quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Paul Valadier: "A Igreja Católica só terá credibilidade se admitir em seu seio o pluralismo”


Numa entrevista que acaba de dar à IHU - Revista do Instituto Humanistas da Unisinos, Brasil, Paul Valadier, padre jesuíta e professor emérito de filosofia moral e política, sustenta que a Igreja não deve encorajar as tentações niilistas do nosso tempo, "arrasando nossos contemporâneos com palavras pessimistas, condenações inflexíveis, tampouco referindo-nos insensatamente às nossas sociedades como “culturas de morte”. Se esse diagnóstico catastrófico fosse verdadeiro, o niilismo, que, na realidade, inspira secretamente a expressão “cultura de morte”, teria triunfado. E a esperança evangélica da mecha ainda acesa estaria extinta".

Interrogado, a dado passo, como percebe ele "Mistério da Igreja hoje, a partir de uma leitura de Inácio de Loyola" e "que contribuições ele tem a dar ao mundo de hoje?", Valadier responde nestes termos:
"É justamente por isso que a espiritualidade inaciana encontra sua plena atualidade. Contra o humor moroso de um jansenismo latente e do rigorismo moral – estes tão funestos para a difusão da fé cristã, mas sempre presentes em diversas posições teológicas ou filosóficas, inclusive no ensinamento moral do Magistério romano – essa espiritualidade convida o homem a abrir-se para o desejo de Deus, para si e para o mundo, mobilizando sua afetividade, suas capacidades intelectuais e sua vontade para descobrir o que deve ser feito aqui e agora. Ela defronta cada indivíduo com sua vocação própria e única, mergulhando-o, portanto, na atualidade histórica em que a graça de Deus o chama a ser, em vez de cair no vazio (naquele do pecado), a viver, ou de perecer, conforme a antiga sabedoria bíblica. Aquele que experimentou os Exercícios Espirituais de Santo Inácio descobriu a força e a pertinência de uma espiritualidade que não arrasa nem condena, mas convida a dizer sim à graça de Deus, que chama cada indivíduo, concretamente, a responder da sua maneira singular e única (carisma de cada cristão no Corpo de Cristo, segundo a grande visão de São Paulo).
É, sem dúvida, desse modo que se pode melhor vislumbrar o Mistério da Igreja. Não se trata, aqui, de opor uma Igreja histórica e humana, portanto, pecadora, a uma Igreja santa, invisível e oculta, misteriosa. O ser humano que é chamado à sua divinização, para falarmos como os Padres Gregos, é o homem em suas tentativas e erros, ou mesmo em suas fraquezas, que é solicitado pela graça divina e que responde a ela quando obedece ao seu desejo de viver e de viver bem (de maneira santa), desejo este que está profundamente arraigado nele, pois vem de Deus mesmo. O Mistério da Igreja está justamente no fato de que os pobres homens que somos nós sejam chamados desde já a “serem santos como Deus é santo”. A Igreja é a reunião misteriosa de todos aqueles e de todas aquelas que se deixam animar pelo Espírito de Cristo, que os busca lá onde eles estão, logo, em sua humanidade pecadora, hesitante, medrosa, fechada em si mesma, mas chamada à santidade!
Estruturas eclesiásticas esclerosadas
Todavia, deveria ser óbvio que, mesmo sem ter de conformar-se com o mundo atual, a Igreja não pode anunciar a mensagem da qual é portadora se ela mesma não se deixar marcar pelo Evangelho. Como na época de Inácio, mas de formas diferentes, a Igreja precisa reformar-se, converter-se, abrir-se para o Espírito. Isso é, na verdade, uma banalidade. Mas suas consequências são significativas. Inácio inventou meios para uma transformação da Igreja, fazendo um apelo à missão apostólica de um papado considerado irreformável por outros (Lutero ). Nossa situação não é mais a mesma, mas, como Inácio, convém certamente chamar a Igreja a cumprir a sua própria missão. Esta foi muito significativamente esclarecida e atualizada pelo Concílio Vaticano II .
Como anda a abertura às grandes decisões desse Concílio? Os questionamentos sobre mentalidades e estruturas eclesiásticas esclerosadas continua? Não se está presenciando antes uma preocupante restauração, incentivada pelas mais altas autoridades da Igreja? Restauração imposta que, como vemos nos Estados Unidos, ameaça religiosas devotadas que dedicaram uma vida inteira aos outros e são amplamente reconhecidas pela opinião pública . Restauração sorrateira, quando a hierarquia romana incentiva as forças mais tradicionais e fechadas entre os fiéis ou no seio da sociedade. 
Para ler a entrevista na íntegra, clicar AQUI.

domingo, 23 de setembro de 2012

Queimar o país?



