sábado, 28 de junho de 2003

Destaco, no Público de hoje, o texto Uma Igreja Que Acorda?, de Augusto Santos Silva, a pretexto dos 25 anos de ordenação episcopal de D. José Policarpo. Um (longo) extracto:

" (...) Como explicar a enorme adesão que este Papa - moral e institucionalmente conservador, manifestando, até, elementos de doutrina e crença que julgávamos ultrapassados, pelo seu tradicionalismo quase mágico, mas inimigo das ditaduras, paladino das liberdades cívicas e da paz, prudente mas efectivo adepto da comunicação entre religiões e éticas e assim aceitando, se não a gosto pelo menos de facto, a realidade pluralista da contemporaneidade - suscita em milhões e milhões de pessoas, e, em particular, junto dos jovens?

Eu encontro múltiplas razões. O uso perfeito, a agilidade com que o Papa se move nos espaços e com os instrumentos constitutivos da modernidade: o movimento, a velocidade, a presença constante, a comunicação fácil, a "respiração" dos "media". Nesse sentido, este Papa tão conservador na doutrina e na organização é o contrário de um asceta ou de um hierarca fechado no Vaticano; é um homem do mundo, que se dirige a multidões em ambientes de encenação festiva e participação emocional. A elas oferece uma diferença, que elas têm sabido reconhecer: a diferença da convicção, de ter e propor valores e opções próprias, de contrapor ao relativismo cego ou passivo a coragem das escolhas, assumidas e duradouras. As novas gerações são as que mais notoriamente engrandecem esta recusa de ceder à dissolução, à apatia e à astenia. A Igreja de João Paulo II é, também, a voz do social, da atenção às pessoas, da demarcação face à teologia do mercado e à rasura neoliberal dos laços sociais. Trouxe, assim, com muita força, ao espaço público, os problemas e as causas das pessoas e da humanidade das pessoas - a pobreza, as migrações, os velhos, os desvalidos, os excluídos. E, com isso, reclamou e conseguiu, para si própria, a primazia na atitude do cuidado, da coesão, esses nomes modernos para os muito antigos e enraizados valores de misericórdia e comunhão. Essa ideia de fazermos todos parte do mesmo mundo, determos todos a mesma responsabilidade comum, salvarmo-nos e perdermo-nos todos (e não uns à custa dos outros), eis o ponto de convergência que identifico entre o apostolado de João Paulo II e, por exemplo, movimentos e tomadas de palavra que provêm de pontos muito diferentes do campo social e ideológico, como os defensores dos direitos humanos, do comércio justo ou do desenvolvimento sustentável.

Esta Igreja, que assim ganhou tanta força, que assim reconquistou tanta gente, que assim foi superando tantos dos erros e crimes passados, conseguirá, na transição que necessariamente sucederá ao fim do actual pontificado (e que, este, em tantos aspectos, já vem preparando), cortar com os pontos de bloqueamento que ainda hoje, e de forma não menos óbvia, impedem a plena comunicação com a modernidade?

Refiro-me à relação com a democracia: não com o regime democrático dos Estados, que essa está adquirida, mas a outra, não menos importante, a democratização da própria Igreja, ainda hoje tão verticalizada, tão sujeita a argumentos de autoridade, tão avessa à participação dos seus próprios membros, tão fechada ao debate livre de ideias. Refiro-me à inacreditável permanência do poder e da violência masculina, no interior da Igreja: à resistência, que nada justifica, à voz e à presença das mulheres, e à assunção plena, por estas, de responsabilidades eclesiais. Refiro-me à ainda tão ambígua relação com as sexualidades, a tão difícil aceitação daquilo que é, contudo, a mais natural das vivências dos homens e das mulheres. E refiro-me a essa forma particular, e particularmente violenta e ilegítima, de desconforto com a sexualidade e a natureza que é a imposição da regra do celibato.

Terá a Igreja vontade de enfrentar sem tibiezas estes pontos críticos? E, no caso português, estará também disposta a abandonar de vez o que ainda há nela da lógica do poder fáctico, e a praticar melhor uma comunicação aberta e despreconceituada com o país de hoje, mais heterogéneo, mais plural e mais cosmopolita?

