Destaco, no Público de hoje, o texto Uma Igreja Que Acorda?, de Augusto Santos Silva, a pretexto dos 25 anos de ordenação episcopal de D. José Policarpo. Um (longo) extracto:
" (...) Como explicar a enorme adesão que este Papa - moral e institucionalmente conservador, manifestando, até, elementos de doutrina e crença que julgávamos ultrapassados, pelo seu tradicionalismo quase mágico, mas inimigo das ditaduras, paladino das liberdades cívicas e da paz, prudente mas efectivo adepto da comunicação entre religiões e éticas e assim aceitando, se não a gosto pelo menos de facto, a realidade pluralista da contemporaneidade - suscita em milhões e milhões de pessoas, e, em particular, junto dos jovens?
Eu encontro múltiplas razões. O uso perfeito, a agilidade com que o Papa se move nos espaços e com os instrumentos constitutivos da modernidade: o movimento, a velocidade, a presença constante, a comunicação fácil, a "respiração" dos "media". Nesse sentido, este Papa tão conservador na doutrina e na organização é o contrário de um asceta ou de um hierarca fechado no Vaticano; é um homem do mundo, que se dirige a multidões em ambientes de encenação festiva e participação emocional. A elas oferece uma diferença, que elas têm sabido reconhecer: a diferença da convicção, de ter e propor valores e opções próprias, de contrapor ao relativismo cego ou passivo a coragem das escolhas, assumidas e duradouras. As novas gerações são as que mais notoriamente engrandecem esta recusa de ceder à dissolução, à apatia e à astenia. A Igreja de João Paulo II é, também, a voz do social, da atenção às pessoas, da demarcação face à teologia do mercado e à rasura neoliberal dos laços sociais. Trouxe, assim, com muita força, ao espaço público, os problemas e as causas das pessoas e da humanidade das pessoas - a pobreza, as migrações, os velhos, os desvalidos, os excluídos. E, com isso, reclamou e conseguiu, para si própria, a primazia na atitude do cuidado, da coesão, esses nomes modernos para os muito antigos e enraizados valores de misericórdia e comunhão. Essa ideia de fazermos todos parte do mesmo mundo, determos todos a mesma responsabilidade comum, salvarmo-nos e perdermo-nos todos (e não uns à custa dos outros), eis o ponto de convergência que identifico entre o apostolado de João Paulo II e, por exemplo, movimentos e tomadas de palavra que provêm de pontos muito diferentes do campo social e ideológico, como os defensores dos direitos humanos, do comércio justo ou do desenvolvimento sustentável.
Esta Igreja, que assim ganhou tanta força, que assim reconquistou tanta gente, que assim foi superando tantos dos erros e crimes passados, conseguirá, na transição que necessariamente sucederá ao fim do actual pontificado (e que, este, em tantos aspectos, já vem preparando), cortar com os pontos de bloqueamento que ainda hoje, e de forma não menos óbvia, impedem a plena comunicação com a modernidade?
Refiro-me à relação com a democracia: não com o regime democrático dos Estados, que essa está adquirida, mas a outra, não menos importante, a democratização da própria Igreja, ainda hoje tão verticalizada, tão sujeita a argumentos de autoridade, tão avessa à participação dos seus próprios membros, tão fechada ao debate livre de ideias. Refiro-me à inacreditável permanência do poder e da violência masculina, no interior da Igreja: à resistência, que nada justifica, à voz e à presença das mulheres, e à assunção plena, por estas, de responsabilidades eclesiais. Refiro-me à ainda tão ambígua relação com as sexualidades, a tão difícil aceitação daquilo que é, contudo, a mais natural das vivências dos homens e das mulheres. E refiro-me a essa forma particular, e particularmente violenta e ilegítima, de desconforto com a sexualidade e a natureza que é a imposição da regra do celibato.
Terá a Igreja vontade de enfrentar sem tibiezas estes pontos críticos? E, no caso português, estará também disposta a abandonar de vez o que ainda há nela da lógica do poder fáctico, e a praticar melhor uma comunicação aberta e despreconceituada com o país de hoje, mais heterogéneo, mais plural e mais cosmopolita?
É que nós - nós todos, crentes ou não crentes de várias confissões - precisamos da Igreja Católica portuguesa, como instituição religiosa, como referência ética, como actor social, como interpelação política. De uma Igreja com identidade própria, mas acordada, aberta e viva."
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