essencial da herança do Vaticano II? A Santa Sé já cedeu à possibilidade de celebrar a missa em latim; cedeu depois no levantamento da excomunhão. A Fraternidade insiste em que não está pronta para reconhecer a herança conciliar. Tudo isto soa estranho. E mais ainda: se agora o movimento integrista viesse dizer que, afinal, aceita o pensamento do Vaticano II, que significaria isso? Que os seus membros andaram 40 anos enganados? Que aquela questão essencial que os levou a contestar as mudanças no catolicismo não passa, afinal, de um pormenor pouco importante? Que tudo vale em nome de um estranho conceito de unidade?

Tudo isto soa muito estranho.

Autocarros ateus e cristãos

Anselmo Borges refere-se, na sua crónica no DN deste sábado, à "guerra" de autocarros sobre Deus que tem chegado a várias cidades europeias.


O slogan "Deus provavelmente não existe. Deixe, pois, de se preocupar e goze a vida", que tinha começado por percorrer Londres, chegou à Espanha, nomeadamente a Barcelona e a Madrid, devendo alcançar outras cidades espanholas.

Como já aqui escrevi, trata-se, antes de mais, de um acto de liberdade de expressão. No quadro do respeito pela lei, todos têm direito a manifestar as suas opiniões e crenças. Este direito é, evidentemente, extensivo aos ateus.

Depois, é interessante que no "cartaz" se leia: "provavelmente". Não se diz que não há Deus, diz-se que "provavelmente" não há. Isto significa que os autores dos cartazes perceberam que não podem demonstrar a não existência de Deus. A afirmação da existência de Deus ou da sua não existência não é objecto de ciência, pois não pode haver verificação empírica. O ateu não pode dizer que "sabe" que não há Deus; ele apenas pode dizer que "crê" que não há Deus. Como o crente também não "sabe" que Deus existe; ele "crê" que Deus existe.

E entende-se todo este movimento ateu, que deve obrigar os crentes a pensar. Não foram frequentemente os crentes que deram uma imagem de Deus que obrigava ao ateísmo? Não se deve ser ateu face a um Deus mesquinho e ridículo - pense-se, por exemplo, no criacionismo americano, segundo o qual os primeiros capítulos do Génesis devem ser tomados à letra -, invejoso da alegria dos humanos e impedindo a sua realização e felicidade?

É precisamente o que se dá a entender na segunda parte do slogan: "Deixe de se preocupar e goze a vida." Deus aparece como impedindo a alegria de viver, de tal modo que a probabilidade da sua não existência seria o pressuposto para finalmente se viver de modo expansivamente humano.

Isso deve levar os crentes a reflectir, pois, embora seja fonte de vida, de salvação e realização plena da existência, de facto, muitas vezes foi pregado um Deus que amesquinha a vida, um Deus incompatível com a ciência, um Deus vingativo - ele até apanharia os ateus no inferno... -, um Deus desgraçadamente invocado para legitimar o que é contra Deus: a violência, o terrorismo, a guerra.

Mas também é preciso perguntar aos autores dos cartazes: que entendem por "deixe de preocupar-se e goze a vida"? Seja como for, crentes e não crentes têm de viver com responsabilidade e empenhar-se na luta por uma vida boa e justa para todos.

O lema do cartaz programado para a Itália pela União de Ateus e Agnósticos Racionalistas seria: "A má notícia é que Deus não existe. A boa é que não é preciso."

Parece que foi impedido pelas autoridades. Lamentavelmente, pois esta publicidade dos autocarros ateus obriga toda a gente a pensar e é bom e urgente pensar no mais importante. O pior é não pensar, não se interrogar. A pergunta por Deus, seja para afirmá-lo seja para negá-lo, é a pergunta maior e é mesmo o fundamento da dignidade humana. O ser humano é digno, porque pode perguntar pelo Infinito.

Mas, afinal, Deus não é preciso? Também o crente reconhece que Deus não pode ser um tapa-buracos, a compensação para a nossa ignorância e impotência, a legitimação ideológica da ordem social e política ou a chave de abóbada de um sistema.

De qualquer modo, Deus tem a ver com o sentido último e a salvação. Foi talvez neste quadro que Nietzsche, sete anos antes de enlouquecer, escreveu a Ida, mulher do amigo F. Overbeck, pedindo-lhe que não abandonasse a ideia de Deus: "Eu abandonei-a, não posso nem quero voltar atrás, desmorono-me continuamente, mas isso não me importa." Como escreveu Wittgenstein, "crer num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida, ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer que a vida tem um sentido".

Nas ruas de Madrid, compareceram também autocarros cristãos: "Deus existe. Desfruta a vida em Cristo." Claro que há esse direito. Mas seria lamentável uma "guerra" de cartazes. Os crentes devem sobretudo testemunhar Deus pela vida, pelo combate a favor da justiça, pelo amor. E é também fundamental uma pastoral da inteligência, no diálogo entre a fé e a razão.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Tempo de mudança

"Num momento alinhado com o medo, o simbólico religioso surge como estímulo", escreve aqui Joaquim Franco. "Jejum, renúncia e conversão. Na urgência de rigor, moderação e mudança. Ecoa no simbólico religioso a lição da passagem - Pessah, Páscoa - que se faz no final de uma caminhada. Uma passagem que implica uma paragem. Um tempo para ver por dentro e de dentro. Parar e escutar não deve ser uma atitude exclusiva de um crente ou de uma religião. É acertar o tempo com o espaço. Regular a expectativa a partir da experiência adquirida. Deixar que se manifeste o poder do silêncio, quando o tempo intransmissível carece de espaço próprio. Quando a poluição do quotidiano impede a razão."

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Do não reconhecimento nas cidades

"(...) Talvez o mal-estar e a solidão das vidas que vivemos, talvez os nossos trajectos cambaleantes e meio sonâmbulos, o sem porquê de tamanhas colisões nasçam daqui: de não reconhecermos já, na topografia alterada e massificante das cidades, os traços do sítio onde nascemos. A própria arquitectura não só trabalha pouco a questão da memória, como parece muitas vezes um elogio ao esquecimento. Para não falar das habitabilidades pouco pensadas, da desolação das periferias e do próprio centro. Olhamos em redor e a própria cidade desmantela rapidamente o que até há pouco fomos. É pouco provável que ao cruzar a rua nos corra ao encontro a própria infância".

José Tolentino Mendonça, Pagina 1, 26.2.2009

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Igreja deve dar à mulher protagonismo que até agora lhe negou

No Público de dia 23 de Fevereiro, o biblista e teólogo e antrópólogo Carlos Gil Arbiol fala sobre as primeiras comunidades cristãs e São Paulo, numa entrevista de António Marujo:

A Bíblia tem que ser lida com o contributo das ciências sociais, diz Carlos Gil Arbiol, biblista que recorre à antropologia cultural para entender o cristianismo da primeira geração. O que o leva a dizer que São Paulo se opunha ao culto ao imperador e que chegará o momento em que as mulheres recuperarão o papel de liderança que tiveram nas comunidades organizadas por Paulo.

Frade capuchinho, professor na Universidade de Deusto, no País Basco (Espanha), Carlos Gil Arbiol especializou-se na área da Bíblia e antropologia cultural dos primeiros tempos do cristianismo. Autor de vários livros e artigos em revistas da especialidade, Arbiol, de 37 anos, esteve na Universidade Católica, onde fez três conferências (Lisboa, Porto e Braga). No último número da revista da Faculdade de Teologia, Didaskalia, é possível ler um dos seus textos.

Tem olhado para as origens do cristianismo a partir da antropologia. A teologia precisa deste contributo?

CARLOS GIL ARBIOL - A teologia necessita das ciências sociais, porque elas permitem enraizar o evangelho na cultura em que ele nasceu. A fé cristã e a Igreja não são realidades etéreas, caídas do céu, são formuladas num lugar e numa cultura concreta. E devem ir-se adaptando a essas culturas, para expressar a originalidade do evangelho, para reformular e encontrar outros modos de expressar o mesmo.

A antropologia pode ajudar-nos a compreender a Bíblia de outro modo?
Claro. Por exemplo, as cartas de Paulo reformulam o evangelho de um determinado modo. As figuras literárias que Paulo utiliza, as metáforas, a forma de construir as comunidades - tudo está em função de uma cultura: a importância da honra e da vergonha, da pureza e da impureza, do patronato e da clientela... são elementos que condicionaram a formulação dos textos bíblicos.

