Dom Hélder nasceu há 100 anos, completados este sábado – e morreu em 1999, fará em Agosto 10 anos. Na TSF, está um registo do espectáculo da Missa dos Quilombos, feito em 1993 e reproduzido de novo este sábado, onde Dom Hélder faz a invocação a Maria. Quem quiser ver imagens do espectáculo, pode ir aqui ao YouTube. A seguir, em jeito de homenagem e memória, fica o texto publicado no Janus 2007.
A sua utopia de um mundo mais justo e solidário ficou expressa no título de um dos seus livros: O deserto é fértil. Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza, 7 de Fevereiro de 1909 – Recife, 27 de Agosto de 1999) foi a figura mais carismática do episcopado brasileiro do século XX. Arcebispo do Recife, a sua opção em favor dos mais pobres e do desenvolvimento fez florir muitos desertos em todo o mundo.
Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”
“O padre tem que se gastar”Corpo franzino e frágil, a sotaina de cor creme agigantava-se com o seu gesto largo abarcando o horizonte, discurso feito de braços dançantes, mãos abertas, olhos brilhantes. Quem alguma vez o escutou ao vivo pôde sentir a profunda convicção de cada palavra. Citava as estatísticas do subdesenvolvimento, colocava nomes e rostos concretos em histórias de miséria, apelava a não desanimar perante nenhuma dificuldade, bradava pela certeza de um mundo com mais esperança para todos.
Ia buscar à fé cristã os fundamentos para esse agir: “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” “Sempre que procura defender os sem-vez e sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política.” Uma das suas histórias conhecidas é de um telefonema para uma esquadra de polícia, quando um homem estava sendo espancado – vivia-se o tempo da ditadura militar no Brasil: “Aqui é Dom Hélder. Está preso aí o meu irmão.” O agente espanta-se: “Seu irmão, eminência?” Resposta pronta: “É, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai.”
O pai – o de sangue – era jornalista, empregado de comércio. A mãe era professora primária. Décimo primeiro de treze filhos (só oito sobreviveram), Hélder Câmara ainda terá ouvido o pai, mação, perguntar-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Ordenado em 1931, em Fortaleza, seria nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952, aos 43 anos de idade. Doze anos depois, em Março de 1964, foi transferido para a sé de Olinda e Recife, onde esteve até resignar, em 1985. Morreu com 90 anos.
Nos primeiros anos de sacerdócio ainda adopta ideias integralistas. Mas cedo evolui. No Rio de Janeiro, cria a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência, para apoio a habitantes das favelas e a famílias pobres. Na mesma altura, é um dos impulsionadores da colegialidade e da colaboração episcopal, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (onde foi o primeiro secretário-geral, entre 1952 e 1964) – e no Conselho Episcopal Latino-Americano.
Quando é nomeado para arcebispo de Olinda e Recife, o Brasil já vive em plena “ditadura dos coronéis”. Alarga a sua acção à defesa dos direitos humanos e da liberdade política, ao mesmo tempo que contesta a grande concentração da riqueza brasileira (e mundial) nas mãos de poucas famílias. Um dos seus últimos actos públicos seria mesmo o lançamento, com a Fundação Joaquim Nabuco, da campanha Ano 2000 Sem Miséria. A fome, a miséria e a guerra eram os seus grandes inimigos: seria uma vergonha o mundo chegar ao ano 2000 com milhões a viver presos dessas realidades.
Eram essas atitudes e opiniões que o catalogavam, em muitos meios, como o “bispo vermelho” ou “comunista”. O próprio brinca com as acusações e repete a frase antes citada. Nos anos de chumbo do Brasil, sofre retaliações, os militares assassinam-lhe o secretário, fica sem acesso aos meios de comunicação. Obstáculos que ele ultrapassa falando, no estrangeiro, da realidade do Brasil – e do mundo, nunca esquecido. A importância de toda essa actividade – a que se juntam mais de duas dezenas de livros publicados e traduzidos em várias línguas – leva a que lhe sejam atribuídas mais de seiscentas condecorações e títulos honorários, vinte e cinco prémios da paz e dos direitos humanos. Proposto para Nobel da Paz, a ditadura militar conseguiu obstar a que o galardão lhe fosse dado.
Nas suas andanças pelo mundo, faz muitas perguntas: Que fazer perante a miséria do mundo? Como lutar quando 20 por cento da humanidade concentra 80 por cento da riqueza? Como criar alternativas não-violentas quando os países mais poderosos gastam em armamento o que serviria para erradicar do planeta a doença e a fome? E as respostas vinham num sentido: lutar contra a resignação, denunciar injustiças, ser solidário, adoptar um estilo de vida sóbrio e que não afronte quem nada tem.
Um abrigo para refugiados
A coerência da sua vida foi até ao ponto de deixar o palácio episcopal, substituindo-o por uma pequena casa onde todos podiam entrar. Nela se refugiavam perseguidos políticos e pobres. Organizou a Operação Esperança, que permitiu a criação de conselhos de moradores para resolver os problemas das populações ribeirinhas afectadas por problemas de cheias periódicas.
No Concílio Vaticano II (1962-65), a acção de Hélder Câmara, juntamente com outros bispos e cardeais, acaba por ser decisiva na recusa dos esquemas e organização preparados pela Cúria Romana e na adopção de um modelo de debate colegial. Vigoroso adepto da teologia da libertação, acabaria imerecidamente castigado por João Paulo II: ao contrário do que muitas pessoas pediam, nunca foi feito cardeal; pior ainda, o seu sucessor na diocese de Olinda e Recife acabou com todas as vertentes de acção social na formação do clero.
Após o concílio, Dom Hélder envolve-se em três projectos de natureza bem diversa: pede ao padre e compositor suíço Pierre Kaelin que componha um oratório sobre São Francisco de Assis. Nasce a “Sinfonia dos Dois Mundos”, em seis andamentos. No último, “tudo termina na esperança”, descreverá Dom Hélder. “Quanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega no seio.” Depois, encontra-se com o bailarino Maurice Béjart e este cria, a partir das sugestões do bispo, a “Missa para o Tempo Futuro”. Finalmente, na “Missa dos Quilombos”, Milton Nascimento coloca-o a declamar um longo poema à Virgem.
Num dos seus textos sobre a paz, escreve Dom Hélder em Abril de 1980: “Preciso levar aos homens o ramo de oliveira que o Senhor Deus me confiou!/ Por enquanto não há lugar nenhum onde pousar: (…) Voarei a qualquer preço... Enquanto eu não cair de cansaço. (…) voarei, voarei, voarei...”
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