João Maria van den Hurk, ss.cc.
Manuel Pinto
A campaínha tocou eram sete da manhã de um domingo cinzento. Dois agentes da PIDE-DGS apresentaram-se com ordens para levar o João Maria. Coisa breve, diziam. Mas lá iam sugerindo que talvez não fosse má ideia meter o pijama e uma escova de dentes num saco. Desculpando-se por serem simples agentes a cumprir ordens superiores, conduziram o padre num automóvel, para a sede da Rua do Heroísmo. As portas fecharam-se, de seguida, e o silêncio instalou-se.
Umas horas depois, telefonava o próprio da Holanda, onde acabara de chegar num voo da TAP. Num dos dias anteriores, a polícia política havia reservado uma viagem sem regresso deste cidadão holandês.
O motivo: na homilia do Dia Mundial da Paz, acabado de celebrar, atrevera-se a exprimir o sonho de que também nas ex-colónias fosse possível a paz. Não certamente a paz dos cemitérios, a paz do esmagamento dos direitos humanos, mas a paz que é fruto da justiça e que assenta no reconhecimento da dignidade de todos.
Neste caso, nem sequer se pode dizer que o João Maria fosse um revolucionário. Era, de facto, a pessoa mais pacífica deste mundo: um calmeirão bem disposto, com um coração acolhedor e solidário. Para ele, falar da paz num dia como aquele, sem referir a guerra sangrenta que se travava há uma década na Guiné, em Angola e em Moçambique era como estar perante uma paisagem bonita e fechar os olhos.
Os ouvidos do poder de então encostavam-se atrás das colunas das igrejas, para se assegurarem de que a Palavra de Deus se mantinha lá nas alturas, insípida, inofensiva e indolor e, se possível, com efeitos anestésicos.
A encíclica Pacem in Terris tinha, então, dez anos. O concílio Vaticano II lançara um sopro de vida na Igreja Católica. Começava a tornar-se evidente que o edifício do regime não aguentaria muito mais.
Nesse início de 1973, tinha acabado de acontecer o caso da Capela do Rato que ofuscou, naturalmente, uma multiplicidade de outros casos que se inscreviam numa consciência comum e numa vaga de fundo que começava a ganhar forma. Como este caso do João Maria, membro da Congregação dos Sagrados Corações, que agia não por estratégia política, mas por um indeclinável dever ético e por um imperativo evangélico.
Quando começa a ser de novo problemático defender a causa da paz – com as implicações éticas e políticas que essa causa reveste hoje e aqui - torna-se salutar recordar gestos simples e determinados como o do padre João Maria van den Hurk, ss.cc.
(Crónica para a RUM e para o DM de 6.1.2003)
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