Ecclesia era um conceito político quando Paulo o adaptou. A Igreja nasceu como realidade política?
Em torno de Jesus e de Paulo, quando nasce o movimento cristão, não há uma distinção entre o âmbito religioso e político. O culto ao imperador tem uma dimensão religiosa mas está indissoluvelmente unido à política. Do mesmo modo, as comunidades de Paulo tinham uma dimensão religiosa, mas também política. O religioso e o político estavam fundidos, tal como o religioso e o doméstico.
A diferença de hoje entre religioso e laico não existia, existia entre político e doméstico. A religião não tem uma dimensão exclusivamente doméstica. Não era uma religião para a casa, mas para transformar a sociedade.

O cristianismo começou por transformar os modelos que existiam - desde logo, os patriarcais.
Sim. O cristianismo primitivo foi assimilando certos modelos para ser relevante no seu contexto cultural. E um desses modelos foi o de família patriarcal. Onde melhor se percebe a assimilação desses modelos é nas cartas deutero-paulinas: morto Paulo, os seus discípulos continuaram desenvolvendo a sua tradição e assimilam definitivamente o modelo patriarcal.
É nessas cartas que aparecem as listas de comportamentos para cada membro da casa: maridos, esposas, filhos, amos e escravos. Isso aparece na segunda geração. A Igreja toma um cariz mais patriarcal depois da morte de Paulo.

O Paulo mais claramente oposto ao Império e mais igualitário, que tem sido redescoberto, começa a ser posto em causa nesse momento?
Em parte. Havia 13 cartas até agora atribuídas a Paulo. Actualmente, considera-se que sete são de Paulo e sobre as outras seis há muita discussão e tende-se a pensar que foram escritas por discípulos de segunda e terceira geração, no início do segundo século.
É isto que nos permite compreender que o pensamento de Paulo foi adaptado, depois dele, a diferentes circunstâncias. Isto evita que se projectem sobre o Paulo histórico modelos culturais assimilados muito mais tarde. E permite descobrir um Paulo muito mais carismático, que assumiu diferentes modelos que depois se foram perdendo pelo caminho.

O anúncio de um crucificado opunha-se ao culto do imperador. Esta é uma ruptura grande?
A proclamação do evangelho da cruz aparecia como ameaça e desafio ao único poderio, o do imperador. Proclamar um crucificado, humilhado pelo poder romano, tinha uma forte carga de desestabilização e ameaça.
O poder romano baseava-se na necessidade de dominar, controlar e submeter todos os povos à volta. A propaganda política sustentava que era a única maneira de manter a pax romana. A esperança que o imperador traria era que ele garantia a estabilidade do mundo, mas através do domínio dos povos à volta e dos cidadãos do império - ou seja, humilhavam-se os demais para o seu enaltecimento.
A cruz significa precisamente o contrário: Deus preferiu humilhar-se, desprender-se de toda a sua capacidade de controlo e domínio, para enaltecer os subjugados. Essa é uma estratégia de esperança radicalmente invertida. Quem recebe esta boa notícia não são os poderosos, mas as vítimas do império. Por isso, entre outras coisas, o evangelho de Paulo teve enorme êxito: encontrou um enorme eco em todos os que o império deixara à margem e não tinham possibilidade de futuro.

Tem sentido propor hoje esta religião do fracasso, da cruz, numa sociedade que acentua antropologicamente o sucesso, a riqueza, o poder?
Estamos demasiado acostumados à ideia de que todos alcancemos o maior bem-estar possível, sem ter em conta as consequências negativas dos nossos excessos de vida para outras pessoas.
Uma das actualizações que poderia ter este evangelho da cruz é fazer-nos descobrir os valores positivos que há nos excluídos da sociedade. Criámos uma sociedade fictícia de bem-estar à custa das oportunidades de futuro de outras pessoas. Se, em vez disso, orientarmos a vida para os que nos estão denunciando nos nossos próprios excessos, talvez sejamos capazes de construir uma sociedade que tenha algo para muitos mais.
Esta é uma leitura teológica. Paulo, como Jesus, descobriu que Deus olhava especialmente para aqueles que todos consideravam os últimos. O que ele percebe é que, se Deus é capaz de solidarizar-se até ao fim com os últimos, é capaz de solidarizar-se com todos. Essa seria a melhor tradução actual do evangelho da cruz.

A integração, nas primeiras comunidades, incluía também as mulheres. Esse discurso, já assumido por teólogos e biblistas, deveria ter consequências também para a Igreja?
Tem que ter consequências. Talvez a situação da Igreja no Ocidente, de minoria perante um contexto cada vez mais secularizado, leve a uma atitude defensiva. Isto favorece a proliferação de atitudes do passado, de modelos de cristandade em que a Igreja ocupava todos os âmbitos da sociedade. Isso hoje é impensável e, quanto mais tardarmos a renunciar a essa ideia de cristandade, mais tardaremos em tornar relevante o evangelho na nossa sociedade.
Essa é uma das consequências que deverá ter: nos textos do Novo Testamento, nas primeiras comunidades, as mulheres tiveram um protagonismo que não tiveram em nenhum outro grupo. Era a aplicação do princípio teológico de que em Cristo, como diz Paulo na Carta aos Gálatas, não há homem nem mulher, nem escravo nem livre, nem judeu nem pagão.

E quando se fala de protagonismo, falamos também de liderança das comunidades?
Sem dúvida. O próprio Paulo afirma, na Primeira Carta aos Coríntios, que as mulheres, como os homens, podiam orar e profetizar - ou seja, dirigir a palavra à comunidade, ter um papel de liderança - tal como o de acolher a comunidade em sua casa.
Ou seja, temos testemunhos suficientes para reformular hoje o ministério [sacerdotal], profundamente enraizado nas origens do cristianismo e dando um protagonismo maior às mulheres. Isso acabará acontecendo.

Não significa também compreender e assumir os textos de Paulo, por exemplo, uma vez que há pessoas que ainda procuram ignorar o que eles dizem?
Sim, os textos sobre este tema e outros, no Novo Testamento, são de difícil interpretação, ambíguos e por vezes contraditórios. Há textos nos quais as mulheres têm um protagonismo indiscutível e claro, outros em que esse protagonismo está marginalizado. Ambas as realidades, e outras mais, existiram no cristianismo primitivo. Só que nem uma nem outra era exclusiva.
Uma comunidade como a Igreja actual tem autoridade suficiente para dizer qual desses modelos do cristianismo primitivo é o mais actual, mais relevante para a situação que vivemos e que mais justiça hoje faz ao evangelho.

Para voltar à questão antropológica: é pouco credível manter o actual modelo perante a antropologia contemporânea, que entende homem e mulher iguais em dignidade e em direitos?
A Igreja tem capacidade e autoridade suficientes para fazer um discernimento sobre a sua própria história e saber encontrar em textos das suas origens, do Novo Testamento, a base para dar à mulher o protagonismo que até agora se lhe negou.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quaresma: um novo sentido para a esmola, o jejum e a oração

O bispo do Porto, D. Manuel Clemente, tem no aqui no YouTube uma mensagem para esta Quaresma, na qual explica o novo sentido que podem ganhar a oração, o jejum e a esmola, de acordo com as expressões tradicionais que se usavam neste tempo litúrgico dos cristãos. O bispo Clemente sugere que a oração pode significar a busca de "como se traduz a vontade de Deus, bíblica e solidariamente". O jejum traduz a privação de alguns bens, "mesmo legítimos" e a procura de "uma vida mais austera, uma vida de menos gastos, uma atitude mais frugal, mais disponível para a solidariedade". A esmola pode ser, no actual contexto português e internacional, "fazer tudo o possível para que mais gente veja o seu trabalho garantido".

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Vejam bem. Zeca Afonso, 22 anos depois

VEJAM BEM



Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar

Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento
Do mar

E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder

Anda alguém
Pela noite
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer

"Dançando com a diferença"


Um sinal de que o jornalismo pode tocar a vida das pessoas e das comunidades.
Um sinal de que a televisão pode tornar-se um revelador de sentido e de horizonte.
Um sinal de que as barreiras podem ser vencidas, mesmo aquelas que pareceriam intransponíveis.
Assim é o trabalho da Associação dos Amigos "Dançando com a diferença", da Madeira.
Assim mostra a reportagem especial da SIC emitida em 19 de Maio de 2008.
Assim testemunha o trabalho de Sara Antunes de Oliveira (com a repórter de imagem Cristina Almeida e o Editor de imagem Miguel Castro)que acaba de receber o prémio Dignitas, da Associação Portuguesa de Deficientes.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Como reconhecer Deus?