Do texto de Bento Domingues, no Público de hoje:


"1. Contaram-me que o padre Victor Melícias, quando estava ligado aos Bombeiros, perante um incêndio enorme, terá insistido numa linha de intervenção que indignou o responsável pelo comando das operações: "Cale-se, padre Melícias! O senhor pode entender muito de fogo do Inferno, mas deste não percebe nada!" Menos sei eu, mas não estou obrigado a calar-me, quando o país está a ser todo queimado e os sacrifícios dos bombeiros só conseguem que ainda fique alguma coisa para arder no ano seguinte! É estranho que este crime, esta destruição de recursos essenciais para o presente e para o futuro, não signifique nada, absolutamente nada, no debate político actual. Nenhum compromisso com a troika nos pode obrigar a entregar o país ao abandono e às chamas. Pode-se dizer que, se tenho obrigação de saber alguma coisa de missas e religiões, estou dispensado de tocar num assunto que exige formação específica e informações rigorosas, analisadas num quadro pluridisciplinar. É verdade que não sou engenheiro florestal, nem teórico do desenvolvimento sustentável.

Acontece, porém, que é a participação na Eucaristia que obriga os católicos a não passar ao lado das questões ecológicas e sociais. É o próprio Ofertório da missa que implica o casamento do Céu e da Terra: "Bendito sejais, Senhor, Deus do Universo, pelo pão e pelo vinho que recebemos da vossa bondade, frutos da terra e do trabalho humano que hoje Vos apresentamos e que para nós se vão tornar pão da vida e vinho da salvação."

Se trairmos esta aliança do divino e do humano na relação com a natureza, comemos e bebemos a nossa condenação na Eucaristia. É nela e por ela que dizemos o sentido do cosmo, da história humana e da vida espiritual de cada participante. Sem integrar a promoção do bem comum das comunidades locais e o cuidado pelo presente e futuro da terra, casa de todos, a missa renega o Cristo cósmico. (...)"

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

" a política pública não tem combatido eficazmente (...) a desigualdade na sociedade portuguesa", considera a Comissão Nacional Justiça e Paz


" (...) o Governo nunca foi capaz de demonstrar que os sacrifícios exigidos aos portugueses estavam  distribuídos com equidade", afirma a Comissão Nacional Justiça e Paz, num pronunciamento hoje divulgado".
"Apesar de frases sonantes nesse sentido - prossegue a CNJP -  a política pública não tem combatido eficazmente as disparidades na distribuição do rendimento e outras formas de desigualdade na  sociedade portuguesa, havendo mesmo indícios de agravamento destas desigualdades nos últimos anos. Só agora se ouviu o anúncio de que seriam sujeitos a impostos novos alguns tipos de bens e  de  rendimentos de capital. O contraste entre o pormenor das medidas que atingem os rendimentos do trabalho e o carácter vago e brando de algumas que irão afetar, no futuro, a riqueza e os rendimentos de capital é significativo.
O desnível das condições de vida sofrido pelas pessoas e famílias por força da crise e das políticas públicas revela um quadro  socioeconómico gritantemente desigual. Enquanto a uns falta pão, casa, água e luz, outros mantêm um nível de vida praticamente igual, se não mais elevado, do que aquele que tinham antes da crise. Está aqui um critério fundamental de equidade: não basta proporcionalidade no que se retira (por via fiscal ou outra); também é preciso que exista equidade no que resta depois disso (rendimento disponível). Esta é a medida em que as pessoas e as famílias são afetadas pela crise e medidas conexas. Isto aplica-se não apenas aos rendimentos do capital, mas também a certos estratos de rendimentos do trabalho, como são os de alguns dirigentes de empresas".

Ler o documento na íntegra AQUI.
Imagem: escultura de José Rodrigues

domingo, 9 de setembro de 2012

Um silêncio ensurdecedor

Começa a ser ensurdecedor o silêncio da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a gravidade da situação social e económica em Portugal.
Estão em causa valores e princípios fundamentais do Evangelho e da doutrina da Igreja - no tratamento desigual dos cidadãos quanto aos sacrifícios exigidos; em leis do trabalho que ameaçam a dignidade das pessoas que trabalham; na subida galopante do desemprego e da precariedade, que começa a atingir, cada vez mais, os dois membros das famílias; na destruição dos horizontes das gerações mais novas, obrigadas a emigrar à procura de futuro; na iniquidade da especulação financeira.
Perante o crescimento da pobreza e da exclusão social, é dramático e chega a ser escandaloso que a dimensão da justiça social quase se tenha eclipsado dos pronunciamentos da Igreja. Defende-se, naturalmente, e bem, a urgência da solidariedade e da caridade; considera-se que estes tempos de grandes questionamentos representam oportunidades para mudar de vida, mas está-se longe, muito longe, de tocar com clareza e vigor profético nos mecanismos que produzem a pobreza e o crescente desespero de tantas pessoas. E, sobretudo, cala-se a exigência de que quem tem mais não pode continuar à margem dos sacrifícios e, menos ainda, a aproveitar-se da miséria alheia para enriquecimento próprio. E estes princípios básicos não podem deixar de ser aplicados ao teor das medidas que a cada dia que passa sobrecarregam o fardo daqueles que menos podem, a começar pelos idosos, reformados e pensionistas.
É certo que os movimentos operários católicos lá continuam a intervir e a alertar, com regularidade, assim como a Comissão Nacional Justiça e Paz. Mas sem o respaldo corajoso que seria de esperar dos bispos. A não ser que tenham D. Januário como porta-voz, o que não parece, de todo, ser o caso.

