Por
Eduardo Lourenço
É uma constatação que na nossa época, depois de tantos séculos de vida, vivida globalmente sob o signo da certeza ou das certezas, a partir de uma certeza que as englobava todas e lhes dava sentido, deparámos com algo a que nós abreviadamente ou não abreviadamente chamámos modernidade. Entrámos num período em que muitos pensadores, no interior mesmo dessa esfera que tinha sido a esfera da certeza por excelência, se puseram a discutir a natureza de verdades, sobretudo da verdade que engloba essas verdades. Abriu-se assim a porta a uma época de crise. Agora fala-se muito em crise como se acabássemos de descobrir uma novidade, quando afinal toda a modernidade é já uma época de crise e da crise como uma evidência primeira. Registe-se em todo o caso a obsessão primeira e a prática primeira daqueles que por diversos motivos se desinscrevem em relação a esses discursos que eram discursos de evidência, não só de evidência na ordem racional mas também na ordem existencial, que condicionavam tudo o que nós chamamos as atitudes em todas as ordens, desde a ordem ética à ordem cultural, num sentido geral, e mesmo à ordem social. Todos tinham alguma relação com essa época que nós podemos chamar uma época de organicidade. E de repente, particularmente no Ocidente, dá-se uma viragem. Esta crise poderá também ter existido noutras culturas que conhecemos menos bem, pelo menos eu; é possível que no interior dessas culturas tenha havido movimentos de contestação, de discussão interna. Mas eu creio que não há nenhuma História que nós conhecemos até hoje em que isso se tenha dado com tal profundidade como naquela que nós chamamos a história do Ocidente, em todo este conjunto de verdades, de referências, de valores durante tanto tempo associados ao que designamos de civilização europeia. Não só na sua fase fundadora, aquela que releva do pensamento grego, depois na sua retradução em termos ligeiramente diferentes (até mais diferentes do que as pessoas imaginam) no que nós chamamos a versão romana desses mesmos valores, que condicionam sobretudo a visão e o destino político do que nós chamamos Europa, mas também na sua fase de confrontação com o cristianismo.
E preciso ver que provavelmente a maior de todas as crises não será esta a que nós chamamos a crise da modernidade. Nós, que, entre outras, temos a herança da cultura romana, podemos imaginar a rutura no seio do Império Romano provocada pelo abalo da chegada do que chamamos o cristianismo. O advento do cristianismo foi também um momento de crise, uma crise na perspetiva do futuro. Quer dizer, o cristianismo vai triunfar historicamente, vai impor-se como um conjunto de crenças que são vividas como sendo não só como uma verdade, à maneira grega, da ordem do inteligível, uma verdade filosófica, mas como uma novidade absoluta que punha em causa toda a visão grega e vai ser ela própria, quando triunfar na ordem histórica, na sequência da institucionalização do cristianismo com a vitória de Constantino, o código cultural, religioso, dentro do qual a nossa Europa vai a pouco e pouco entrar.
Estes anos de civilização cristã são ao mesmo tempo um diálogo contínuo com o antigo mundo. Podia não ter acontecido isso. Tenho em mente outras grandes afirmações de crenças orgânicas, como seja o caso do Islão. No Islão nós não encontramos (exceto numa certa fase, induzida por aquilo que se passava no Ocidente) essa espécie de um diálogo contínuo de ter de se confrontar com a ideia de uma verdade que não é exatamente aquela que condiciona e que é a visão própria daquilo que nós chamamos a civilização cristã. Diálogo impossível no tempo anterior a Santo Agostinho. Santo Agostinho teve um papel fantástico na cultura do Ocidente porque ele viveu nos dois mundos. Conheceu os dois mundos.
Mas este diálogo não foi fácil. Que a verdade tenha sido definida por alguém em termos de "Eu sou a verdade, o caminho", é algo impossível de conceber na mente de um grego. Nenhum grego podia conceber isto. A verdade é qualquer coisa que diz respeito a uma evidência, ao conhecimento que nós temos dos objetos naturais, a começar naturalmente pelo físico. Quer dizer, em toda a filosofia antiga, aquilo a que os gregos chamam o divino é sempre uma realidade da ordem natural, aquela que obriga os homens a repensar-se diante desse espírito que é fornecido pelo cosmos e pela admiração e espanto que ele causa, donde nasce a filosofia. Penso que isso vai entrar mais tarde dentro da visão cristã. Mas a visão cristã não é dessa ordem, por mais platónica que ela se torne mais tarde. Santo Agostinho não tem essa preocupação. Ressalvando no entanto que em Santo Agostinho temos o diálogo fundamental que vai condicionar todo um pensamento ocidental, que vai tentar reconciliar com o pensamento filosófico essa certeza. Se bem que essa certeza não é uma certeza da ordem do conhecimento propriamente dito mas que é aquilo que mais tarde os grandes pensadores dessa nova visão, já em época de crise, vão apresentar como sendo da ordem do coração, e não da ordem do Cosmos, da Natureza.