No DN deste sábado, Anselmo Borges faz a sua reflexão a partir da pergunta "Como reconhecer Deus?", para terminar a referir também a crise da Igreja. Este é o texto:

Há relativamente pouco tempo, coloquei esta pergunta a um grupo de crentes: "Se Deus lhe aparecesse, dizendo 'aqui estou, sou eu o Deus', como o reconheceria?"


As respostas, no meio de imensa perplexidade, foram muito interessantes. Que Deus não pode aparecer directamente. Que ninguém, como diz a Bíblia, pode ver Deus. Que Deus é inobjectivável. Que se manifesta indirectamente: nas pessoas, nos acontecimentos, no esplendor da beleza - aqui, recordei a exclamação de uma sobrinha minha com 11 anos, nos Alpes, numa tarde irradiante de Sol sobre a neve e as montanhas todas à volta: "Parece Deus!" Que, para os cristãos, Jesus é a revelação de Deus. Que a experiência de Deus se dá nas experiências-cume de plenitude. Que lhe pediriam um milagre claro, que se visse e o credenciasse. Ele devia manifestar o seu poder.

Quando se fala de Deus, a questão nuclear é saber de que Deus é que se fala. Que se quer dizer quando se diz Deus?

O mais comum é associar Deus ao poder. Deus deve ser, antes de mais, a omnipotência. Deus deve ser infinitamente bom e poderoso, mas sobretudo poderoso. No entanto, a mística Simone Weil, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, preveniu: "A Verdade essencial é que Deus é o Bem. Ele só é a omnipotência por acréscimo." Por isso, "é falsa toda a concepção de Deus incompatível com um movimento de caridade pura". Afinal, a revelação de Cristo é essa: Deus é puro amor. O escândalo: "Eu não vim para ser servido, mas para servir."

Não se nega a omnipotência divina. O Poder de Deus, porém, não é Dominação e Espectáculo, mas Força infinita criadora. O Deus de Jesus é o Deus- amor, o Deus-origem-infinita-pessoal-criadora.

A modernidade, pela secularização, quis herdar a omnipotência divina, postergando a bondade. A crise que está aí hoje visível no universo económico-financeiro é mais funda, pois é uma crise de civilização, cuja raiz é esta herança religiosa.

Neste contexto, referindo-se à Igreja, o teólogo X. Pikaza recria de modo alegórico o passo evangélico da cura da sogra de Pedro. Na alegoria, a sogra de Pedro é a Cúria Romana. Jesus chega e cura-a. E depois, alegoricamente?

A Cúria (sogra), que significa casa, corte do Kyrios ou Senhor, estava doente. A casa de Pedro é o Vaticano, um Estado, e quem manda é a Cúria, como ainda recentemente se mostrou no caso dos lefebreveanos. Não protege o Papa, mas impõe-se a ele. Ela "sofre de inércia, de poder".

Jesus cura a Cúria para que, como a sogra de Pedro, se ponha a servir os outros. Que consequências teria a cura da Cúria Romana, que funciona há dez séculos enquanto os Pedros (Papas) vão mudando?

Como Jesus, que, segundo o Evangelho, cura as pessoas diante da casa de Pedro, a Cúria curada veria gente que viria para curar-se. Sobretudo gente mais pobre e perdida (os "endemoninhados", os doentes). Agora também lá vão muitos, mas "vão curar-se ou em busca de prebendas?"

Ainda segundo o Evangelho, Jesus saiu de noite, para rezar e ir ao encontro das pessoas também noutros lugares. Na alegoria, Jesus parte porque não quer ficar fechado na casa de Pedro. Jesus não tem "Cúria". Também Pedro e os funcionários da Cúria têm de sair da sua casa, da Cúria, para ir à procura de Jesus, conhecer o mundo e cuidar dele.

A Igreja está em crise e precisa de conversão. Neste sentido, há 15 dias, a propósito da "falta de vocações", o director do DN, num texto subordinado ao título "Os erros da Igreja", exemplificados nos escândalos dos padres pedófilos, a intransigência quanto aos métodos de planeamento familiar, "declarações absolutamente estúpidas" como as do bispo Williamson a negar o Holocausto, alguns investimentos dúbios no plano dos negócios, escrevia que o resultado é que "a religião vai desconfiando dos seus missionários e o ambiente não aconselha a 'vocação'".

E João Marcelino concluía: "Um dia pagaremos bem caro a crescente desagregação desse factor de união ocidental, bem patente sobretudo na Igreja Católica mas que também afecta todo os ramos do cristianismo."

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Bispos afirmam que homossexualidade denota “problemas de identidade pessoal”

No Público online, está a notícia sobre a nota pastoral dos bispos acerca do casamento entre homossexuais. O texto da nota pode ser lido na íntegra na Ecclesia.

O conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) publicou ontem a nota pastoral em que contesta a possibilidade de o casamento entre homossexuais ser equiparado ao heterossexual. Os bispos dizem que o prolongamento da homossexualidade “pela idade jovem e adulta denota a existência de problemas de identidade pessoal”. Ao mesmo tempo, rejeitam “todas as formas de discriminação ou marginalização das pessoas homossexuais”.
Não, não há nenhuma recomendação sobre o voto contra os partidos que votem pela legalização de casamentos homossexuais, como se interpretou a partir das palavras do porta-voz do episcopado, na semana passada. Mas a expressão “problemas de identidade pessoal” diz o que o Catecismo da Igreja Católica não se atreveu a dizer: “A génese [da homossexualidade] continua em grande parte por explicar. (...) Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui, para a maior parte [dos homossexuais], uma provação.”
O texto, intitulado “Em favor do verdadeiro casamento”, lamenta a “tentativa de desestruturar a sociedade portuguesa” com a equiparação das uniões homossexuais aos casamentos heterossexuais. A proposta foi apresentada na moção de José Sócrates ao congresso do PS, que decorre no próximo fim-de-semana, para fazer parte do programa eleitoral do partido às próximas legislativas.
Tal lei, consideram os bispos, longe de contribuir para o “progresso e unidade” da sociedade portuguesa, manifesta “uma concepção desfocada dos valores que se encontram na base do nosso modo de viver, entre os quais o casamento e a família têm um lugar privilegiado”.
O conselho permanente da CEP diz que a vida humana “assenta na complementaridade do homem e da mulher”, por princípio aberta “à geração de novas vidas” e que é a “base antropológica da família”. Uma verdade assumida por “diferentes culturas e civilizações” e reconhecido “implicitamente” na “Constituição da República e explicitamente [no] Código Civil Português”.
Os bispos assumem que a Igreja se dispõe a acolher “fraternalmente” os homossexuais, ajudando-os “a superar as dificuldades que, em não poucos casos, acarretam grande sofrimento”. Rejeitam também a adopção de crianças por homossexuais: “Tal constituiria uma alteração grave das bases antropológicas da família e com ela de toda a sociedade, colocando em causa o seu equilíbrio.”
A nota termina chamando a atenção para a “necessidade de iniciativas que ajudem as famílias estavelmente constituídas a superar os problemas económicos que muitas atravessam, que as valorizem como lugar primordial de educação dos filhos e que favoreçam a sua importância”.
Num comentário divulgado após a publicação da nota, o Rumos Novos – Grupo de Homossexuais Católicos reagiu, dizendo que a linguagem dos bispos “contribui para adensar a ferida existente no âmago de muitos homossexuais católicos, que se debatem de forma atroz contra eles próprios”.

