Deus é músico e dançarino
Imagina você, leitor, um grupo de Zés P´reiras, com seus bombos, caixas e gaita de foles, a entrar por uma igreja minhota dentro e a conferir solenidade, com seus sons e os seus ritmos, a uma celebração da eucaristia? E um rancho folclórico a entrar com seus trajes na mesma celebração e, disposto na capela-mor, começar a dançar em louvor de Cristo ou da Virgem?
E porque não? - perguntar-se-á. Se houver dignidade e valia nesse tipo de manifestações e se elas fazem parte das tradições populares que sobrevivem e animam as gentes, porque não há-de a Igreja acolhê-las nos seus actos litúrgicos, em funções e lugares que não sejam apenas decorativos?
Ocorreu-me esta possibilidade quando há dias pude assistir a um momento de rara beleza, no encerramento do Festival Intercéltico, celebrado desde há alguns anos, na vila de Sendim, em terras de Miranda. A culminar três dias de festival, e ainda nele integrado, realizou-se uma celebração festiva da missa, presidida pelo pároco, que incluiu um rufar verdadeiramente impressionante de um agrupamento de caixas de percussão e, noutros momentos da celebração, “laços” dançados pelo grupo de pauliteiros local, em plena capela-mor. Não faltou uma homilia brilhante, em que o pároco, tomando a linguagem musical do festival por motivo, comparou Deus a um músico – mais do que isso, a um maestro, que também executa a sua música e que sabe e quer escutar a música de todos nós, mesmo a daqueles que não afinam pelo seu diapasão.
Nada disto tirou dignidade à missa. Eu creio mesmo que – descontado o facto de ser forasteiro e de gostar há muito de apreciar estas tradições – o que se passou em Sendim elevou manifestamente a qualidade e a grandeza dos mistérios que ali se celebravam.
A Igreja precisa, como de pão para a boca, de se abrir a novas formas de expressão. A dança, que já fez parte integrante de algumas celebrações litúrgicas, está hoje autenticamente banida dos espaços sagrados. O corpo, que é uma mediação decisiva da humanidade de cada pessoa, é reduzido a pouco mais do que uma múmia nos actos da liturgia. Estas novas linguagens, quer recorram a coreografias e movimentos tradicionais ou modernos, podem constituir, quando devidamente cuidados e cultivados, mediações importantes para dizer a fé e a vida. Deixados à porta das igrejas, significam uma amputação da riqueza da expressão humana. Ora, quando amputamos a vida, amputamos também a fé. Ou pelo menos, corremos esse risco.
Crónica no «Diário do Minho, 11.8.2003
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