segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

A Igreja na Cidade
o poder do encantamento e a força do testemunho


Eduardo Jorge Madureira Lopes
in Diário do Minho, 25.1.2004


Os lugares comuns parecem ter consagrado ad aeternum a identidade católica de Braga como se duas ou três designações religiosas — a “cidade dos arcebispos”, a “Roma portuguesa”... — fossem o bastante para, definitivamente, pôr a salvo a alma da cidade. Também os pouco abundantes olhares literários sobre Braga repararam na religiosidade da terra, que alguns autores julgaram mais dada à devoção do que ao amor ao próximo. Há, claro, diferenças entre a imagem que é devolvida pela reputação e a que é mostrada pelo espelho. Sucede que o espelho de hoje já não reflecte a imagem da cidade católica, como observou D. Jorge Ortiga, durante uma tertúlia realizada em Dezembro num antigo café do centro histórico.

É difícil dizer algo de novo sobre o que deve ser a Igreja em Braga nos dias de hoje. A Igreja, neste ou noutro lugar, neste ou noutro tempo, se é permitido usar o que S. Lucas disse num contexto algo diferente, “são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”. A Igreja é um convite a um testemunho. Um convite endereçado todos os dias a cada um. Enzo Bianchi, prior da comunidade de Bose, em Itália, um dos mais importantes centros de espiritualidade da Europa, recorda que “a humanidade precisa mais de testemunhos do que de advogados de uma verdade em relação à qual o máximo a que podemos aspirar é ser pobres mendicantes”.

Os “advogados” sobrecarregam de palavras um mundo com pouca paciência para escutar, um mundo que precisa menos de lições de moral e mais de testemunhos. Só estes, como o padre António Vieira tão bem explicou, operam milagres. E “o milagre que corresponderia aos interesses da nossa época, o milagre de que a nossa época tem necessidade e ao qual seria sensível, julgo que seria o milagre do amor e da fraternidade dos cristãos”, afirma o padre Louis Evely. Uma coisa assim ajudaria a mudar o mundo: “o mundo converteu-se ao princípio, quando se dizia dos cristãos: ‘Vede como eles se amam!’”.

A Igreja é um anteprojecto do mundo (de um mundo diferente do que quer que tudo e que todos sejam uma mercadoria que se compra e que se vende). Ela não é, como alguns parecem julgar, uma cadeia de distribuição de sacramentos ou uma repartição (uma burocracia auto-suficiente) onde alguns funcionários mal-humorados atendem os que pretendem subscrever a bom preço Planos de Poupança Eternidade. Respeitando a liberdade de cada um e promovendo espaços de partilha, a Igreja deve, portanto, ir ao encontro do mundo para lhe apresentar uma maneira de viver diferente da que se está a querer impor por todo o lado. Desse modo, será o sal da terra e a luz do mundo.

É verdade que “não basta — ainda que seja necessário — organizar a política e a economia de forma a que os homens vivam e sejam felizes”, escreve o cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, que considera que “é necessário propor-lhes uma visão deles próprios e do futuro, capaz de lhes oferecer um horizonte de pensamento e a sua parte de sonho. A beleza tem a graça secreta de fazer despertar o amor, como a centelha que faz começar o fogo, cuja chama ilumina e nos aquece. A inteligência não se extingue na sua função crítica. E as religiões murcham mais por perderem a sua capacidade de maravilhar do que pela dificuldade de proporem dogmas. A pior coisa que pode acontecer a uma notícia não é parecer desagradável, mas sim parecer maçadora”.

E, neste tempo saturado de informação, é essencial reencontrar a capacidade de maravilhar (há obras de arte que mantêm essa capacidade intacta, como é o caso da Paixão segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach. Depois de ouvir esta obra, dirigida por Nikolaus Harnoncourt, o escritor Antonio Muñoz Molina compreendeu “a imperiosa urgência de um testemunho”). O poder do encantamento e a força do testemunho — não as palavras que vão sendo trituradas por cansados funcionários de Deus — ajudarão a certificar a proposta de sentido que está na Palavra de Vida, na Boa Nova que Jesus Cristo nos legou.

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