Armas ligeiras de fácil acesso para jovens

Muitos jovens que integram bandos violentos ou de assaltantes envolvem-se com esses grupos a partir de idades precoces – 12, 13 anos. Uma das razões é o fácil acesso a armas ligeiras. Esta é uma das tendências verificadas num estudo que está a ser feito pelo Núcleo de Estudos para a Paz, do Centro de Estudos Sociais (NEP/CES) da Universidade de Coimbra. Ainda sem conclusões – estará pronto dentro de um ano, está precisamente a meio –, o estudo procura medir factores como a oferta e a procura de armas ligeiras, e os custos que lhes estão associados.
O Observatório sobre a Produção, Comércio e Proliferação das Armas Ligeiras da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), da Igreja Católica, promoveu ontem, em Lisboa, uma audição pública de balanço dos dois anos de aplicação da lei das armas – que está em revisão no Parlamento. José Manuel Pureza, do NEP/CES, afirmou que há um grande desconhecimento sobre as armas que existem em Portugal, o que “alimenta o alarmismo, o racismo e a xenofobia”.
Mais informações sobre o debate
aqui.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Petróleo na fogueira

A opinião é livre. E se é livre para os homossexuais que, pelos vistos, querem casar, também o deve ser para o cardeal Saraiva Martins, que coloca a homossexualidade no terreno da (a)normalidade. Fê-lo, pelos vistos, no Casino da Figueira da Foz, que se tornou recentemente um inesperado sítio para a polémica envolvendo cardeais da Igreja Católica.
Parece que D. Saraiva Martins entende que ser homossexual é ser anormal. Está no seu direito. É, no entanto, um terreno pantanoso esse em que se mete. E seria de desejar que o debate não fosse por esse lado.
Mas há aqui algo que é difícil de entender: um dos argumentos do porta-voz da Conferência Episcopal acerca da proposta que se desenha no PS de aprovar uma lei que preveja a possibilidade de casamento para os homossexuais, há dias expresso, era o de que este assunto distrai as pessoas de coisas mais importantes. Ora, o cardeal ou não concorda com este argumento ou pretende deitar, com o que disse, petróleo para a fogueira que se está a atear.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Proliferação de armas ligeiras em Portugal - audição pública

O Observatório sobre a Produção, Comércio e Proliferação das Armas Ligeiras, da Comissão Nacional Justiça e Paz, organiza amanhã uma Audição Pública sobre o tema "Armas e violência: um retrato português", coincidindo com o terceiro aniversário da publicação da Nova Lei das Armas.
Esta iniciativa decorrerá a partir das 17 horas, no Centro Nacional de Cultura, Rua António Maria Cardoso, 68, ou Largo do Picadeiro, 10, ao Chiado, em Lisboa. Intervirão o Prof. Doutor José Manuel Pureza, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (apresentação de enquadramento), o secretário de Estado da Administração Interna, Dr. Rui de Sá Gomes, a Dr.ª Rosário Farmhouse, Alta Comissária para a Integração e Diálogo Intercultural, D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança e Vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social, e Cândida Pinto, Jornalista da SIC e da Revista Visão.
Esta Audição surge na sequência dos sinais surgidos no Verão passado, que, para a Comissão Nacional Justiça e Paz, proporcionaram "aviso claro de muita insegurança e violência latente em algumas zonas críticas da periferia de grandes cidades".
Mais informações AQUI.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Os padres e os bispos não são a Igreja

Na sua coluna deste domingo no Público, frei Bento Domingues escreve a propósito da alegada "crise de vocações" e dos modos de a resolver:

1.Qualquer padre católico ou bispo subscreve este título. São os meios de comunicação social que tendem a tomar a parte pelo todo. A Igreja Católica não pode falar sempre a uma só voz porque é uma unidade plural. Poder-se-á, no entanto, perguntar, a que propósito vem este título?

Reuniu-se, em Fátima (6-7/02/2009), o X Colóquio Nacional de Paróquias com o tema: “Porquê transmitir a fé – seduzidos por Deus – fascinados pelo Evangelho?” Desta interrogação não transitou muito para a opinião pública. A atenção fixou-se em números: a Igreja Católica tem, em Portugal, 4 400 paróquias. Destas, 1 100 não têm pároco residente. Segundo as previsões mais coerentes – se não houver mudanças radicais de orientação –, estes números só podem piorar.

É evidente que a deslocação dos padres para acudir às paróquias está mais facilitada. Mas o carro, o telemóvel e o correio electrónico não resolvem tudo. A questão de fundo pode ser formulada da seguinte maneira: a hierarquia católica dá grande importância à celebração dominical da Eucaristia e à qual os fiéis têm direito. Não toma, porém, as medidas necessárias para dispor de pessoas habilitadas a presidir à assembleia eucarística com tudo o que esta supõe e implica. Ao não permitir a ordenação de homens casados nem de mulheres – sejam elas solteiras ou casadas –, o futuro é preocupante.

2. Segundo o Direito Canónico, a paróquia é uma certa comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano, está confiada ao
pároco, como a seu pastor próprio (Cân. 515 § 1º). A paróquia, em regra geral, seja territorial e englobe todos os fiéis de um território certo; onde porém for conveniente, constituam-se paróquias pessoais, determinadas por razão do rito, da língua, da nação dos fiéis de algum território, ou até por outra razão (Cân. 518). No magistério de João Paulo II, a comunhão eclesial, embora possua sempre uma dimensão universal, encontra a sua expressão mais imediata e visível na paróquia: esta é a última localização da Igreja; é, em certo sentido, a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas (Christifideles Laici, 26).

Não são as normas do Direito Canónico que podem, só por si, responder à pergunta do citado colóquio. O padre João Castelhano, um dos seus impulsionadores e pároco de S. José, em Coimbra, insiste em não privilegiar o “como” da transmissão da fé, embora destaque as potencialidades do bom uso dos novos meios de comunicação. A presença das paróquias portuguesas na Internet mostra que os responsáveis estão abertos e atentos a novas formas de evangelização. Mas a pergunta fundamental é outra: porquê evangelizar? Que pode isso significar e exigir, hoje?

A sociedade portuguesa mudou e a população já não está organizada em torno do campanário. O que antigamente era uma diocese cabe, agora, em metade de uma paróquia urbana. No entanto, é sempre uma aventura arriscada mexer nos serviços médicos, jurídicos ou religiosos. A eliminação ou criação de paróquias exige uma reestruturação que nem sempre é pacífica. Por outro lado, como sublinhou o pároco de Santa Cruz, importa respeitar a liberdade de os católicos escolherem o local onde cultivam a fé e onde melhor se sentem, seja na sua área de residência, num movimento ou na sua paróquia afectiva. As preocupações com o papel da paróquia levam certos párocos e serviços paroquiais a proceder como se fossem donos da prática religiosa dos católicos.

3. Para sossegar a consciência, destaca-se que a falta crescente de padres pode ser uma boa oportunidade para vencer o clericalismo e promover o papel dos leigos no apostolado e nos serviços paroquiais: muito daquilo que ocupa os padres pode e deve ser realizado por leigos. Que Deus possa escrever direito por linhas tortas é uma sabedoria portuguesa que Bernanos descobriu no Brasil. Não devemos, no entanto, exigir ao Espírito Santo esforços suplementares para aquilo que compete aos seres humanos.

Repete-se que há falta de vocações. Não acredito. Se a vocação é dom de Deus, não se esgota facilmente. Deveríamos olhar mais para o tabu que impede caminhos de solução. Por que não reintegrar aqueles padres que tiveram de abandonar o ministério presbiteral e que estão em condições de prestarem serviços relevantes para os quais foram preparados? Por que razão não chamar, ao presbiterado, homens casados que manifestam grande capacidade de serviço na Igreja? E as mulheres? Será que, por serem mulheres, Cristo não as quer ver a presidir à Eucaristia? Precisamente Ele que, segundo os Evangelhos, lhes deu com amizade o papel de comunicar, aos apóstolos, o Evangelho da Ressurreição? Se Deus criou o ser humano à Sua imagem, homem e mulher, seria ridículo atribuir a Deus uma mentalidade patriarcal. Criar um deus à imagem do masculino é criar um ídolo. O sujeito masculino não tem mais aptidão para ser chamado à presidência da Eucaristia do que o sujeito feminino.

Ninguém, na Igreja, homem ou mulher, tem direito a ser padre ou bispo. Uma pessoa baptizada pode ser chamada a servir a comunidade através do ministério ordenado.

Mística tem Universidade em Ávila


Num edifício em forma de estrela, arrancou formalmente ontem, em Ávila, Espanha, a Universidade da Mística, uma iniciativa da fundação CITeS (Centro Internacional Teresiano Sanjuanista). Centrada nas figuras dos místicos Santa Teresa e S. Juan da Cruz, a Universidade conferirá doutoramento, cursos de verão, formações especialidzadas, espaços para investigação a interessados da mística oriundos de Espanha e de outras partes do mundo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a

Daniel Faria
homens que são como lugares mal situados

Para a memória de um encontro (2)


José Manuel Vidal, jornalista que trata a informação religiosa no "El Mundo" e dirige o site www.religiondigital.com, esteve no encontro sobre as religiões nos media, em Lisboa. De regresso a Madrid, deixou as suas impressões num dos blogues do site. O texto pode ler-se aqui, em bom galego. Na foto, José Manuel Vidal e Manuel Vilas Boas, que moderou o debate da tarde.