sábado, 8 de setembro de 2012

Uma Igreja outra é possível

No DN deste sábado, Anselmo Borges evoca a figura do cardeal Carlo Maria Martini, antigo arcebispo de Milão que morreu na semana passada, recordando algumas linhas essenciais do pensamento do cardeal para dizer que é possível outra forma de ser e construir Igreja neste tempo. O texto está aqui.

Também no Público de quarta-feira passada tracei um perfil de Martini, a partir da ideia da liberdade de um homem cuja grande paixão era a fidelidade a Jesus, vivida na experiência da Igreja Católica, sem com isso perder a capacidade de pensar pela sua cabeça. O texto pode ser lido aqui, bastando clicar sobre a página reproduzida.

(foto reproduzida daqui)



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A última entrevista do cardeal Martini
Igreja de hoje: "Muitas cinzas sobre as brasas"

No início do mês passado, o card. Carlo Maria Martini começou a pressentir que os seus dias se aproximavam do fim. Aceitou dar uma última entrevista, conduzida por Georg Sporschill, seu colega jesuíta, e por Federica Radice, jornalista free lance, a qual ocorreu no dia 8 de Agosto. O jornal Corriere della Sera publicou-a neste sábado, dia seguinte ao da morte do cardeal. Tem sido considerada o seu 'testamento espiritual'. O texto foi ainda revisto pelo autor.

Como vê o senhor a situação da Igreja?

A Igreja está cansada, na Europa do bem-estar e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. Mas será que estas coisas expressam o que nós somos hoje? (...)

O bem-estar pesa. Nós encontramos-nos como o jovem rico que, triste, se foi embora quando Jesus o chamou para fazer com que ele se tornasse seu discípulo. Eu sei que não podemos deixar tudo com facilidade. Menos ainda, porém, poderemos buscar pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los com os vínculos da instituição.

Quem pode ajudar a Igreja hoje?

O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas. Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me invade uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias de generosidade como o bom samaritano? Que têm fé como o centurião romano? Que são entusiastas como João Batista? Que ousam o novo como Paulo? Que são fiéis como Maria de Magdala? Eu aconselho o papa e os bispos a procurar 12 pessoas desalinhadas para os postos de direção. Pessoas que estejam perto dos pobres e que estejam cercadas por jovens e que experimentam coisas novas. Precisamos do confronto com pessoas que ardem, de modo que o espírito se possa difundir por toda a parte.

Que instrumentos aconselha contra o cansaço da Igreja?

Eu aconselho três instrumentos muito fortes. O primeiro é a conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia levam-nos a seguir um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. São temas importantes para todos e, às vezes, talvez, até importantes demais. Devemos perguntar-nos se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura nos media?

O segundo é a Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Só quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão na renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. As regras externas, as leis, os dogmas foram-nos dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos.

Para quem são os sacramentos? Estes são o terceiro instrumento de cura. Os sacramentos não são uma ferramenta para a disciplina, mas sim uma ajuda para as pessoas nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida. Levamos os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força? Eu penso em todos os divorciados e nos casais em segunda união, nas famílias alargadas. Eles precisam de uma proteção especial. A Igreja sustenta a indissolubilidade do matrimónio. É uma graça quando um casamento e uma família conseguem isso (...).

A atitude que temos em relação às famílias alargadas  irá determinar a aproximação à Igreja da geração dos filhos. Uma mulher é abandonada pelo marido e encontra um novo companheiro que cuida dela e dos seus três filhos. O segundo amor prospera. Se essa família for discriminada, não só a mãe é deixada de lado, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da Igreja, ou não sentem o seu apoio, a Igreja perderá a geração futura. Antes da Comunhão, nós rezamos: "Senhor, eu não sou digno...". Nós sabemos que não somos dignos (...). O amor é graça. O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser invertida. Como é que a Igreja pode ajudar com a força dos sacramentos aqueles que têm situações familiares complexas?

O que faz o senhor pessoalmente?

A Igreja está atrasada 200 anos. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. Eu sou velho e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor fazem-me sentir o amor. Esse amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes eu percebo em relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor. Tenho ainda uma pergunta para si: o que pode você fazer pela Igreja?

Original italiano: Corriere della Sera
A tradução, da autoria de Moisés Sbardelotto, foi publicada na newsletter do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil. Foram feitos pequenas modificações de estilo para adaptar a linguagem à versão do Português de Portugal.