É que nós - nós todos, crentes ou não crentes de várias confissões - precisamos da Igreja Católica portuguesa, como instituição religiosa, como referência ética, como actor social, como interpelação política. De uma Igreja com identidade própria, mas acordada, aberta e viva."

segunda-feira, 23 de junho de 2003

Fundação Betânia

A Fundação foi criada em 1990. O sítio na Internet, esse, é que acaba de nascer. A personalidade inspiradora é a Profª Manuela Silva, uma cristã comprometida, que já teve responsabilidades governativas.
De entre os seus objectivos, a Fundação quer “suscitar a procura de novos alicerces culturais e espirituais, que conduzam à realização harmoniosa do ser humano, na sua globalidade, e abram caminho a modos de vida e a relações sociais orientadas segundo o primado do amor; criar espaços de beleza, de interioridade e de comunhão, que incentivem o encontro mais fundo de cada pessoa consigo própria, com os outros, com a natureza e com o Absoluto; e catalisar formas de vivenciar e testemunhar estilos de vida fraterna, inspirados pela primazia do Ser, a simplicidade, a gratuidade, a disponibilidade e uma atitude contemplativa activa na fidelidade ao Amor”. Para isso acolhe pessoas que buscam espaços e tempos de encontro consigo mesmas e com os outros. O site refere palavras de Etty Hillesum: “Recolher-se para lutar e impedir que as suas forças se pulverizem”. As temáticas dos encontros que a Fundação organiza apontam nessa mesma direcção; por exemplo, no final de Junho, a proposta consistia em “Aprender a escutar a sabedoria do coração”, com a teóloga e psicoterapeuta Emma Ocaña. (O contacto com a Fundação pode ser feito para Travessa Deolinda Catarino, n.º 5, 2705-001, Colares, Tel.: 21 9291537)
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada
coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis

segunda-feira, 9 de junho de 2003

Pentecostes
João César das Neves

A Igreja Católica é uma instituição aberrante, corpo estranho e insólito na sociedade. Por exemplo, quem entende que se seja feliz trabalhando mais que todos sem ordenado ou relações sexuais, sujeito a autoridade alheia ou até vivendo livre atrás de grades? Não admiraria, pois, se um dia destes se declarassem inconstitucionais os votos de pobreza, castidade e obediência e a clausura das ordens religiosas; ou se uma directiva comunitária proibisse jejuns, vigílias e promessas em Fátima em nome da saúde pública. A Europa vê os templos, mas ignora as bem-aventuranças. A Igreja é familiar e desconhecida.
Entretanto reina o paganismo. Ligar a televisão ou seguir as conversas de café é mergulhar na idolatria. A sociedade burguesa gosta de se apresentar como humanista, livre, moderna, mas estes conceitos são inertes e inconsequentes. Na realidade, as pessoas entregam a vida aos velhos deuses da mitologia, prestando culto atento e venerador ao dinheiro (Mercúrio), ao prazer (Vénus), à farra (Baco), ao prestígio (Júpiter), à natureza (Ceres). Não é uma reprodução exacta dos mitos antigos, mas uma superstição pós-cristã, a quem a Igreja libertou dos medos dos espíritos malignos e ensinou a tolerar (não chega a amar) o próximo. Mas é sem dúvida politeísmo.
O paradoxo é que toda a cultura e raiz do Ocidente é cristã. Os positivistas dos últimos séculos limitaram-se a encadernar os princípios cristãos numa capa laica. Por exemplo, o projecto de Constituição Europeia, que se esqueceu de mencionar a herança cristã, só é compreensível dentro da cultura religiosa. Não é possível ler um artigo da lei, ou sequer entender qualquer elemento da nossa vida, incluindo o ateísmo, sem a referência à Igreja. O nosso tempo fala cristão sem saber o que diz.
Mas isso não impede que os critérios de Jesus sejam hoje mais alheios à vida comum que os nomes dos dinossáurios. Que devemos fazer acerca disto? Atacar e denunciar furiosamente a situação? Lamentar e chorar o seu destino? O pior do paganismo seria levar os cristãos a estas atitudes pagãs. Porque no fundo o fosso entre mundo e Igreja é natural. Foi sempre assim. A culpa é do ser humano, que só pode ser salvo da forma aberrante e insólita que Cristo usou. Só pobreza, castidade e obediência, na vida dos leigos ou plena nos votos, salva a sociedade dos deuses do luxo, fastio, miséria. «Não há debaixo do céu qualquer outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos» (Act 4, 12).
A Europa deve tudo à Igreja e despreza-a. A Igreja derrotada canta vitória, porque Cristo venceu: «No mundo tereis aflições. Mas tende coragem! Eu venci o mundo!» (Jo 16, 33). O mundo longe da Igreja manifesta essa vitória. Todos os avanços e progressos de políticos, empresários, cientistas e filósofos levam ao desespero. A sociedade mais avançada conduz à perdição. A televisão e os cafés mostram o paganismo e o ódio dos pagãos ao paganismo. Nunca foi tão claro que «não há qualquer outro nome...».
Depois da Ressurreição de Cristo, os cristãos estão salvos. Não vão ser salvos. Estão já salvos. A sua alegria e felicidade, a sua vida livre e redimida é a salvação desta Europa, como foi de Roma. «Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos. Seja a vossa bondade conhecida de todos. O Senhor está perto» (Fl 4, 4-5).
Estamos no tempo depois do Pentecostes.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
(in Diário de Notícias, 9.6.2003)
Comentário: reflexão interessante; partilho bastante do diagnóstico; sou reticente ou mesmo discordante do que há de terapêutica sugerida no texto.