Estou aqui, pois, a falar de certezas diferentes: a certeza antiga e a certeza tal como o cristianismo a vai apresentar, que é uma certeza existencial, que vai ser definida na ótica cultural do Ocidente como sendo do domínio da fé. A fé é um conceito paradoxal. Porque a fé é a mais violenta das certezas ou das evidências.
E por outro lado a fé é igualmente a consciência de que não é evidente segundo a ordem da razão, a consciência de que essas coisas em que se crê, em que, mais do que se crê, se investe a totalidade da vida, constituem a substância das coisas esperadas, esperadas segundo aquela esperança, que está inscrita em qualquer palavra das fundamentais ditas por Jesus Cristo. Pode-se falar de outra fé, a fé budista ou outras, mas não podemos misturar todos os conceitos; a fé é um fenómeno que só tem leitura no interior da nossa vivência religiosa. Pode-se falar de fé num sentido lato, mas então a fé passa a ser uma realidade de ordem psicológica que tenha em conta que qualquer manifestação humana se reporta realmente ao futuro em que nós pomos mais esperança ou menos esperança, em que acreditamos que algo se vai realizar... Mas a fé, tanto quanto penso em função da vivência cristã, é qualquer coisa de outra ordem. A fé, penso eu, é uma graça particular. Não há possibilidade de tratar da fé em termos que não sejam aqueles que são definidos pela mesma vivência e afirmação de fé. Dir-me-ão que será a mesma coisa para um muçulmano. Se eu fosse muçulmano provavelmente eu também acreditava, mas tenho a impressão de que o Alcorão me dá uma visão do que é Deus, mas na verdade essa visão de Deus no Alcorão parece-me ser mais próxima de algum modo da ideia de Deus na antiguidade.
O Deus do Alcorão não dialoga com os homens. Não se faz carne. Não incarnou. Está mais próximo de algum modo da ideia que dele faziam os antigos, desde Aristóteles, do que propriamente da experiência que funda a religião cristã. Eu penso que tudo isto se situa, se vive menos na ordem teórica que na ordem prática. Traduz uma certa maneira de um certo comportamento que unifica todos aqueles que têm essa prática. E não precisam de grandes razões de ordem teológica para justificar aquilo que lhes parece uma evidência fundamental. É mais fácil aceitar um Deus criador e senhor do mundo, que tem uma unidade, que é totalmente transcendente, que tem da parte do mundo que criou, particularmente da humanidade, uma relação de obediência, mas que não é um Deus que veicule a ideia de um amor especial em relação àquilo que criou. Parece um pouco como o Deus bíblico que tem uma proteção especial para com um povo em particular. Há uma ideia de etnicidade nesse tipo de religião. Não é o caso do cristianismo que afirma claramente que Deus incarnou. E isto não é crível humanamente falando. Isto é a notícia mais incrível que se pode imaginar. E é em função dela que se pode dizer "creio", "não creio". E crer nisto é qualquer coisa que responde aos anseios mais profundos da humanidade, mas não é suscetível de demonstração, nem sequer de mostração. É uma coisa que se transmite, como um segredo de família, de uma família nova, que aparece na Terra, de uma nova maneira de ser humano, em que os homens estão sob uma proteção especial de um Deus que cuida efetivamente deles, que não é indiferente ao destino da humanidade. De uma humanidade de cujo destino não estamos afastados, sendo de uma certa maneira, responsáveis pelo próprio destino de Deus.
De maneira que a incerteza faz parte integrante do coração da crença que exige por outro lado que nós tenhamos aquilo que nós chamamos Deus como a coisa mais evidente, mais evidente do que qualquer outra verdade humana mas de um outro género; porque se fosse do mesmo tipo das outras verdades, das verdades que nós podemos efetivamente construir ou desejar ou demonstrar, então nós estaríamos noutro tipo de atitude. Numa atitude diferente desta que nos põe a viver diante de uma crença, de uma religião que é fundada fundamentalmente sobre a confiança na palavra de alguém, de uma palavra diferente de todas as palavras. E é essa palavra e o teor dessa palavra que fundou a sua própria realidade, que a construiu.