Bento XVI e Obama

No seu texto deste sábado no DN, Anselmo Borges retoma a polémica provocada pelo bispo negacionista Richard Williamson. Aqui, num post de 30 de Janeiro, está a tradução para português do texto de Hans Küng a que se refere Anselmo Borges. Já agora, sobre o texto de Hans Küng, sempre acrescento que não acredito tanto num Papa que tomasse sozinho e instantaneamente todas as decisões de reforma disciplinar e moral; acredito mais em processos de consciência; por isso me parece que Anselmo Borges tem mais razão ao acentuar a ideia de um Concílio Ecuménico. A seguir, o texto de Anselmo Borges:


Já uma vez aqui referi que há anos, na Suíça, fui a Ecône visitar o Seminário da Fraternidade S. Pio X, fundado pelo arcebispo dissidente Marcel Lefebvre. Após uma longa conversa com um padre, aliás simpático, da Fraternidade, tornou-se claro para mim que o problema era muito mais complicado do que propriamente a Missa em latim. O núcleo da questão era o Concílio Vaticano II e a revolução operada em problemáticas fundamentais, como a liberdade religiosa, os direitos humanos, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso. Os recentes acontecimentos vieram confirmar essa minha convicção.

Em 1988, Lefebvre tinha sido objecto de excomunhão pelo Papa João Paulo II por ter ordenado, sem autorização da Santa Sé, quatro bispos, também eles automaticamente excomungados.

Numa estratégia de cedências, o Papa Bento XVI foi dando passos de aproximação à Fraternidade. Assim, logo em 2005, recebeu o líder, bispo Bernard Fellay. Em 2007, autorizou a celebração da Missa em latim segundo o rito tridentino. Tudo culminou com a assinatura do decreto de reintegração dos quatro bispos na Igreja, divulgado no essencial no dia 21 de Janeiro e publicado no dia 24.

Quando se pensava que se chegaria ao termo do cisma, rebentou a bomba. As declarações do bispo Richard Williamson em entrevista à televisão pública sueca, negando o Holocausto, provocaram, como não podia deixar de ser, um terramoto: "Creio que não houve câmaras de gás. Penso que 200 a 300 mil judeus pereceram nos campos de concentração, mas nem um só nas câmaras de gás", que serviriam apenas para desinfecção.

Ergueram-se protestos veementes de bispos e cardeais, de judeus também e ao mais alto nível, podendo ficar em causa a própria visita anunciada de Bento XVI a Israel. A chanceler alemã, Angela Merkel, interveio, exigindo explicações. O próprio Papa, por desejo expresso da chanceler, telefonou-lhe, pronunciando-se com toda a clareza contra o negacionismo.

Mas os estragos estavam feitos. Só a título de exemplo: segundo uma sondagem do Emnid, 67% dos católicos alemães pensam que o Papa alemão causou danos à imagem da Igreja, pedindo 56%, entre eles o presidente da Conferência Episcopal, R. Zöllitsch, que Williamson, que ainda se não retractou, volte a ser excomungado. Teme-se que muitos católicos na Alemanha abandonem a Igreja Católica. Perante o escândalo, há quem ponha em dúvida a autoridade moral do Papa para a continuação na direcção da Igreja.

Afinal, para lá dos erros de gestão na condução do processo, reconhecidos pelo Vaticano, o nervo da questão foi a atitude tíbia e dúbia na exigência aos integristas do reconhecimento pleno do Concílio Vaticano II. Note-se a coincidência de datas, quando se pensa que precisamente no dia 25 de Janeiro se celebrava o cinquentenário do anúncio por João XXIII da convocação de um Concílio ecuménico, precisamente o Vaticano II. Afinal, qual é o lugar primeiro da comunhão na Igreja: a obediência formal ao Papa ou o respeito real pela História e a memória das vítimas, pelos direitos humanos, pela liberdade religiosa, pelo diálogo inter-religioso?

Talvez mal aconselhado ou porque a Cúria lhe sonegou informação, Bento XVI acabou, de qualquer forma, por provocar um incêndio que contribui para maior descredibilização da Igreja.

Neste contexto, o teólogo Hans Küng, pensando em Obama que, após Bush, abriu os Estados Unidos e o mundo a uma nova esperança, reconhece que na Igreja Católica as coisas são diferentes, "vendo muitos o Papa Bento XVI como outro Bush".

Ora, o que faria um Papa, se agisse com o espírito de Obama, pergunta Küng? Afirmaria que a Igreja se encontra numa "crise profunda". Avançaria com uma nova esperança para uma Igreja renovada, com um ecumenismo revitalizado, diálogo com as religiões mundiais, uma avaliação positiva da ciência moderna. Rodear-se-ia dos mais competentes, mentes independentes, e não de yes-men. Iniciaria imediatamente por decreto as medidas reformadoras mais importantes e "convocaria um Concílio Ecuménico para promover uma mudança de rumo".

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Para a memória de um encontro



Duas fotos que registam diferentes momentos do debate sobre as religiões nos media: na na de cima (painel da tarde), vêem-se José Manuel Vidal (El Mundo), Manuel Vilas Boas (TSF, a moderar), Raquel Abecasis (Rádio Renascença), Miguel Gaspar (Público) e António José Teixeira). Em baixo (painel da manhã), estão António Marujo (Público, no papel de moderador), José António Santos (Lusa), Manuel Pinto (Universidade do Minho) e Jorge Wemans (RTP 2); As fotos são da autoria de Tony Neves.

Evocação de Lucien Deiss no Estoril

Uma evocação do compositor Lucien Deiss decorre no próximo dia 15, domingo, no Estoril. Alfredo Teixeira traça aqui o retrato de um compositor que marcou a música litúrgica e religiosa da segunda metade do século XX e que morreu em 2007. O programa inclui a peça Anunciação, de José Tolentino Mendonça e Alfredo Teixeira. Aqui, podem ler-se outras notas biográficas e, no final, está a ligação para alguns excertos da obra daquele que definia o trabalho de compositor como o daquele que quer "vestir as palavras de Deus com a beleza da terra".

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Duas notas e uma questão de fundo acerca de um encontro

Esta quinta-feira realizou-se em Lisboa o encontro "Entre a Vertigem e o Silêncio - Porque (não) há espaço nos media para o religioso". Três notas breves de um dia rico em participação:

1 - A ignorância parece ser um dos problemas graves com que nos confrontamos na hora de tratar informação religiosa: ignorância nas redacções, muitas vezes incapazes de avaliar a real importância de um acontecimento; ignorância nas instituições, sobre a forma como se devem relacionar com os profissionais dos media; ignorância dos jornalistas, que nem sempre descobrem o ângulo criativo que um acontecimento religioso pode ter.

2 - O que se passa nas redacções é apenas um indicador da incapacidade da sociedade portuguesa pensar o fenómeno religioso; e nas redacções nem sempre valorizamos as perguntas que as pessoas fazem e as experiências que vivem, privilegiando antes o institucional, o factor de conflito e os fait-divers.

3 - Uma questão de fundo: é verdadeiramente um problema cultural aquele que vivemos - a difícil relação dos media com as religiões (e vice-versa) é apenas um factor, entre outros. As universidades e o debate público, por exemplo, esvaziaram-se da reflexão sobre a dimensão religiosa - quando não traduzem ignorância na hora de a abordar.

No final do debate (no qual surgiram outras ideias importantes), apareceram propostas para continuar esta reflexão. A seu tempo, este blogue servirá de plataforma de encontro para esse efeito.





quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Religionline agora convidado no site do Público

A partir deste momento, Religionline passa a ser um blogue convidado do Público. Esta iniciativa, de jornalistas e investigadores do fenómeno dos media, pretende dar dimensão pública ao fenómeno religioso, quer na expressão mais noticiosa, quer na forma como é comentado, quer ainda na enunciação nem sempre explícita do modo como o religioso está presente na vida das pessoas. E fazê-lo de forma plural, rigorosa e o mais abrangente possível.

Nem de propósito, este alargar de horizontes do blogue dá-se num contexto em que de novo se coloca a questão da presença do religioso na praça pública. Em concreto, por causa das posições da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a possibilidade dos casamentos de homossexuais vir a a ser discutida na próxima legislatura.

Ao mesmo tempo, estamos na véspera de um encontro que, em Lisboa, pretende debater a relação dos media com a questão religiosa. Esse debate, cujo programa está enunciado no post anterior, pretende fazer-se pelo lado do jornalismo, naquilo que traduz sobre os conteúdos e a qualidade do que os nossos media decidem publicar ou transmitir acerca do religioso. E também sobre o modo como a dimensão religiosa ou espiritual está tantas vezes presente nas artes, na cultura ou na vida social e acaba por passar ao lado do noticiário religioso mais estrito.

