Um
padre que apoiou trabalhadores pobres que construíram barragens em Portugal e
Angola, muitos deles contraindo silicose, e acabou como pai adoptivo de
centenas de crianças órfãs ou abandonadas que por ele foram acolhidas na Casa
do Gaiato de Malange (Angola). E que, pelo meio, por causa da frase “Obrigado,
ó tascas, pelo alívio que dais ao Operário!”, viu o seu livro O Lodo e as Estrelas proibido em 1960 pela
PIDE, a polícia política do fascismo português.
É essa vida que é contada no documentário “Telmo Ferraz: Mibangas e Frutos”, sobre a
vida e a obra do padre Telmo Ferraz, padre da Obra da Rua. O filme é hoje à noite apresentado em estreia na
Católica Porto (Auditório Ilídio
Pinho, campus Foz, 21h30). Mibangas são os sulcos de terra cavada
onde se plantam as sementes. O documentário junta-se assim ao livro Telmo Ferraz: Uma Vida, Tantas Vidas!,
acabado de publicar, com uma nota biográfica e depoimentos sobre padre da Rua,
bem como às obras que recolhem textos do padre Telmo Ferraz: além do já
referido O Lodo e as Estrelas, também
Mourela (2011) ConTigo no Planalto, Pelo
Caminho das Tipóias e os dois volumes de Mibangas e Frutos (todos estes de 2013).
Esses textos levam Henrique Manuel Pereira a
escrever, citando um amigo, num artigo publicado há dias no Público:
“‘Que lugar o de [padre] Américo
e Telmo no quadro da Literatura Portuguesa do século XX? Apologética, como
dizem alguns? Ou realismo realista e pragmático?’ A pergunta aí fica. Sim,
porque este homem, depois de se irmanar com o ‘bando’ que vivia debaixo de
pedras cobertas com sacos vazios de cimento, depois de idêntico trabalho na
barragem de Cambambe, de construir e assistir uma aldeia de leprosos, fez-se
Padre da Rua. Encontrou em Padre Américo o companheiro que comia do mesmo pão.”
Realizado
no âmbito das comemorações dos 50 anos da Obra da Rua em Angola por Henrique
Manuel Pereira, professor da Escola das Artes da UCP/Porto, o documentário
percorre a vida deste padre invulgar, que apoiou os trabalhadores das barragens
do Picote (Trás-os-Montes) e de Cambambe (Angola), antes de se fazer “padre da
Rua”.
Nascido em Bruçó (Mogadouro),
a 15 de Novembro de 1925, Telmo Ferraz desde cedo se mostrou dotado para várias
artes. No seu tempo de seminarista dedicava-se ao teatro. Mas nada teve de
encenação a realidade dura que foi encontrar numa das suas primeiras pastorais,
depois de ser ordenado padre em Junho de 1951. Foi acompanhar espiritualmente
os construtores da barragem do Picote: “Era
uma altura em que havia muita necessidade, muita fome. Famílias completamente pobres,
pobres, pobres. Sem nada. (...) comecei a dedicar-me um pouquinho a ajudá-los”,
recorda ele no documentário. Os trabalhadores tinham de picar a pedra à
picareta, acabando muitos deles por contrair silicose ao fim de poucos meses.
Além
do apoio que dava a estas pessoas desprezadas, Telmo Ferraz ajudou a que ali se
criasse uma comunidade com uma identidade própria, recorda um dos 30
depoimentos recolhidos no filme (e entre os quais se contam os dos bispos de
Aveiro, o emérito António Marcelino, que morreu em Outubro, e o actual, António
Francisco).
O padre
Telmo Ferraz já estava em Cambambe (Angola) quando soube da proibição da PIDE
relativa ao seu livro. Ali construiu uma capela de capim para os trabalhadores
da barragem e mais uma aldeia para doentes de lepra. Um dia perguntou um dia ao
padre Horácio e ao padre Carlos Galamba, da Obra da Rua, que estavam de visita
a Angola: “Se eu bater à porta, o que me
fazem?” Abriam-lhe a porta. Responderam ambos.
Telmo
Ferraz bateu mesmo à porta e ficou. Centenas de miúdos já passara pela Casa do
Gaiato, apesar das vicissitudes que esta atravessou: a guerra colonial, os
portugueses a fugir de Malange, a guerra civil. Com a independência, a casa foi
“nacionalizada” e as crianças entregues a instituições do Estado. O padre Telmo
regressou a Portugal para dirigir durante alguns anos o Calvário, casa da Obra
da Rua para acolhimento de doentes incuráveis. Voltou, no início da década de
1990, para Malange, para reconstruir a Casa do Gaiato, antes do reacender da
guerra civil, em 1992.
No
documentário, vários dos entrevistados descrevem-no como”um sábio recolhido na sua humildade”, “um santo escondido, que vive escondido no mundo”, “um homem que existiu e
existe como dádiva para os outros”. Ou dizem que ele, quando fala com alguém,
está a rezar por quem tem à sua frente,
porque é “um homem que medita diante da vida e diante das pessoas”.
O
primeiro texto de O Lodo e as Estrelas,
intitulado “Tema”, revela a personalidade de alguém comprometido até ao fundo
com a vida dos outros que Telmo Ferraz assumiu para si mesmo. Escreve ele:
O
Zeca vomitou sangue. Um sangue vivo.
Quase
encheu um tacho!
Esse
tacho de sangue é o meu exórdio.
Que
todos me perdoem.
Riam-se
de mim.
Mas,
pelo amor de Deus e de nossos pais, peço um olhar de piedade para todos os
personagens deste livro.
São
personagens reais.
Temos
os mesmos nomes e a mesma vida, no nosso pequeno mundo – uma barragem.
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