Eu sei que Jesus dialoga sobre um fundo, não direi de conceitos, mas de evidências que são aquelas que estão realmente na Bíblia, e que de algum modo ele vai revisitar essas mensagens que estão escritas na Bíblia e dar-lhes uma outra tonalidade. São as mesmas e não são as mesmas. Não são as mesmas porque não desenham atrás dela uma voz, que é uma espécie de comando superior, uma voz de poder infinito.
Desenham uma voz contrária e essa me parece ser a novidade do cristianismo, a voz de um Deus que é não poder, que é contrária àquilo que conceptualmente nós imaginamos como seja esse poder, porque nós próprios humanos desejaríamos ter essa varinha de condão, como uma coisa mágica, que nos permitisse dominar o mundo, construir totalmente a nossa vida, etc. E o que há de espantoso em Jesus, tal como leio o Evangelho, é a visão de um Deus indigente, um Deus que não é só pai dos homens, mas que de algum modo precisa dos homens para por esses mesmos homens ser visto verdadeiramente como um Deus e não como uma força que tem o poder, como nós imaginamos, de converter os objetos, que não dá espaço possível para que o homem se viva como liberdade.
E provavelmente o que há de mais extraordinário no cristianismo é essa coincidência de uma ideia do divino como omnipotente, como todo poderoso, como nós dizemos, e o facto de que a «ação», de Deus é uma «ação» de ter concebido o homem livre, totalmente livre. Parece-me que Deus é o espaço de liberdade que os homens são capazes de conceber como sendo o espaço da única liberdade que merece esse nome. E não o contrário. O Deus cristão não é um ser que manda, que instaurou uma série de imperativos que os homens têm forçosamente que cumprir. A ideia de Deus, tal como o evangelho no-la mostra, é a ideia de um Deus que está, de uma certa maneira, à mercê daquilo mesmo que ele criou, porque somos livres para o poder recusar. Mas provavelmente não era isto que eu queria dizer (risos).
Há dois dias li um texto muito interessante do nosso caríssimo Bento Domingues intitulado assim: "Deus não sabe como se chama". Bem... nós provavelmente é que precisamos de saber como chamá-lo.
A autodefinição que vem no texto sagrado, que se dá como se fosse uma ficção, é a de uma entidade que na ordem linguística, na ordem lógica, se define como uma espécie de tautologia sublime, porque não há outra maneira de se definir. Nós não nos podemos definir assim. Se alguma vez um homem se apresentar como "eu sou quem sou", realmente já está muito próximo do internamento... (risos). Porque a experiência humana que nós temos, quer pessoal quer coletiva, não corresponde a essa autoafirmação.
Mas está escrito na Bíblia: "Eu sou quem sou", o que nos permite subentender um recado: "agora explorai essa revelação". É uma autoafirmação que não é da ordem lógica. Mas nem para essa autoafirmação é necessário recorrer a um conceito que nós chamamos fé. A fé aparece e tem razão de ser num contexto daquilo que para a experiência humana parece totalmente inaceitável. E é totalmente inaceitável numa ordem da razão que nós conhecemos, aquela que é fundadora do Ocidente e nos permite assumir o tipo de evidências a que nós acedemos, a partir daquilo que mais tarde se chamará a ciência, no sentido próprio do termo, lógica na ordem formal. Aparentemente esta afirmação "Eu sou quem sou" que me parece uma afirmação de tipo psicológico, metafísico, se quiserem, parece à primeira vista não ser diferente das visões filosóficas de um Platão, de um Aristóteles, do que é o ser, do que é o não ser.
Estamos aqui dentro daquilo que não é da ordem da fé. Por mais extraordinárias que sejam as reflexões da metafísica ocidental elas não pertencem a esse domínio. Quando S. Paulo, desejoso de ter um público que compreendesse a novidade dessa nova visão que ele tinha tido do que é o santo, o sagrado, o divino propriamente dito, mas um divino de outra ordem, tentando em Atenas criar estratégias face a um ceticismo grego de uma humanidade que, na pluralidade de deuses (algo que não é da ordem do racional mas uma forma de racionalidade que permitia domesticar a experiência humana dessa época) vê numa inscrição dedicada a todos os deuses uma inscrição pequena dedicada "ao Deus desconhecido". E S. Paulo, que é um grande retórico, diz:
"Eu venho pregar esse Deus, que vós desconheceis, vós tendes todos os deuses, mas não tendes esse Deus".
Aos gregos que representavam a razão humana mais subtil da cultura do Ocidente diz-lhes: «Vós conheceis tudo mas não tendes esse Deus».