A quem já era leitor do blogue, esperamos que continue. A quem chega de novo, nomeadamente através do Público, esperamos que fique.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Entre a vertigem e o silêncio – Porque (não) há espaço nos media para o religioso

Com o objectivo de debater a relação dos média com o fenómeno religioso, um grupo de jornalistas decidiu promover um encontro, que decorrerá esta quinta-feira, dia 12 de Fevereiro, no Auditório Pessoa Vaz, na Universidade Lusófona (Campo Grande, 376), em Lisboa. O encontro pretende congregar jornalistas (incluindo editores e directores), investigadores, comentadores, autores de blogues e outros especialistas. A entrada é livre e o programa é o seguinte:

10h00 – Apresentação e razões da iniciativa

10h10 – O religioso e os media na EuropaManuel Pinto (Universidade do Minho)

10h40 – O religioso e os media em Portugal: o caso de uma agênciaJosé António Santos (secretário-geral da Lusa)

11h10 – Comentário – Jorge Wemans (director de programas da RTP 2)

11h30 – intervalo

12h00 – debate

13h00 – almoço

14h30 – Painel: Porque é que os nossos media (não) dão importância jornalística aos temas religiosos?

José Manuel Vidal (jornalista responsável pela informação religiosa do “El Mundo” e director de www.religiondigital.com); António José Teixeira (SIC, director); Pedro Leal (RR, director-adjunto de Informação); e Miguel Gaspar (Público, Editor Mundo)

15h45 – Debate

17h00 – Intervalo

17h30 – Debate/assembleia sobre a possibilidade da criação de uma associação de jornalistas e investigadores do fenómeno dos media e da religião

"A Religião e o Ateísmo Contemporâneo"

Um seminário sobre "A Religião e o Ateísmo Contemporâneo" realiza-se em 5 e 6 de Março, na sala de mestrados da Faculdade de Letras de Lisboa, com entrada livre e o seguinte programa:

5 de Março

14h-15h: Markus Gabriel (New School University de Nova Iorque/CFUL): "A Ideia de Deus em Hegel"

15-16: Cristina Beckert (Universidade de Lisboa/CFUL): "Lévinas e o Ateísmo como condição da religião"

16-17: Manuel João Pires (Universidade de Lisboa/CFUL): "Deus: a Ilusão ou por que razão é quase certo que Deus não existe. Reflexões sobre o pensamento de Richard Dawkins"

17:15-18:15: Lavínia Pereira (Universidade de Lisboa/CFUL): "Bergson e a crítica ao Naturalismo"

18:15-19:15: Maria Teresa Teixeira (Universidade de Lisboa/CFUL): "Deus e Materialismo nas Filosofias de Bergson e Whitehead"

19:15-20:15: Carlos João Correia (Universidade de Lisboa/CFUL): "Será a Ideia de Deus racional?"

6 de Março

14h-15h: Katia Hay (New School University de Nova Iorque): "The Loss of the Absolute"

15-16: Mafalda Blanc (Universidade de Lisboa/CFUL): "A Religião, o Ateísmo e o Mistério Teologal do Homem"

16h-17: Ana Acciaioli Cravo (Universidade de Lisboa): "A Morte de Deus e as Nostalgias do Absoluto: reflexões sobre o pensamento de George Steiner"

17:15-18:15: Paulo Guedes (Universidade de Lisboa): "Sade e o Ateísmo"

18:15-19:15: Paulo Borges (Universidade de Lisboa/CFUL): "Êxtase, Transfiguração e A-teísmo em Emil Cioran"

19:15-20:15: Petar Bojanić (University of Aberdeen): "Franz Rosenzweig: War and Atheism".

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Dom Hélder: Quando o deserto é fértil


Dom Hélder nasceu há 100 anos, completados este sábado – e morreu em 1999, fará em Agosto 10 anos. Na TSF, está um registo do espectáculo da Missa dos Quilombos, feito em 1993 e reproduzido de novo este sábado, onde Dom Hélder faz a invocação a Maria. Quem quiser ver imagens do espectáculo, pode ir aqui ao YouTube. A seguir, em jeito de homenagem e memória, fica o texto publicado no Janus 2007.



A sua utopia de um mundo mais justo e solidário ficou expressa no título de um dos seus livros: O deserto é fértil. Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza, 7 de Fevereiro de 1909 – Recife, 27 de Agosto de 1999) foi a figura mais carismática do episcopado brasileiro do século XX. Arcebispo do Recife, a sua opção em favor dos mais pobres e do desenvolvimento fez florir muitos desertos em todo o mundo.
Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”

“O padre tem que se gastar”
O pai – o de sangue – era jornalista, empregado de comércio. A mãe era professora primária. Décimo primeiro de treze filhos (só oito sobreviveram), Hélder Câmara ainda terá ouvido o pai, mação, perguntar-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Ordenado em 1931, em Fortaleza, seria nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, aos 43 anos de idade. Doze anos depois, em Março de 1964, foi transferido para a sé de Olinda e Recife, onde esteve até resignar, em 1985. Morreu com 90 anos.
Nos primeiros anos de sacerdócio ainda adopta ideias integralistas. Mas cedo evolui. No Rio de Janeiro, cria a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência, para apoio a habitantes das favelas e a famílias pobres. Na mesma altura, é um dos impulsionadores da colegialidade e da colaboração episcopal, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (onde foi o primeiro secretário-geral, entre 1952 e 1964) – e no Conselho Episcopal Latino-Americano.
Quando é nomeado para arcebispo de Olinda e Recife, o Brasil já vive em plena “ditadura dos coronéis”. Alarga a sua acção à defesa dos direitos humanos e da liberdade política, ao mesmo tempo que contesta a grande concentração da riqueza brasileira (e mundial) nas mãos de poucas famílias. Um dos seus últimos actos públicos seria mesmo o lançamento, com a Fundação Joaquim Nabuco, da campanha Ano 2000 Sem Miséria. A fome, a miséria e a guerra eram os seus grandes inimigos: seria uma vergonha o mundo chegar ao ano 2000 com milhões a viver presos dessas realidades.
Eram essas atitudes e opiniões que o catalogavam, em muitos meios, como o “bispo vermelho” ou “comunista”. O próprio brinca com as acusações e repete a frase antes citada. Nos anos de chumbo do Brasil, sofre retaliações, os militares assassinam-lhe o secretário, fica sem acesso aos meios de comunicação. Obstáculos que ele ultrapassa falando, no estrangeiro, da realidade do Brasil – e do mundo, nunca esquecido. A importância de toda essa actividade – a que se juntam mais de duas dezenas de livros publicados e traduzidos em várias línguas – leva a que lhe sejam atribuídas mais de seiscentas condecorações e títulos honorários, vinte e cinco prémios da paz e dos direitos humanos. Proposto para Nobel da Paz, a ditadura militar conseguiu obstar a que o galardão lhe fosse dado.
Nas suas andanças pelo mundo, faz muitas perguntas: Que fazer perante a miséria do mundo? Como lutar quando 20 por cento da humanidade concentra 80 por cento da riqueza? Como criar alternativas não-violentas quando os países mais poderosos gastam em armamento o que serviria para erradicar do planeta a doença e a fome? E as respostas vinham num sentido: lutar contra a resignação, denunciar injustiças, ser solidário, adoptar um estilo de vida sóbrio e que não afronte quem nada tem.

Um abrigo para refugiados
A coerência da sua vida foi até ao ponto de deixar o palácio episcopal, substituindo-o por uma pequena casa onde todos podiam entrar. Nela se refugiavam perseguidos políticos e pobres. Organizou a Operação Esperança, que permitiu a criação de conselhos de moradores para resolver os problemas das populações ribeirinhas afectadas por problemas de cheias periódicas.
No Concílio Vaticano II (1962-65), a acção de Hélder Câmara, juntamente com outros bispos e cardeais, acaba por ser decisiva na recusa dos esquemas e organização preparados pela Cúria Romana e na adopção de um modelo de debate colegial. Vigoroso adepto da teologia da libertação, acabaria imerecidamente castigado por João Paulo II: ao contrário do que muitas pessoas pediam, nunca foi feito cardeal; pior ainda, o seu sucessor na diocese de Olinda e Recife acabou com todas as vertentes de acção social na formação do clero.
Após o concílio, Dom Hélder envolve-se em três projectos de natureza bem diversa: pede ao padre e compositor suíço Pierre Kaelin que componha um oratório sobre São Francisco de Assis. Nasce a “Sinfonia dos Dois Mundos”, em seis andamentos. No último, “tudo termina na esperança”, descreverá Dom Hélder. “Quanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega no seio.” Depois, encontra-se com o bailarino Maurice Béjart e este cria, a partir das sugestões do bispo, a “Missa para o Tempo Futuro”. Finalmente, na “Missa dos Quilombos”, Milton Nascimento coloca-o a declamar um longo poema à Virgem.
Num dos seus textos sobre a paz, escreve Dom Hélder em Abril de 1980: “Preciso levar aos homens o ramo de oliveira que o Senhor Deus me confiou!/ Por enquanto não há lugar nenhum onde pousar: (…) Voarei a qualquer preço... Enquanto eu não cair de cansaço. (…) voarei, voarei, voarei...”

