Breve conversa
entre Laura Ferreira dos Santos e Osvaldo Manuel Silvestre
(a propósito do livro de Laura Ferreira dos Santos
"Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença - I"
(Angelus Novus Editora, 2003)
Osvaldo Manuel Silvestre (OMS) - O teu livro, desde o título - Diário de uma
mulher católica a caminho da descrença - parece sugerir que o caminho da
descrença é tão duro e tortuoso como o da fé. Será? E se é, a que se
deve isso? A tudo o que se deixa para trás? Ou antes ao facto de nunca
se deixar tudo para trás?
Laura Ferreira dos Santos (LFS) - Só posso dizer que, no meu caso, esse caminho
para a descrença foi de facto tão duro e tortuoso como o da fé. Depois
de aderir mais convictamente ao cristianismo, há uns vinte anos atrás,
uma missa era para mim um grande motivo de alegria, um espaço físico e
espiritual em que tudo parecia bater certo, lugar de um grande
apaziguamento e harmonia interiores. Tinha os meus problemas com o que a
igreja hierárquica ia dizendo e escrevendo, mas tentava relativizá-los
em função do que me parecia muito mais importante do que os seus
desacertos "ideológicos". No fundo, talvez a minha maior dificuldade no
caminho da descrença seja o facto de continuar a aceitar a maior parte
ou a totalidade dos ensinamentos evangélicos, mas sem conseguir aderir
ao Deus para que se julga remeterem, aparecendo-me a Igreja católica
sobretudo como um clube para homens, legitimando de diversos modos o
papel inferior da mulher na sociedade.
O. M. S. Inspiraste-te nalgum modelo de diarística para o teu livro?
Sentes-te mais próxima, quanto a isso, de Santo Agostinho ou de Virgina
Woolf (ou de Santa Teresa)?
L. F. S. Como muitas e muitos de nós, li os textos referidos, assim como
outros do género. Até que ponto me influenciaram, é algo que não consigo
avaliar bem. Se Agostinho e Teresa de Ávila me estão até certo ponto
próximos pela temática religiosa, dir-se-ia que a certeza das suas
convicções religiosas me afasta deles, sentindo-me mais identificada com
alguns dos tormentos de fé expostos por João da Cruz ou Teresa de
Lisieux, não a Teresa edulcorada pelas suas irmãs carmelitas, mas a
Teresa para quem o "pensamento do céu" já não é um tema pacífico, mas um
tema de combate e de tormento, temendo que depois da morte já só haja
uma "noite do nada", ou escrevendo que quando canta a alegria de estar
em Deus canta apenas aquilo em que ela quer crer, não aquilo em que crê
na verdade. Diários ou não, sinto-me portanto mais próxima dos escritos
em que se capta à saciedade uma luta de corpo a corpo com a crença ou
com esse ser que tem vindo a ser designado androcentricamente por Deus.
Por outras palavras, textos cujas autoras ou cujos autores têm descrito
a vivência da crença como se o fizessem num processo que deixa sangue
entre os dedos, textos aliás escritos do único modo que Nietzsche
respeitava. Algo assim como o Diário íntimo de Unamuno, texto que
"saltou" das minhas memórias antigas (li-o quando tinha 19 anos) quando
me deparei com esta pergunta.
O. M. S. Como explicas a raridade lusa de obras que, como a tua, façam
da fé uma questão tão agónica quanto polémica? Ou seja, como explicas
que a um país de inquestionada tradição católica corresponda uma tão
débil produção teológica?
L. F. S. De imediato, o que me apetece dizer é que em Portugal é tudo
tão pequenino quanto os sinais de trânsito ou as placas que indicam os
nomes das diversas localidades, que, numa viagem de automóvel, só
conseguimos decifrar quando acabámos de passar por elas. Basta comparar
os sinais de limite de velocidade que encontramos nas auto-estradas
portuguesas e nas espanholas. Bom, a questão é obviamente complexa,
aproveitando desde já para esclarecer que o meu Diário não se enquadra
na dita "produção teológica", pelo menos no sentido habitual do termo.
No entanto, é verdade que, no nosso país, essa produção é de facto
débil. Aliás, penso que, em Portugal, uma investigação aprofundada, pelo
menos no campo das letras, que é o âmbito que conheço melhor, poucos
incentivos recebe. Veja-se, por ex., o que se passa na maior parte (ou
totalidade) dos centros de investigação universitários, em que é
sobretudo o número de artigos publicados a ser contabilizado, não se
atendendo à sua qualidade. Nesta óptica, cinquenta filmes feitos pelo
mesmo realizador num único ano seriam muito mais subsidiados que A vida
é bela, talvez o único filme que Roberto Begnini realizou no mesmo
espaço de tempo. Por outro lado, só os trabalhos em equipa parecem ser
subsidiados. Se Nietzsche, nos tempos actuais, se propusesse fazer um
trabalho de índole semelhante ao que realizou, nunca obteria um centavo.
