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Na sua intervenção, ex-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz usa o seu estilo inconfundível, de referência permanente ao texto bíblico, à teologia dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo e ao pensamento social contemporâneo para propor um caminho exigente de fidelidade ao Evangelho. Publica-se a seguir o texto que serviu de base à sua intervenção, pleno de actualidade e com referências ao tempo de Quaresma que, de novo, os cristãos estão a viver.
Alfredo Bruto da Costa na Sessão de Estudos do Metanoia, em Março de 2016
(foto de António José Paulino)
Agradeço o convite para falar
neste encontro do Metanoia.
Devo anunciar que não tenho
qualquer qualificação para falar da Misericórdia. Aceitei o convite no
pressuposto de que os que me convidaram admitem que eu tenha alguma coisa de
útil a dizer. É confiado neles que aqui estou.
Peço, pois, que me ouçam com
redobrado espírito crítico.
***
Pareceu-me que poderia ter
interesse para vós refletir no tema da Misericórdia em três pontos:
a) a importância da misericórdia
na mensagem evangélica e na espiritualidade cristã;
b) como devemos entender hoje as
exigências da Misericórdia, designadamente as chamadas «obras da misericórdia»;
c) o grau de transformação
individual e comunitária que a Misericórdia recomenda. Designadamente, se será
um problema de pequenos acertos ou, como se diz no título deste encontro, serão
necessários «novos estilos de vida».
A importância da misericórdia na mensagem cristã
Creio que todos nós ouvimos falar,
desde criança, da Misericórdia de Deus. «Deus é misericordioso» é uma expressão
que certamente nos é familiar. A questão que se coloca é a da noção que
tínhamos da Misericórdia de Deus e como a entendemos no conjunto dos atributos
de Deus. Deus é justiça, é amor, é omnipotente, etc. É também misericórdia.
Como conciliar todos estes atributos de Deus?
Vou socorrer-me do livro A Misericórdia [ed. Lucerna], do cardeal
Walter Kasper, que é teólogo, para situar o problema. Faço-o de forma
esquemática.
- a misericórdia, que é tão
fundamental na Bíblia, ou caiu largamente no esquecimento na teologia
sistemática, ou é tratada apenas de uma forma muito pouco cuidada. (...) [A] espiritualidade
e a mística vão muito adiante da teologia académica. (p. 19-22)
- se não somos capazes de anunciar
de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de
aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus. (p. 15)
- Depois das terríveis
experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão
sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do
que nunca. (p. 15)
- A misericórdia é uma dimensão
importante do pontificado do Papa Francisco. Já era preocupação quando ainda
era Bispo de Buenos Aires. Mas o Papa situa-se numa sucessão de papas que se
ocuparam do assunto: João XXIII (nos seus escritos e no discurso de abertura do
Concílio Vaticano II), João Paulo II (designadamente na encíclica Dives in Misericordia, Bento XVI também
valorizou o tema, além do mais, na encíclica Caritas in Veritate. (pp. 15-19)
- É necessário repensar do
princípio ao fim a doutrina sobre os atributos de Deus, concedendo à
misericórdia divina o lugar que lhe pertence. (p. 21)