Espaço para os que buscam

Na sua coluna de hoje, no Público, dedicada ao testemunho de António Alçada Baptista, Bento Domingues transcreve de O Tecido do Outono (1999) estas palavras do autor de Peregrinação Interior:
"Diria que há coisas na natureza e na condição humana que me impõem a existência de um núcleo misterioso a que chamo Deus. [...] Estamos no tempo da morte de Deus, da sua ausência infinita, e aguardamos a sua Ressurreição. É evidente que não posso estar interessado num deus que aterrorizou toda a minha vida passada, que me cortou cruelmente de uma perspectiva de desenvolvimento humano que tem que ser vivido na terra e de que procura separar-me: dos prazeres, dos valores que a terra me proporciona, quer na minha comunicação com os outros, quer no meu desenvolvimento pessoal como o amor humano e a alegria. Recuso uma concepção de Deus cujo caminho seja a tristeza e a angústia."
E a crónica termina com esta ideia:
"Alçada, na sua peregrinação, perdeu-se de uma Igreja que sabe tudo e de um Deus autoritário. Encontrou em Cristo a humanidade de Deus, a fonte da possível humanização divina da Igreja".
Ao ler este remate de Bento Domingues, pus-me a pensar que, quando numa relação, se geram movimentos de aproximação ou de afastamento, esses movimentos afectam não um mas os vários pólos da relação. Quem se afastou, afinal? Alçada, certamente. Mas a pergunta pode estar mal colocada ou carecer de uma outra, para ser completa: quem se afastou de Alçada? Porque não podem os inquietos, os que buscam, encontrar um espaço? Porque se desencadeia, em processos como esses, a lógica do transviado, o rolo compressor da lei, em detrimento da leveza e frescura da graça?

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Para quem quiser reflectir

"A todos aqueles que querem mesmo reflectir". Assim se intitula uma carta-aberta que o vice-presidente da conferência episcopal da Igreja Católica em França acaba de publicar no site do jornal La Croix. Podemos não partilhar da visão conspiracionista relativamente ao modo como os integristas e os media lidaram com o caso do levantamento da excomunhão dos quatro bispos da Fraternidade de Pio X. Mas merece atenção a clareza de posições e o registo do discurso, longe da "langue de bois" de muitos hierarcas.

A ler, no mesmo jornal, a coluna da primeira página "Une mine dérivante"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Pode-se ser bispo e negacionista?

A parte final da crónica de hoje, de Vasco Pulido Valente:

"(...) Convém agora explicar (para quem não saiba) que o "negacionismo" não é parte de uma polémica histórica: historicamente, não há menor dúvida que houve campos de extermínio, onde a SS assassinou entre quatro e cinco milhões de judeus. O "negacionismo" é uma pura tentativa de reabilitar Hitler e o nazismo; e uma tentativa que, pela sua natureza, implica um extremo fanatismo. Talvez se possa discutir se, numa sociedade democrática, o "negacionismo" deve ou não deve ser criminalmente punido. Mas não se pode discutir se um "negacionista" deve ou não deve ser bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, sob pena de retirar qualquer espécie de autoridade moral à referida Igreja. Não basta obrigar; como o Vaticano obrigou, o sr. Williamson a pedir desculpa. Se o Papa não afastar o sr. Williamson diminui sem remédio o seu pontificado."

Vasco Pulido Valente in Público, 6.2.2009

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Um tiro no porta-aviões

Incompetência? Imprevidência? Erro estrondoso? Exploração mediática? Tudo junto? Talvez seja, mas a coincidência da decisão do papa de levantar a excomunhão que impendia sobre quatro bispos da integrista Fraternidade S. Pio X com as declarações negacionistas e anti-judaicas de um desses bispos não podia ter trazido piores efeitos. A ponto de raramente se ter visto, na Europa e na América, uma tal agitação e incómodo (se não mesmo descontentamento) com uma posição da Igreja. Assim como raramente se terá visto uma tal multiplicação de posições de reafirmação da posição oficial do Vaticano acerca do holocausto, desde o papa a vários cardeais de grande destaque na Cúria, como tem acontecido há mais de uma semana, a um ritmo quase diário.
É interessante notar que o bispo em causa, que entretanto pediu desculpa pelas declarações que fizera (antes do levantamento da excomunhão), nunca negou o que tinha declarado, mas apenas se disse arrependido dos problemas causados a Bento XVI.
Os estragos da medida da Santa Sé não são despiciendos, incluindo dentro da Igreja Católica.
É caso para perguntar que unidade da Igreja quer Bento XVI refazer. A medida tomada acabou por ser um verdadeiro tiro no 'porta-aviões' da própria Igreja.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Vaticano diz que falta muito para a integração plena dos integristas

No Público desta segunda-feira, está uma síntese do que se tem passado, nos últimos 10 dias, à volta do levantamento da excomunhão aos quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Pode servir de complemento ao texto aqui publicado antes por Eduardo Jorge Madureira. Há também um artigo de John Allen Jr., que vale a pena ler em http://ncrcafe.org/node/2382.

O cardeal Giovanni Battista Re, que assinou o decreto que levantou a excomunhão de quatro bispos integristas, entre os quais Richard Williamson, que nega o Holocausto, diz que “a reconciliação ainda não é total” com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X.
Numa entrevista ao jornal La Repubblica, Battista Re afirmou, citado pela AFP: “O percurso até uma reconciliação total exigirá tempo. (…) O levantamento da excomunhão não é um ponto de chegada, mas o início de um caminho. [A Fraternidade] deve ainda mostrar claramente que aceita o Concílio [Vaticano II (1962-65) – nomeadamente na doutrina sobre a liberdade religiosa e o ecumenismo].”
Os esclarecimentos do cardeal não param, no entanto, as ondas de choque e protesto contra a decisão. Há já uma petição a correr (
http://www.petition-vaticanum2.org/), dinamiza da na Alemanha, Suíça e Áustria. Na Suíça, mais de 200 padres e teólogos suíços manifestaram quinta-feira desacordo com a resolução de Bento XVI, que se inscreve numa série de outras decisões “fortemente regressivas”, acusam, citados pela AFP.
O texto foi escrito em forma de carta aberta à Conferência dos Bispos Suíços, que tinham classificado as posições do bispo negacionista como “totalmente inaceitáveis”. É em Êcone (Suíça) que o grupo tem a sua sede. Suíça, França e Brasil são os países onde a Fraternidade reúne mais pessoas. Na carta, padres e teólogos dizem que o levantamento da excomunhão a Williamson é escandaloso e muito problemático para as relações judaico-cristãs.
Também quinta-feira, a presidente do Conselho Central dos Judeus Alemães assegurara que suspenderia, de momento, os contactos oficiais com os bispos católicos. O Grande Rabinato de Israel, que condenou o levantamento da excomunhão, anunciou igual decisão em relação ao Vaticano.
Williamson afirmou, em entrevista a uma televisão sueca, que a Shoah só teria causado uns 200 mil a 300 mil mortos entre os judeus e que estes não morreram nas câmaras de gás. Sexta-feira, numa carta enviada ao Vaticano, o bispo pediu desculpa pelas afirmações, mas não se retractou.
No dia 23 de Janeiro, o Papa anunciou o levantamento da excomunhão a Williamson e aos outros três bispos ordenados pelo arcebispo Marcel Lefebvre em 1998. Justificou a decisão por um acto de “misericórdia paterna”, esperando Bento XVI que a Fraternidade São Pio X desse “passos para a plena comunhão” com a Igreja Católica, reconhecendo a doutrina do Concílio Vaticano II. Ao sagrar bispos sem autorização do Vaticano, Lefebvre colocou-se em excomunhão automática.
Na quarta-feira, o Papa fez uma vigorosa condenação das teses negacionistas e, recordando a sua visita a Auschwitz, há três anos, disse que o Holocausto deveria ser “um alerta contra o esquecimento”. O próprio secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone, disse que o Papa ficou “perturbado” com as declarações negacionistas. E o cardeal Walter Kasper, presidente da Comissão para as Relações com o Judaísmo, do Vaticano, afirmou que as palavras do bispo integrista eram “inaceitáveis, obtusas” e que negar o Holocausto é “estúpido”.
O actual líder da Fraternidade, o bispo Bernard Fellay, pediu também perdão ao Papa “e a todos os homens de boa vontade” pelas consequências das afirmações de Williamson. E disse que o bispo negacionista está proibido de tomar posições públicas sobre “assuntos políticos e históricos”.

