Comentário de Joaquim Franco à exortação Evangelii Gaudium
Ao longo de oito meses de pontificado, em intervenções mais ou menos
avulsas, textos e improvisos desconcertantes, homilias improváveis ou
entrevistas surpreendentes, o papa Bergoglio manteve e reforçou as pistas,
organizando-as agora na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.
Nos últimos dias veio à memória a missa de inauguração do pontificado de
Francisco. Naquela manhã de 19 de março, o mundo mediático esperava as linhas
programáticas do novo Papa. O novo Papa, ladeado pelos chefes de estado e de
governo que se deslocaram a Roma para a cerimónia de praxe, pediu justiça e
cuidado com a “Criação inteira”, falando várias vezes de ternura e bondade.
Quem esperava mais, teve de se sentar. Mas as pistas estavam à vista de todos.
O texto é provocador para uma Igreja que carece de reformas profundas na
atitude e na estrutura, e para um mundo político que carece de libertação,
sobretudo em relação ao poder financeiro.
A novidade de Francisco está também na frescura assertiva com que vai ao
“osso”, e que, desta vez, não serve apenas para legitimar os assuntos
obsessivos e fraturantes da Igreja católica. A fratura maior dá-se a partir de
uma crise antropológica, de “negação da primazia do ser” (Evangelii Gaudium,
55), para se transformar na “grave carência de uma orientação antropológica que
reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo”.
O Papa lamenta as “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira” (EG, 56), que negam “o direito”
aos Estados de “velar pela tutela do bem comum”.
De facto, “criou-se um paradigma de vivência e convivência alicerçado na
dimensão do consumo, que cedeu à tentação do supérfluo. Como temos refletido, o
gozo pontual e vicioso de «ter» sobre o princípio do «ser». Um estilo de vida
mais materialista – que, como se vê, entrou em fase de esgotamento” –, agravado
por “uma elite do pensamento económico, neoliberal, que elevou o mercado à categoria
de um «deus» intocável” (Somos Pobres mas Somos Muitos, Verso de Kapa,
p.96).
Foi isso que se ensinou durante várias gerações académicas, que
cresceram também em ambiente cristão católico, dissimuladas entre reflexões
sobre a Doutrina Social da Igreja. “O dinheiro deve servir, e não governar!” (EG,
58), diz o papa Bergoglio, que sente a necessidade, no atual contexto da
história, de exortar a uma “solidariedade desinteressada e a um regresso da
economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano”. Como dissera no
Rio de Janeiro, em Julho, é um “sistema social injusto na sua raiz” (EG,
59). Não é possível impedir a violência “enquanto não se eliminar a exclusão e
a desigualdade”. Numa “sociedade que abandona na periferia uma parte de si
mesma, não há programas políticos, forças da ordem ou serviços secretos que
possam garantir a tranquilidade”.
Sejamos claros, um rendimento mínimo é sempre injusto para quem o
recebe. Quanto mais não seja porque é mínimo. Mas há uns mínimos mais mínimos
que outros. E não há democracia que sobreviva se a economia não tiver como
prioridade o combate à exclusão e às desigualdades. “Esta economia mata” (EG,
53).
Alegar que um rendimento é mais seguro quanto mais mínimo for, é
inverter o princípio da razoabilidade no combate às desigualdades e, em última
instância, incentivar a selvajaria. Rendimentos que não garantam um mínimo de
dignidade, que não correspondam à adequada retribuição pelo trabalho ou sejam
residuais na disparidade, sustentam uma injustiça concreta. “Enquanto os lucros
de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe
do bem-estar daquela minoria feliz” (EG, 56). É aqui que as opções
políticas, com a máxima da ética e sem amarras, podem fazer a máxima diferença.
(crónica publicada aqui; imagem reproduzida daqui)
(RELIGIONLINE está a publicar comentários sobre a Evangelli Gaudium, a partir do desafio lançado por Jorge Wemans)
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