quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

As mibangas e os frutos de um padre da Rua


Um padre que apoiou trabalhadores pobres que construíram barragens em Portugal e Angola, muitos deles contraindo silicose, e acabou como pai adoptivo de centenas de crianças órfãs ou abandonadas que por ele foram acolhidas na Casa do Gaiato de Malange (Angola). E que, pelo meio, por causa da frase “Obrigado, ó tascas, pelo alívio que dais ao Operário!”, viu o seu livro O Lodo e as Estrelas proibido em 1960 pela PIDE, a polícia política do fascismo português.
É essa vida que é contada no documentário “Telmo Ferraz: Mibangas e Frutos”, sobre a vida e a obra do padre Telmo Ferraz, padre da Obra da Rua. O filme é hoje à noite apresentado em estreia na Católica Porto (Auditório Ilídio Pinho, campus Foz, 21h30). Mibangas são os sulcos de terra cavada onde se plantam as sementes. O documentário junta-se assim ao livro Telmo Ferraz: Uma Vida, Tantas Vidas!, acabado de publicar, com uma nota biográfica e depoimentos sobre padre da Rua, bem como às obras que recolhem textos do padre Telmo Ferraz: além do já referido O Lodo e as Estrelas, também Mourela (2011) ConTigo no Planalto, Pelo Caminho das Tipóias e os dois volumes de Mibangas e Frutos (todos estes de 2013).
Esses textos levam Henrique Manuel Pereira a escrever, citando um amigo, num artigo publicado há dias no Público:
 “‘Que lugar o de [padre] Américo e Telmo no quadro da Literatura Portuguesa do século XX? Apologética, como dizem alguns? Ou realismo realista e pragmático?’ A pergunta aí fica. Sim, porque este homem, depois de se irmanar com o ‘bando’ que vivia debaixo de pedras cobertas com sacos vazios de cimento, depois de idêntico trabalho na barragem de Cambambe, de construir e assistir uma aldeia de leprosos, fez-se Padre da Rua. Encontrou em Padre Américo o companheiro que comia do mesmo pão.”

Realizado no âmbito das comemorações dos 50 anos da Obra da Rua em Angola por Henrique Manuel Pereira, professor da Escola das Artes da UCP/Porto, o documentário percorre a vida deste padre invulgar, que apoiou os trabalhadores das barragens do Picote (Trás-os-Montes) e de Cambambe (Angola), antes de se fazer “padre da Rua”.
Nascido em Bruçó (Mogadouro), a 15 de Novembro de 1925, Telmo Ferraz desde cedo se mostrou dotado para várias artes. No seu tempo de seminarista dedicava-se ao teatro. Mas nada teve de encenação a realidade dura que foi encontrar numa das suas primeiras pastorais, depois de ser ordenado padre em Junho de 1951. Foi acompanhar espiritualmente os construtores da barragem do Picote: “Era uma altura em que havia muita necessidade, muita fome. Famílias completamente pobres, pobres, pobres. Sem nada. (...) comecei a dedicar-me um pouquinho a ajudá-los”, recorda ele no documentário. Os trabalhadores tinham de picar a pedra à picareta, acabando muitos deles por contrair silicose ao fim de poucos meses.
Além do apoio que dava a estas pessoas desprezadas, Telmo Ferraz ajudou a que ali se criasse uma comunidade com uma identidade própria, recorda um dos 30 depoimentos recolhidos no filme (e entre os quais se contam os dos bispos de Aveiro, o emérito António Marcelino, que morreu em Outubro, e o actual, António Francisco).
O padre Telmo Ferraz já estava em Cambambe (Angola) quando soube da proibição da PIDE relativa ao seu livro. Ali construiu uma capela de capim para os trabalhadores da barragem e mais uma aldeia para doentes de lepra. Um dia perguntou um dia ao padre Horácio e ao padre Carlos Galamba, da Obra da Rua, que estavam de visita a Angola: “Se eu bater à porta, o que me fazem?” Abriam-lhe a porta. Responderam ambos.
Telmo Ferraz bateu mesmo à porta e ficou. Centenas de miúdos já passara pela Casa do Gaiato, apesar das vicissitudes que esta atravessou: a guerra colonial, os portugueses a fugir de Malange, a guerra civil. Com a independência, a casa foi “nacionalizada” e as crianças entregues a instituições do Estado. O padre Telmo regressou a Portugal para dirigir durante alguns anos o Calvário, casa da Obra da Rua para acolhimento de doentes incuráveis. Voltou, no início da década de 1990, para Malange, para reconstruir a Casa do Gaiato, antes do reacender da guerra civil, em 1992.
No documentário, vários dos entrevistados descrevem-no como”um sábio recolhido na sua humildade”, “um santo escondido, que vive escondido no mundo”, “um homem que existiu e existe como dádiva para os outros”. Ou dizem que ele, quando fala com alguém, está a rezar por quem tem à sua frente, porque é “um homem que medita diante da vida e diante das pessoas”.
O primeiro texto de O Lodo e as Estrelas, intitulado “Tema”, revela a personalidade de alguém comprometido até ao fundo com a vida dos outros que Telmo Ferraz assumiu para si mesmo. Escreve ele:
O Zeca vomitou sangue. Um sangue vivo.
Quase encheu um tacho!
Esse tacho de sangue é o meu exórdio.
Que todos me perdoem.
Riam-se de mim.
Mas, pelo amor de Deus e de nossos pais, peço um olhar de piedade para todos os personagens deste livro.
São personagens reais.

Temos os mesmos nomes e a mesma vida, no nosso pequeno mundo – uma barragem.

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