Emoção e cólera na internet

Voltando à internet: o sítio na internet do jornal francês La Croix define com duas palavras as reacções de blogues e fóruns cristãos na net à decisão de levantar a excomunhão aos quatro bispos integristas: emoção e cólera.
Em França, onde os lefebvrianos têm alguma implantação, o caso tem sido seguido com atenção. E o La Croix mediu o movimento que a palavra “excomunhão” suscitou na internet, no próprio dia 23 de Janeiro, quando a decisão do Papa foi anunciada (ver
http://www.la-croix.com/article/index.jsp?docId=2363477&rubId=1098). No site do jornal, um fórum aberto aos leitores registou 150 comentários nas primeiras 24 horas, levando à criação de um blogue especificamente dedicado ao debate sobre o tema.
Alguns exprimiam a sua satisfação pela decisão do Papa apesar das críticas dos media, resume o jornal. Mas a maioria, incluindo padres, manifestava decepção e cólera. “Esta decisão choca-me e não compreendo as prioridades do Papa. Há tanto a fazer no diálogo entre as religiões, o compromisso com os desfavorecidos, o diálogo com a sociedade”, escrevia um leitor.
Vários colocam a hipótese de abandonar a Igreja, outros sugerem petições a enviar aos bispos e ao Papa, há quem reproduza excertos de cartas enviadas a bispos a pedir declarações públicas. Mas há quem diga que o Papa não pode escolher os católicos por causa das opiniões, sob o risco de restaurar a Inquisição. Há quem pergunte qual é a razão da “obsessão pela reconciliação com os integristas”. E ainda quem avise: “Suscitar um cisma silencioso, para resolver um outro, não é boa ideia…”

Lembrar as vítimas do Holocausto

Hélène Berr nasceu em 1921 e morreu em 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde, semanas antes, morrera Anne Frank. Esta rapariga francesa escreveu, entre 1942 e 1944, um diário que dá conta de como Paris foi mudando em consequência da ocupação nazi. Até ao início do ano passado, altura em que foi publicado, sob o título de Journal d’Hélène Berr, apenas um reduzido número de pessoas conhecia este impressionante documento e a sua autora. A Portugal, o Diário chegou em Outubro, trazido pela Dom Quixote.

Sendo judia, Hélène Berr não parece simpatizar com o ideal sionista, que julga “demasiado estreito”. Não consegue, aliás, ter o sentimento de pertença a qualquer grupo. “Sofro por ver o mal abater-se sobre a humanidade; mas como não sinto que faça parte de nenhum grupo racial, religioso, humano (porque isso implica sempre orgulho), não tenho para me sustentar senão os meus debates e as minhas reacções, a minha consciência pessoal”, escreve ela no dia 31 de Dezembro de 1943.

O Diário testemunha eloquentemente a ferocidade crescente do ocupante da capital francesa. No dia 10 de Julho de 1942, por exemplo, Hélène Berr regista que os judeus deixaram de ter o direito de atravessar os Champs-Élysées. O impedimento resultava da nona ordenança alemã, que estabelecera, no dia anterior, que os judeus não poderiam, doravante, entrar em cinemas, teatros, museus, bibliotecas, estádios, piscinas, jardins públicos, restaurantes e salões de chá. Nos grandes armazéns ou nos estabelecimentos comerciais, haveria uma permissão de acesso, mas apenas entre as 15 e as 16 horas.

Esta rapariga de vinte e poucos anos vai também anotando a reacção dos parisienses ao terror que se vai instalando, à tragédia pressentida. Num sábado de Julho, observa “a simpatia das pessoas na rua, no metro” ou “o olhar franco dos homens e das mulheres, que enche o coração de um sentimento inexprimível”. O que vê dá-lhe a consciência de ser superior aos “brutos” que a fazem sofrer e de estar unida “aos verdadeiros homens e às verdadeiras mulheres”.

Nesse sábado, o pai de Hélène Berr encontrava-se detido. O pretexto tinha sido a circunstância de a estrela amarela, que todos os judeus, desde os seis anos de idade, eram obrigados a usar desde 29 de Maio de 1942, não se encontrar bem cosida. Tinha sido fixada com o recurso a agrafes e molas para poder ser colocada em todos os fatos, não se cumprindo assim a oitava ordenança alemã que estabelecia que a estrela contendo a inscrição “Judeu” teria de ser solidamente cosida.

No dia 18 de Setembro, Hélène Berr refere uma nova detenção por causa da estrela: “O Dr. Charles Mayer foi preso porque usava a estrela demasiado acima...” As leis alemãs, “ilegais e obra do capricho”, anota a jovem francesa, são “um pretexto para prender, é este o seu único objectivo”. Todavia, a estrela colocada demasiado acima do sítio indicado suscita a uma senhora que repara no que se passa um comentário de uma elucidativa estupidez: “Isso prova verdadeiramente a má-fé deles!!!”. A tal senhora, numa curta afirmação, invertia a realidade e transformava uma vítima inocente num culpado por premeditação e tendência. Se a crueldade do ocupante alemão não é causa de espanto, o comportamento dos parisienses é, amiúde, surpreendente, umas vezes, pelos gestos bondosos e inesperados; outras, pelas atitudes mesquinhas ou vis.

Às vezes, Hélène Berr sente-se incomodada com a indiferença de certos católicos perante o sofrimento dos judeus. Uns acreditam na vinda do Messias, outros continuam à espera dele, escreve a jovem, acrescentando: “Mas o que fizeram eles do Messias? Continuam tão maus como antes da sua vinda. Crucificam Cristo todos os dias. E se Cristo voltasse, não teria ele de responder com as mesmas palavras? Quem sabe se a sua sorte não seria a mesma?”

O Diário termina no dia 15 de Fevereiro de 1944, mas a vida da autora prossegue. Por pouco tempo, é verdade. Em 27 de Março, no dia em que celebrava 23 anos, é deportada com os pais para o campo de concentração e de extermínio de Auschwitz. Após a execução do pai e, a seguir, da mãe, conduzida à câmara de gás no dia 30 de Abril, Hélène Berr é remetida para Bergen-Belsen, onde morre no início de Abril de 1945, dias antes da libertação do campo pelas tropas britânicas. Auschwitz-Birkenau havia sido libertado pelo exército soviético no dia 27 de Janeiro de 1945. No aniversário desta data, por iniciativa da Organização das Nações Unidas, assinala-se, desde 2005, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

A efeméride este ano foi marcada pelo eco de uma entrevista de um bispo integrista ao programa Uppdrag gransning (Missão investigação), da televisão pública sueca, exibida dois dias antes de Bento XVI ter anunciado a anulação da excomunhão desse e de mais três bispos ordenados por Marcel Lefebvre. Na ocasião, o prelado negou a existência das câmaras de gás e reduziu absurdamente o número de judeus assassinados nos campos de extermínio ou em outras execuções em massa, tentando, assim, diminuir o carácter hediondo do Holocausto.

No início semana que passou, Bento XVI considerou necessário vir pedir que o Holocausto “seja para todos uma advertência contra o esquecimento, contra a negação ou o reducionismo”, lembrando que “a violência feita contra um só ser humano é violência contra todos”. Ontem, a imprensa revelava que o bispo integrista tinha apresentado “sinceras desculpas” pelo “sofrimento” causado ao Papa pelas suas “declarações imprudentes”. O bispo teimou, portanto, na má-fé. Pediu desculpa pelo incómodo causado a Bento XVI, mas não pela ofensa à memória das vítimas do Holocausto e adjectivou com uma generosidade imprópria as suas infames declarações.

Hélène Berr, que atravessou uma época terrível com uma admirável “doçura de coração”, teria talvez julgado oportuno reler o que escrevera no dia 11 de Outubro de 1943: “Por vezes pensava que estava mais perto de Cristo do que muitos cristãos, e disso eu tive a prova”.

Eduardo Jorge Madureira
[Diário do Minho. 1 de Fevereiro de 2009]