Comentário de José Mattoso à exortação Evangelli Gaudium
Nunca tinha reparado que os Salmos identificam
Religião com Alegria. Foi preciso a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium para o descobrir. A imagem que o diz mais clara e
simplesmente é a do cortejo dos Israelitas que se dirige ao Templo acabado de
construir, para nele depositar a Arca da Aliança: “David e toda a casa de
Israel dançavam com todas as suas energias, cantando ao som das cítaras, das
harpas, dos tamborins, dos pandeiros e címbalos… Aconteceu que, entrando a
Arca de Iahweh na Cidade de David, a
filha de Saul, Micol, olhava pela janela e viu o rei David saltando e dançando
diante de Iahweh, e no seu íntimo ela o desprezou.” Quando David voltou a casa
mostrou o seu desprezo ao rei, mas ele respondeu: “É diante de Iahweh que eu
danço… Eu dançarei diante de Iahweh, que me preferiu a teu pai [Saul] e a toda
a sua casa para me instituir chefe de Israel” (2 Samuel, 6. 5, 16, 21).
Os salmos, que são o texto por excelência do
culto cristão, falam constantemente da alegria como expressão e como forma de
culto (Sl 19, 20, 32, 46, 62, 117, 149, etc). A alegria aparece, assim, como
sinal de eternidade. O povo de Deus rompe em júbilo festivo quando reconhece em
si próprio a presença de Iahweh; grita de alegria quando, juntamente com todos
os seus irmãos, se sente envolvido pela harmonia cósmica que vem desde a
criação do mundo; canta e dança ao experimentar a infinita criatividade trazida
pela Vida; rompe em aclamações para exaltar o triunfo da justiça, ameaçada pelo
poder dos orgulhosos.
Esta alegria, porém, é uma antecipação; só será
completa quando se tornar evidente a vitória definitiva da justiça sobre a
mentira; da pobreza sobre os abusos do poder; da mansidão sobre a violência; da
solidariedade sobre a exclusão dos pobres. Mas nada se pode comparar com a
alegria própria daquilo que nos identifica como cristãos: a participação
(passagem, Páscoa, Paixão, Passio) no sofrimento e morte de Jesus Cristo
que nos precede no caminho da Vida, fecunda os nossos sofrimentos e perdoa os
nossos pecados.
O que o Papa Francisco propõe é vivermos essa alegria, fazê-la nascer
ou renascer nos nossos corações, torná-la autêntica, invasora, comunicativa,
irresistível, radical, estrutural, luminosa, perspicaz, pacífica, fecunda. E
também identitária: “Eu vos digo isto para que a minha alegria esteja em vós e
a vossa alegria seja plena” (Jo., 15. 11). É, ou devia ser, aquilo que
distingue os cristãos dos outros homens. Se a Igreja e as religiões estão em
crise não é só por o capitalismo transformar os homens e mulheres em robots,
fazer da informação meio de terror, esgotar os recursos essenciais por meio do
consumo irresponsável e alienante – é sobretudo por ter contaminado e profanado
as fontes da alegria por meio do medo. O medo que faz da segurança obsessão.
Queremos um futuro com todas as garantias de
que não nos faltará nada. Se assim é, o Evangelho (anúncio) da alegria que o
Papa Francisco faz na Exortação é, afinal, o convite a não ter medo. Perder o
medo de imitar a Jesus Cristo, de aparecer como cristão aos olhos do mundo, de
proclamar os direitos dos pobres e oprimidos, de saltar fora do mercado. O
convite a perder o medo do risco, a perder o medo da Paixão. A relação com Deus
fonte de alegria também deve tirar-nos o medo de dialogar com os não-crentes e
os não-cristãos, de celebrar com os pecadores, de desafiar a racionalidade
pseudo-científica por meio da poesia e do afecto, de proclamar a fé no
invisível.
Assim, a alegria torna-se ousadia. É o verdadeiro
“empreendedorismo”.