Mas se se associasse a Peter Gast, à irmã, a Paul Rée, a Wagner, etc,
poderia eventualmente receber uns cobres. Mas, nesse caso, alguém o
leria hoje? Claro que não estou contra o trabalho em equipa,
imprescindível em certas áreas. Fazer dele um dogma é que me parece um
fundamentalismo.
Neste Diário, a temática religiosa, entendida num sentido muito amplo,
aparece perspectivada tendo em conta a situação da mulher e o modo como
o "religioso" intervém nela. Perante a raridade para que a pergunta
aponta, talvez se deva colocar a hipótese de que, em Portugal, a maior
parte das pessoas que poderia produzir textos deste género tenha
rapidamente deixado de acreditar em Deus, acrescentando-se, por outro
lado, a questão óbvia de que o nosso país se encontra longe de temáticas
ditas "feministas", nem sequer utilizando uma linguagem inclusiva, que
trate, sem discriminação, homens e mulheres. Por aqui, só há "homens" e
"filhos", pois já se sabe há muito que todas as mulheres são homens e
todas as filhas são filhos. A meu ver, só o cruzamento das duas
temáticas por uma pessoa que as levasse muito a sério poderia dar um
texto como o meu. E, pelos vistos, por uma razão ou outra, não deve
haver em Portugal muita gente nessas circunstâncias. Daí a minha própria
dificuldade em conseguir encontrar um padre com quem possa dialogar
sobre estes assuntos, pois oiço frequentemente dizerem-me que nunca se
tinham confrontado com as minhas questões, alguns assumindo honestamente
que talvez por serem homens...
O. M. S. Como vês a intransigência da igreja de Roma no que toca ao
ordenamento de mulheres como sacerdotes? A verificar-se uma alteração do
estado de coisas com um novo Papa, pensas que isso se deverá a boas
razões (teológicas) ou à falta de vocações masculinas?
L. F. S. Perante as vistas curtas que a Igreja católica manifesta em
tantas áreas, apetece brincar e dizer: se essa ordenação for devida à
falta de vocações masculinas, as boas razões teológicas serão com
certeza encontradas.
Durante milhares de anos, um acto particularmente importante nas
religiões como o sacrifício cruento foi interdito às mulheres. Segundo
uma teoria, para que os homens, sem o privilégio de dar à luz, pudessem
dispor de um outro privilégio que aplacasse a sua inveja da maternidade:
o privilégio do sacrifício cruento, vertendo o sangue de uma vítima para
que uma certa forma de "vida" pudesse surgir. Por esta ou por outras
razões, o facto é que as grandes religiões monoteístas (judaísmo,
cristianismo e islamismo), nas suas versões mais "oficiais", foram
declarando o papel subordinado da mulher, pois, como diz Paulo, "a
cabeça da mulher é o homem". E, se pudesse, creio que a Igreja Católica
reescreveria o discurso das Bem-aventuranças, pondo de um lado as
adequadas aos homens, e do outro as adequadas às mulheres. Penso que
Cristo foi um grande defensor das mulheres, mas a sua (?) Igreja não
conseguiu manter-se ao mesmo nível. Pela voz da Igreja católica e de
outras religiões continua a manifestar-se um antigo horror à mulher que,
se por um lado pode quase configurar uma espécie de crime contra a
humanidade, por outro é uma posição merecedora de estudo aprofundado,
pois esclarece-nos muito sobre as questões de género, ajudando-nos a
perceber por que é que os homens actuam em sociedade como se
pertencessem a uma espécie de "raça" superior.
O. M. S. O teu livro aparece com a indicação de que se trata do volume
I. Significa isso que pensas publicar mais volumes? Com que
regularidade? Se entretanto o caminho te conduzir de facto à descrença,
admites a possibilidade de uma alteração de título?
L. F. S. De facto, não tencionava "descontinuar" este Diário. Aliás, no
meu computador, lá vai crescendo, ao sabor dos tempos. Agora a respeito
da regularidade de publicação, não posso prevê-la neste momento, tanto
mais quanto não sei se os problemas de saúde de que padeço irão diminuir
ou aumentar a sua escrita. Um outro volume para daqui a um ano?...
Quanto à eventualidade de ser conduzida "de facto" à descrença, eis aí
um problema que começa logo pela definição de crença e descrença, cujo
conteúdo irei tentando delimitar ao longo do "caminho". Um determinado
tipo de descrença não elimina radicalmente a possibilidade da crença.
Falta saber em quê. Seja como for, para já, não entrevejo uma mudança de
título, como se aí estivesse um ponto de partida (ou de chegada)
demasiado marcante para ser deitado fora antes de ser devidamente
explorado. E vontade para efectuar essa exploração é algo que não me falta.
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