(Crónica do P. Vítor Gonçalves, de comentário aos textos da liturgia católica)
“Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito.”
(Evangelho de S. João 3, 16 - Domingo da Santíssima Trindade)
Tenho um amigo que gosta de entrar nas igrejas para ver. Sim, simplesmente para ver, e não para rezar pois diz que não sabe bem o que é isso, e Deus “ainda nunca me falou para que tivesse de lhe dizer alguma coisa”. Conversamos com gosto e ele lá vai continuando a ver, e, creio, também a ouvir. Gosto especialmente do seu olhar límpido que põe a nu o ritualismo vazio e a ausência de autenticidade dos gestos, dos que acreditamos. Fica particularmente irritado com a sujidade das igrejas e a profusão de flores de plástico a proliferar nos altares como “campas de um cemitério”. Diz-me: “O hábito é uma coisa terrível. Os gestos automáticos quando se faz o sinal da cruz, o ajoelhar rápido como se fosse uma finta a Deus, as respostas decoradas como a tabuada, o ar mortiço e em jeito de funeral de muitas missas fazem-me tristeza. Claro que nem tudo é assim. Mas com que Deus se vão encontrar?”
Começamos as nossas orações com o gesto da cruz. Da cabeça ao peito, de um ombro ao outro. Afirmamos o mistério de Deus, um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É com beleza e verdade que o fazemos? Como se disséssemos a senha para entrar num bailado em que o Pai nos dá a vida para amarmos, o amor mais forte que a morte; e o Filho nos marca com a beleza da sua imagem e pela Palavra feita carne para sermos sua luz no mundo; e o Espírito Santo agita as cordas da nossa harpa interior para sermos música, um cântico de verdadeiro amor? Um gesto simples e tão essencial, se deixamos Deus tirar-nos do egoísmo e do comodismo, e nos ensina a viver de braços abertos. À maneira de Jesus. Fazê-lo é entrar no movimento de Deus, sempre a querer encontrar-se connosco, sempre a lançar-nos ao encontro dos outros. Com a doçura e a suavidade de quem ensina o rodopio do seu amor, sem pisar os pés, sorrindo apenas de um tropeço ou uma queda. Porque o nosso Deus é “um Deus que dança”, título do último livro do P. José Tolentino Mendonça!
Com que Deus nos vamos encontrar?” Resiste em mim a pergunta do meu amigo. E temo a rotina de ser “tu cá, tu lá” com as coisas e os espaços sagrados, onde se contagia o perigo de ser funcionário. Se nos deixamos encontrar por Deus esse encontro transforma-nos. Deixamos os sapatos de chumbo da vida centrada em nós e aceitamos o convite para o bailado. Não precisamos do resplendor de Moisés ao descer o monte nem das vestes brancas de Jesus na transfiguração. Porque serão os outros a notar. Como os bons perfumes que sentimos quando nos aproximamos de alguém perfumado. E até o meu amigo que anda pelas igrejas a ver. Tenho esperança que um dia destes ele descubra como Deus o vê com todo o amor. E aceite entrar na dança. Dá-nos, Senhor, a alegria de darmos contigo passos de verdadeira beleza!
(Ilustração: Pablo Picasso, A Dança da Juventude, 1966)
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