No Público de dia 23 de Fevereiro, o biblista e teólogo e antrópólogo Carlos Gil Arbiol fala sobre as primeiras comunidades cristãs e São Paulo, numa entrevista de António Marujo:
A Bíblia tem que ser lida com o contributo das ciências sociais, diz Carlos Gil Arbiol, biblista que recorre à antropologia cultural para entender o cristianismo da primeira geração. O que o leva a dizer que São Paulo se opunha ao culto ao imperador e que chegará o momento em que as mulheres recuperarão o papel de liderança que tiveram nas comunidades organizadas por Paulo.
Frade capuchinho, professor na Universidade de Deusto, no País Basco (Espanha), Carlos Gil Arbiol especializou-se na área da Bíblia e antropologia cultural dos primeiros tempos do cristianismo. Autor de vários livros e artigos em revistas da especialidade, Arbiol, de 37 anos, esteve na Universidade Católica, onde fez três conferências (Lisboa, Porto e Braga). No último número da revista da Faculdade de Teologia, Didaskalia, é possível ler um dos seus textos.
Tem olhado para as origens do cristianismo a partir da antropologia. A teologia precisa deste contributo?
CARLOS GIL ARBIOL - A teologia necessita das ciências sociais, porque elas permitem enraizar o evangelho na cultura em que ele nasceu. A fé cristã e a Igreja não são realidades etéreas, caídas do céu, são formuladas num lugar e numa cultura concreta. E devem ir-se adaptando a essas culturas, para expressar a originalidade do evangelho, para reformular e encontrar outros modos de expressar o mesmo.
A antropologia pode ajudar-nos a compreender a Bíblia de outro modo?
Claro. Por exemplo, as cartas de Paulo reformulam o evangelho de um determinado modo. As figuras literárias que Paulo utiliza, as metáforas, a forma de construir as comunidades - tudo está em função de uma cultura: a importância da honra e da vergonha, da pureza e da impureza, do patronato e da clientela... são elementos que condicionaram a formulação dos textos bíblicos.
Ecclesia era um conceito político quando Paulo o adaptou. A Igreja nasceu como realidade política?
Em torno de Jesus e de Paulo, quando nasce o movimento cristão, não há uma distinção entre o âmbito religioso e político. O culto ao imperador tem uma dimensão religiosa mas está indissoluvelmente unido à política. Do mesmo modo, as comunidades de Paulo tinham uma dimensão religiosa, mas também política. O religioso e o político estavam fundidos, tal como o religioso e o doméstico.
A diferença de hoje entre religioso e laico não existia, existia entre político e doméstico. A religião não tem uma dimensão exclusivamente doméstica. Não era uma religião para a casa, mas para transformar a sociedade.
O cristianismo começou por transformar os modelos que existiam - desde logo, os patriarcais.
Sim. O cristianismo primitivo foi assimilando certos modelos para ser relevante no seu contexto cultural. E um desses modelos foi o de família patriarcal. Onde melhor se percebe a assimilação desses modelos é nas cartas deutero-paulinas: morto Paulo, os seus discípulos continuaram desenvolvendo a sua tradição e assimilam definitivamente o modelo patriarcal.
É nessas cartas que aparecem as listas de comportamentos para cada membro da casa: maridos, esposas, filhos, amos e escravos. Isso aparece na segunda geração. A Igreja toma um cariz mais patriarcal depois da morte de Paulo.
O Paulo mais claramente oposto ao Império e mais igualitário, que tem sido redescoberto, começa a ser posto em causa nesse momento?
Em parte. Havia 13 cartas até agora atribuídas a Paulo. Actualmente, considera-se que sete são de Paulo e sobre as outras seis há muita discussão e tende-se a pensar que foram escritas por discípulos de segunda e terceira geração, no início do segundo século.
É isto que nos permite compreender que o pensamento de Paulo foi adaptado, depois dele, a diferentes circunstâncias. Isto evita que se projectem sobre o Paulo histórico modelos culturais assimilados muito mais tarde. E permite descobrir um Paulo muito mais carismático, que assumiu diferentes modelos que depois se foram perdendo pelo caminho.
O anúncio de um crucificado opunha-se ao culto do imperador. Esta é uma ruptura grande?
A proclamação do evangelho da cruz aparecia como ameaça e desafio ao único poderio, o do imperador. Proclamar um crucificado, humilhado pelo poder romano, tinha uma forte carga de desestabilização e ameaça.