E começa naturalmente a falar dessa nova referência, dessa nova incarnação do divino, de um Deus humano, de um Deus humano em si próprio. Os gregos estavam habituados a lidar com o pensamento de grandes filósofos mas quando S. Paulo anunciou que Jesus ressuscitou, o areópago não se riu, mas os presentes afastaram-se e foram-se embora. O que ele estava dizendo era para eles incrível.
Mas é tão incrível na hora em que ele o disse em Atenas como hoje é incrível. Não temos (e neste aspeto Wittgenstein tinha razão) nem mais meios nem mais espaço do que a linguagem, ela mesma. Porque a linguagem não está à nossa disposição. Nós somos a linguagem que dispõe de nós. Podemos sempre fazer uma inversão na linguagem como fez Tertuliano que disse: "Creio porque é absurdo". Bem... isto é considerado como o máximo da cegueira do ponto de vista humano, ou uma espécie de provocação máxima ou ainda de um mau comportamento do discurso humano. Naquela altura ainda ninguém conhecia uma experiência em termos poético-culturais chamada surrealismo. Dizer "creio porque é absurdo" não era uma graça cultural de que os intelectuais e os poetas têm o segredo. Era qualquer coisa séria. Em última análise nós também não somos os senhores daquilo que nos define no campo da razão. Aquilo que nos distingue na ordem meramente profana de todos os seres que nós conhecemos é o sermos criados assim ou de nos terem inventado assim através da História, mas a razão não está no lugar do Deus que contestamos porque é tão difícil de apreender o que se não pode nomear. A razão é o esforço máximo da inteligência humana de que é capaz para compreender o cosmos em todas as suas dimensões, de compreender o que nós somos e, na medida do possível, tentar desvendar ou antecipar o que nos espera, o nosso destino. Simplesmente, todos nós sabemos (e mesmo se não o soubéssemos, os antigos já o sabiam) que a razão é também outra coisa e que mesmo o homem antigo que vive numa espécie de luminosidade de fundo está confrontado com uma opacidade relativamente ao seu destino.
Impelido pela mais luminosa das suas intenções, o mais sábio dos homens para os gregos, Édipo, o que interrogou a Esfinge, o que se propôs decifrar o mistério sem o qual o homem não é senhor do seu destino, não percebe exatamente qual o seu destino; ele é o decifrador do enigma mas por sua vez, como se fosse realmente personagem de um conto inventado por um Kafka, que ainda não existia, ele cai na armadilha de sua própria luz, da sua própria luminosidade.
Estamos todos nesta condição. Deus está fora dessa ordem, dessa perspetiva, particular e única que é aquela que é criada. E como dizia Kierkegaard, a fé cria o seu próprio objeto. A esse título ela não se pode discutir. Não se pode discutir aquilo que é discutível. Kierkegaard diz que os homens primitivos (qualificativo hoje já um tanto rejeitado), se pedem qualquer coisa ao fetiche ou se querem que esse fetiche intervenha, e se isso faz parte da sua própria pulsão, eles estão a rezar ao Deus verdadeiro. Toda a dificuldade dos incertos do meu género é saber como se distingue o "fetiche" do Deus verdadeiro. E ainda não consegui resolver este problema mas penso que na minha maneira de encarar isto, o único fetiche de que eu me fui desprendendo chama-se efetivamente o "fetiche" da razão. Não cultivando com tanto fervor como devia esse fetiche, só me resta esperar que o não fetiche por excelência, uma outra coisa, de outra ordem, seja mais verdadeiro do que o conjunto das verdades puramente racionais, que são as minhas, de que não abdico, mas que não bastam para aquilo que ele próprio é, em certas horas de todos nós, como algo de propriamente indescritível, incompreensível, quando nós estamos diante de obstáculos que não podem sequer ser nomeados, porque nós não somos capazes de os nomear. Então aparece uma outra nomeação, uma espécie de antinomeação que seria a nomeação verdadeira.
E nessa nomeação verdadeira inscreve-se aquilo que por via racional está mais perto daqueles que vivem essa relação com a verdade em que a fé tradicional realmente é vivida. E esta é por enquanto a "prière" dum incerto e não a "antiprière" dum autor que foi para nós no Ocidente, nomeadamente para a cultura portuguesa, na 2ª metade do séc. XIX, um autor que perturbou o discurso católico tradicional chamado Ernesto Renan, "A oração da Acrópole".
Eu não tenho categoria para estar na acrópole e entre as duas acrópoles, a de S. Paulo e a de Renan, ainda me inclino hoje mais para a de S. Paulo que para a de Renan.
Eduardo Lourenço
"A Demanda no Mundo da Incerteza" in
Reflexão Cristã, nn 37-38-39 (2011) (Revista do Centro de Reflexão Cristã)
(via site da Pastoral Nacional da Cultura)