Mais do que comentar a «A Alegria do Evangelho», apetece apenas reter no ouvido algumas das suas passagens, e repeti-las lentamente enquanto se espera na paragem do autocarro. Da minha curta experiência de vida, isto só me aconteceu (com documentos do Ministério Católico) com passagens da Gaudium et Spes e da Dignitatis Humanae.
Por exemplo: 2. «Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes.»
Ou então: 3. Volta uma vez e outra vez a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria.»
24. «A Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que ‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo – tomam a iniciativa!»
54. «A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.»
102. «A tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do Batismo e da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte; em alguns casos, porque não se formaram para assumir responsabilidades importantes, em outros por não encontrarem espaço nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa de um excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões.»
A tendência dos documentos ministeriais é lançar o Evangelho numa letargia, multiplicando os textos, os debates e as discussões – os ‘entes’, na imagem de Tomás de Aquino. Pelo contrário, a Evangelii Gaudium ajuda-nos a acordar desta letargia e re-encontrar a Alegria do Evangelho. Nota-se que é escrito por um Bispo de origem latino-americana: onde não se espera pelo Estado para abrir um furo de água comunitário, onde não se espera pelo pároco para iniciar reuniões eclesiais de base, onde não se espera pela apple para nos trazer o último tablet.
Ao nível hierárquico, é de esperar algumas mudanças nas relações entre a cúria romana e as conferências episcopais. Ao nível de imagem, já se está a ganhar, com uma nova linguagem positiva da Igreja para com a sociedade. Mais do que isto, parece-me, Francisco não poderá fazer: só poderá, no bom espírito latino-americano, dar o pontapé, para que os adormecidos e instalados cristãos europeus – penso na Igreja que está em Portugal – se voltem a re-unir, a re-descobrir o prazer de ler o Evangelho, a questionar os seus critérios e hábitos de relações, consumo e pensamento, e a procurar novos caminhos – sempre pequenos – de mudança da sociedade e da Igreja.
(Foto: o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, no metropolitano da capital argentina, 2009; foto reproduzida daqui)
(RELIGIONLINE está a publicar comentários sobre a Evangelli Gaudium, a partir do desafio lançado por Jorge Wemans)
Sem comentários:
Enviar um comentário