O poder romano baseava-se na necessidade de dominar, controlar e submeter todos os povos à volta. A propaganda política sustentava que era a única maneira de manter a pax romana. A esperança que o imperador traria era que ele garantia a estabilidade do mundo, mas através do domínio dos povos à volta e dos cidadãos do império - ou seja, humilhavam-se os demais para o seu enaltecimento.
A cruz significa precisamente o contrário: Deus preferiu humilhar-se, desprender-se de toda a sua capacidade de controlo e domínio, para enaltecer os subjugados. Essa é uma estratégia de esperança radicalmente invertida. Quem recebe esta boa notícia não são os poderosos, mas as vítimas do império. Por isso, entre outras coisas, o evangelho de Paulo teve enorme êxito: encontrou um enorme eco em todos os que o império deixara à margem e não tinham possibilidade de futuro.
Tem sentido propor hoje esta religião do fracasso, da cruz, numa sociedade que acentua antropologicamente o sucesso, a riqueza, o poder?
Estamos demasiado acostumados à ideia de que todos alcancemos o maior bem-estar possível, sem ter em conta as consequências negativas dos nossos excessos de vida para outras pessoas.
Uma das actualizações que poderia ter este evangelho da cruz é fazer-nos descobrir os valores positivos que há nos excluídos da sociedade. Criámos uma sociedade fictícia de bem-estar à custa das oportunidades de futuro de outras pessoas. Se, em vez disso, orientarmos a vida para os que nos estão denunciando nos nossos próprios excessos, talvez sejamos capazes de construir uma sociedade que tenha algo para muitos mais.
Esta é uma leitura teológica. Paulo, como Jesus, descobriu que Deus olhava especialmente para aqueles que todos consideravam os últimos. O que ele percebe é que, se Deus é capaz de solidarizar-se até ao fim com os últimos, é capaz de solidarizar-se com todos. Essa seria a melhor tradução actual do evangelho da cruz.
A integração, nas primeiras comunidades, incluía também as mulheres. Esse discurso, já assumido por teólogos e biblistas, deveria ter consequências também para a Igreja?
Tem que ter consequências. Talvez a situação da Igreja no Ocidente, de minoria perante um contexto cada vez mais secularizado, leve a uma atitude defensiva. Isto favorece a proliferação de atitudes do passado, de modelos de cristandade em que a Igreja ocupava todos os âmbitos da sociedade. Isso hoje é impensável e, quanto mais tardarmos a renunciar a essa ideia de cristandade, mais tardaremos em tornar relevante o evangelho na nossa sociedade.
Essa é uma das consequências que deverá ter: nos textos do Novo Testamento, nas primeiras comunidades, as mulheres tiveram um protagonismo que não tiveram em nenhum outro grupo. Era a aplicação do princípio teológico de que em Cristo, como diz Paulo na Carta aos Gálatas, não há homem nem mulher, nem escravo nem livre, nem judeu nem pagão.
E quando se fala de protagonismo, falamos também de liderança das comunidades?
Sem dúvida. O próprio Paulo afirma, na Primeira Carta aos Coríntios, que as mulheres, como os homens, podiam orar e profetizar - ou seja, dirigir a palavra à comunidade, ter um papel de liderança - tal como o de acolher a comunidade em sua casa.
Ou seja, temos testemunhos suficientes para reformular hoje o ministério [sacerdotal], profundamente enraizado nas origens do cristianismo e dando um protagonismo maior às mulheres. Isso acabará acontecendo.
Não significa também compreender e assumir os textos de Paulo, por exemplo, uma vez que há pessoas que ainda procuram ignorar o que eles dizem?
Sim, os textos sobre este tema e outros, no Novo Testamento, são de difícil interpretação, ambíguos e por vezes contraditórios. Há textos nos quais as mulheres têm um protagonismo indiscutível e claro, outros em que esse protagonismo está marginalizado. Ambas as realidades, e outras mais, existiram no cristianismo primitivo. Só que nem uma nem outra era exclusiva.
Uma comunidade como a Igreja actual tem autoridade suficiente para dizer qual desses modelos do cristianismo primitivo é o mais actual, mais relevante para a situação que vivemos e que mais justiça hoje faz ao evangelho.
Para voltar à questão antropológica: é pouco credível manter o actual modelo perante a antropologia contemporânea, que entende homem e mulher iguais em dignidade e em direitos?
A Igreja tem capacidade e autoridade suficientes para fazer um discernimento sobre a sua própria história e saber encontrar em textos das suas origens, do Novo Testamento, a base para dar à mulher o protagonismo que até agora se lhe negou.
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