Reeleger um Presidente evangélico (sem filiação),
para quem o cristianismo deve ser “um agente activo e tangível no mundo” ou
eleger um Presidente mórmon para o qual a fé deve promover uma crença comum em
convicções morais. A escolha não é esta, mas esse é um dos aspectos em jogo nas
eleições presidenciais dos Estados Unidos, que se disputam amanhã, terça-feira,
para o mandato 2013-2016.
Em pano de fundo, está também a maior ou menor aproximação
dos dois candidatos à Igreja Católica, cujo peso nos EUA é importante – perto
de 70 milhões de pessoas numa população de cerca de 310 milhões. Neste último
ano, o debate sobre este tema cresceu de tom, por causa do plano nacional de
saúde promovido pela Administração Obama, e das declarações do Presidente
apoiando o casamento homossexual. Não por acaso, os dois candidatos a
vice-presidente – Joe Bidden, do lado de Obama, e Paul Ryan, na dupla com
Romney – são ambos católicos, embora pouco tenham a ver um com o outro, em termos
ideológicos.
Quem teve a oportunidade de ler algum ou os dois
livros de Obama já publicados em Portugal – “A Minha Herança” e “A Audácia da
Esperança” (ambos editados pela Casa das Letras) – reparou com certeza em
alguém que faz da sua fé um fundamento para a acção cívica e a intervenção
social. E que identifica a história do povo bíblico com a vida actual dos
crentes.
No primeiro dos livros citados, a descrição do
momento em que Barack Obama decidiu tornar-se cristão é comovente: “E naquela única
nota – esperança! – ouvi outra coisa; aos pés daquela cruz, dentro dos milhares
de igrejas espalhadas pela cidade, imaginei as histórias dos negros comuns a
fundirem-se com as histórias de David e Golias, Moisés e o Faraó, os cristãos
lançados aos leões, o campo de ossos secos de Ezequiel. Essas histórias – de
sobrevivência e liberdade e esperança – tornavam-se a nossa história, a minha
história; o sangue que fora derramado era o nosso sangue, as lágrimas as nossas
lágrimas.”
Stephen Mansfield, autor de “A fé de
Barack Obama” (não publicado em Portugal) e considerada por várias pessoas como
uma das melhores biografias do actual Presidente, diz na revista católicafrancesa “La Vie”: “Obama considera que a sua fé deve
influenciar a maneira de governar o país. E assim ele leva os valores
religiosos à esfera política.”
Esse modo de agir funda-se desde cedo na
trajectória do jovem animador social dos bairros negros e pobres de Chicago e
atinge um momento decisivo exactamente quando Obama descobre na fé cristã o
fundamento e o horizonte da sua acção. “A minha fé
crista dá-me uma perspectiva e uma segurança que eu não teria por outros meios:
que eu sou amado e que, no fim do caminho, Deus está a guiar”, dizia o
Presidente-candidato, a 21 de Agosto, à “Washington National Cathedral
Magazine”, uma revista religiosa, citado pela “La Vie”.
No texto publicado neste semanário francês, Henrik
Lindell caracteriza a fé de Obama como “livre e descomplexada, que não se
assemelha à do seu adversário Mitt Romney” e que corresponde a uma América
“mais heterogénea que nunca”. O mesmo articulista aponta, alias, três actos da
Presidência de Obama que são “explicitamente inspirados pelos seus valores
cristãos”: a reforma do sistema de saúde, que permitirá a 35 milhões de
cidadãos o acesso, pela primeira vez, a cuidados de saúde; a salvação dos
empregos na indústria automóvel; e o “discurso do Cairo”, de 4 de Julho de
2009, onde o Presidente defendeu o diálogo entre os EUA e o islão, baseados
ambos em princípios comuns como “a justiça e o progresso, a tolerância e a
dignidade de cada ser humano”. Esse discurso é muitas vezes considerado como
tendo aberto as portas às Primaveras árabes.
Ora, precisamente a reforma do sistema de saúde é
um dos campos de batalha da hierarquia católica norte-americana com o ainda
Presidente. Os bispos têm-se mobilizado contra a posição do Presidente, que
pretende que todos os centros de saúde – incluindo os que são propriedade da
Igreja – dêem acesso a métodos de planeamento familiar gratuito a todos os que
o solicitem. Ao mesmo tempo, Obama afirma-se favorável à despenalização do
aborto, posição que ele explica no livro “A Audácia da Esperança”, num capítulo
dedicado exactamente às questões da fé.
A atitude proposta por Obama para enfrentar a
questão do aborto é a de perceber que existe um problema e que um político tem
que tentar resolver de alguma maneira, a bem das pessoas. Tal como as questões da
pobreza, do racismo ou do desemprego, que não são “simples problemas técnicos”,
antes exigem “levar a cabo mudanças nas políticas governamentais e também nas
mentes e nos corações” dos cidadãos.
O que viu Mitt Romney
No seu discurso sobre a religião nos EUA, em 2007,
Mitt Romney fala da “crença comum nas convicções morais” que as religiões devem
promover. E recordava: “Fui ensinado em minha casa a honrar Deus e amar o meu
vizinho. Vi o meu pai marchar com Martin Luther King. Vi os meus pais prestar
cuidados compassivos a outras pessoas (...). Emociono-me com as palavras do
Senhor: ‘Eu estava com fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de
beber; era peregrino e recolhestes-me, estava nu e vestistes-me.”
No “La Vie”, o articulista Henrik Lindell situa as
diferenças de Romney em relação a Obama precisamente no campo das escolhas
sociais. Se vencer, o candidato republican imporá a desregulação da economia e
a descida de impostos sobretudo para os mais ricos. E uma das suas primeiras
medidas sera a abolição da reforma do sistema de saúde.
A
oposição de Romney ao sistema de saúde é explicada na revista francesa por
Brian Fikkert, director do Chalmers Center para o desenvolvimento económico,
que depende do Covenant College, na Georgia: “A ideologia republicana funda-se
no medo de um Estado centralizador que ditaria todas as regras. Confia-se mais
nas autoridades locais, nos Estados (dos quais alguns são comparáveis em
tamanho aos grandes países europeus) e às iniciativas privadas e mesmo
religiosas, por vezes actuantes, sobre as quais se pode exercer um certo
controlo”, diz o especialista.
Ao
mesmo tempo, a oposição de Romney ao casamento homossexual e ao planeamento
familiar e à contracepção pagos pelo Estado é considerada como pouco
consequente por Max Mueller, politólogo da Universidade de Harvard e
especialista na influência dos mórmones na política: “Romney é conhecido pelo
seu estatuto de bom administrador e pela sua capacidade de mudar de ponto de
vista em função dos eleitores. O seu conservadorismo moral é tipicamente
republicano e ele não mudará nada das regras actuais. Ele diz que é contra o
aborto mas Bush, pai e filho, e Reagan, também o eram e não puseram em causa o
direito de abortar.”
O
texto da revista “La Vie” recorda outras diferenças, relativas à política
internacional: Romney defende o reconhecimento de Jerusalém como capital de
Israel e o direito deste país desenvolver acções militares contra o Irão. E tal
como Bush, e ao contrário de Obama, advoga a ideia do “excepcionalismo”
americano no mundo. A par do aumento do orçamento da Defesa, que em 2022
deveria atingir um bilião de dólares anuais, o dobro do orçamento actual.
(No site da CNN, podem ler-se dois mais extensos e fundamentados retratos da dimensão religiosa dos candidatos Barack Obama e Mitt Romney; fotos Getty Images reproduzidas nos artigos da CNN)
1 comentário:
Obrigada é interessantíssimo!
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