Não sabemos como é que ela vai vencer a tirania
do mercado, como resolverá a crise financeira, como convencerá os capitalistas
a gastar mais no aumento da energia renovável do que no excesso de consumo,
como persuadirá os que já não acreditam em nada a enfrentar o desconhecido. É
um mistério que tem de ser deixado aos processos da renovação da fé. É o lado
mais misterioso da actuação daquilo que se chama a Providência divina. Não é
possível descobrir por que caminhos se pode vencer o Mal. Mas podemos desde já
identificar alguns pontos em que o horizonte de trevas que nos oprime parece
deixar passar alguma luz: 1) O interesse do clero e dos cristãos pela cultura,
sobretudo, parece, a cultura artística, e, nesta, a criação musical e as artes
audio-visuais. 2) A aceitação do diálogo e da participação de não-cristãos em
iniciativas públicas cristãs. 3) A condenação do capitalismo que marginaliza os
mais fracos. 4) A condenação do comércio de armas e dos conflitos
internacionais. 5) A defesa dos Direitos Humanos. 6) O diálogo das religiões.
7) Uma cada vez maior descoberta da importância da Antropologia como disciplina
necessária à valorização das tradições, das crenças, do pensamento mítico (no
sentido que Lluís Duch lhe dá), dos rituais comunitários, sem deixar de exigir
o rigor e a necessidade do progresso científico para compreender o mundo
físico, a biologia e a psicologia. 7) O apoio à busca de fontes renováveis de
energia e o combate contra a poluição. 8) A denúncia da economia capitalista
como responsável pelo esgotamento das fontes de energia renovável.
A Exortação Apostólica mantém as posições
dogmáticas tradicionais: sacerdócio masculino, territorialidade paroquial,
celibato, censura do aborto, prática sacramental, centralização pontifícia.
Talvez seja a condição necessária para evitar cismas e polémicas fracturantes,
agrupamentos de conservadores contra agrupamentos progressistas. Mas aqueles
que sentem a Exortação como um verdadeiro convite à alegria solidária, não
podem deixar de exigir de todas as instâncias da hierarquia a renúncia às
práticas canónicas de exclusão sacramental, a adopção sincera e coerente de uma
pastoral baseada na misericórdia e na reparação e não na opressão da
consciência nem nas ameaças do castigo. Aqueles que esperam e desejam uma
verdadeira renovação eclesial não podem deixar de exigir a efectiva
participação dos bispos em reuniões sinodais nacionais ou continentais e
respeitar as suas decisões, sem temer controlos abusivos das congregações
pontifícias.
Quer isto dizer que é preciso articular entre
si as acções necessárias para tornar realidade as mudanças que os sinais
enumerados mais acima prometem, e assim se tornarem verdadeiramente
renovadores. Temos também de nos preparar para tomar a sério as bem-aventuranças
(a pobreza, a perseguição, a luta pela justiça e pela paz), para não pactuar
com o poder económico nem com o poder político. Este é, talvez o maior desafio.
Saber denunciar a exploração dos pobres sem pactuar com os donos do mundo,
recusar as migalhas de poder e de segurança que os monopólios financeiros e
económicos não deixarão de nos oferecer para nos usar como seus aliados.
Logo a seguir vem o difícil trabalho de manter
o essencial das tradições e excluir o que elas têm ou possam ter de idolatria,
magia (rituais infalíveis), comodismo, beatério devoto, automatismo,
ignorância. Para isso é indispensável estudar a Antropologia como forma de
conhecimento do fenómeno religioso e dos seus aspectos sociais. Para isso,
finalmente, é preciso renovar constantemente a fé. Não achar que isso é com os
padres… Na verdade, não temos nada que ensinar a ninguém, porque está tudo dito
na Exortação Apostólica e, muito antes disso, no Evangelho. O que aqui fica
dito é apenas a verbalização da maneira como entendemos a Exortação e uma forma
de celebrarmos a alegria de sermos chamados a dar testemunho da nossa fé.
Estoril, 04 de Dezembro de 2013
(ilustração: Marko Rupnik, Jesus e os Apóstolos, mosaico reproduzido na capa da edição portuguesa da Exortação Evangelii Gaudium,ed. Paulinas)
(RELIGIONLINE está a publicar comentários sobre a Evangelli Gaudium, a partir do desafio lançado por Jorge Wemans)
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