sábado, 29 de junho de 2013

D. João Alves (1925-2013): o bispo que "empurrou" uma nova Concordata

O antigo bispo de Coimbra (entre 1976 e 2001), D. João Alves, morreu ontem na cidade, aos 87 anos. Apesar de a sua morte pouca atenção ter despertado nos nosso media, devemos a D. João, enquanto presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), entre 1993 e 1999, o empurrão decisivo para a negociação (com o Governo liderado por António Guterres) que levou à revisão da Concordata de 1940, culminando com a assinatura de uma nova Concordata entre Portugal e o Vaticano, em 2004. 
Nascido a 13 de Dezembro de 1925, em Torres Novas, João Alves foi ordenado padre em Junho de 1951 e nomeado bispo auxiliar de Coimbra em 1975. No seu mandato enquanto presidente da CEP, João Alves enfrentou também questões polémicas, como a imigração e os feriados, durante os governos de Cavaco Silva.
A 2 de Maio de 1993, no “Público”, eu e o Jorge Wemans publicámos uma entrevista a D. João Alves (a primeira que ele deu enquanto presidente da CEP). Nela, e sobre questões que voltaram a ter plena actualidade, o bispo de Coimbra dizia que nem só a economia interessa, pois a vida também é descanso e direito ao feriado.
Enquanto bispo, D. João interessou-se muito pelo papel dos leigos na Igreja. A sua forma de estar – próxima, apesar de ser um homem formal – nunca escondeu o interesse que tinha por uma maior participação dos leigos no interior da Igreja Católica. Sobre essa questão, acrescentava na entrevista que os católicos não devem ter medo de ir para a praça pública: “Que assumam as suas responsabilidades, com humildade e simplicidade, e que proponham corajosamente o contributo do Evangelho à mudança e à transformação do nosso país.”
Alguns excertos:


Estamos num mundo em profunda transformação, não apenas nos aspectos económicos, ou de instalações ou das comunicações, mas também numa transformação muito profunda na ordem cultural e dos valores. Ser-se cristão numa época tranquila, em que esta evolução se não dá, ou ser-se cristão numa época como esta é muito diferente e põe muitas exigências.

A prioridade das prioridades é a pastoral da fé, que procura ajudar os cristãos na sua formação cristã, no aprofundamento das razões de crer e a motivá-los para tomarem as suas responsabilidades na Igreja e no mundo. Ajudá-los a não fugirem, mas a aceitarem os desafios que a sociedade lhes coloca. Para isto é precisa a catequese, é precisa a leitura cristã, são precisas escolas diocesanas de formação, etc.

Apercebo-me de que a sociedade portuguesa olha para a Igreja com uma atitude muito exigente.
Referi a necessidade da formação cristã e reconheço que muitos estratos sociais já não têm essa formação aprofundada. Mas, no entanto, praticamente todos os portugueses intuem qual é a missão da Igreja. E, quando têm a ideia de que não está a corresponder, são exigentes. Querem que a Igreja esteja presente, que colabore, que a Igreja explicite o seu pensamento, que intervenha.

[A atitude da hierarquia católica] é de interesse e de colaboração e não só de crítica ou de condenação. Evidentemente, quando há questões doutrinais, quando há princípios em questão, a Igreja tem de dizer e esclarecer o que pensa, por fidelidade à sua própria missão. Mas a atitude é colaborante. A atitude maniqueia – do lado de cá dos muros da cidadela é que está a verdade, todo o bem e toda a perfeição, e do lado de lá é que está o mal –, isso não existe entre nós.

Se estou satisfeito ou se nós, bispos, estamos satisfeitos com a situação, devo dizer que ainda temos de progredir e de avançar. Mas posso garantir que a visão da relação Igreja-mundo progrediu muito nos últimos anos. Até em relação aos que, sem renegar a Igreja, se afastaram da prática, ou aqueles que não têm fé, que se dizem ateus, verifico que se progrediu muito para uma visão positiva e de abertura ao diálogo. Este diálogo com pessoas que abandonaram a prática, ou que negam ostensivamente Deus e a transcendência, não é fácil. Exige atitudes novas.

Hoje, quando se fala em formação cristã e formação da fé, procura-se que a pessoa ganhe uma estrutura e um dinamismo interiores, à maneira de Jesus Cristo, à maneira dos apóstolos de Jesus, que os leve a comunicar esses grandes valores à sociedade, correspondendo às grandes necessidades sociais — seja no plano da vida, da justiça, da liberdade, da responsabilidade, da honestidade, da partilha fraterna e da solidariedade.

A nossa sociedade de hoje é diferente e faz um maior exercício da liberdade e expressão de pensamento. Graças a Deus, a sociedade em que nós vivemos tem muito mais consciência da sua autonomia.
A posição dos cristãos há-de ser uma posição simples, humilde, dialogante e compreensiva, de quem sabe que não tem sempre uma visão clara sobre todos os assuntos, nem tem sempre a última palavra sobre todos os problemas. Há, portanto, uma aprendizagem a fazer para este diálogo.

Não é só a nível dos católicos, mas a nível da população em geral: não custa verificar que há dificuldades nesta convivência com os outros numa sociedade plural, de posições, situações, critérios, maneiras de ver diferentes. Por isso não tenho dúvidas em dizer que estamos num processo de descoberta.
A convivência pacífica – compreensiva, sem abdicação das convicções pessoais e dos princípios –, esta convivência fraterna, solidária, assente nas diferenças e no são pluralismo, que pode existir numa sociedade, é uma tarefa muito difícil e que exige muito trabalho e muita colaboração. Não tenho dúvidas – e acho que isso não perturba ninguém – de dizer que estamos num processo de educação e de formação, incluindo os próprios cristãos.

Quase se dá a entender que, resolvidos os problemas económicos, ficará garantido o bem maior da pessoa humana. A pessoa não se restringe apenas à dimensão económica, à solução das suas necessidades diárias de subsistência, de saúde, etc. Há a dimensão transcendente na pessoa humana, a dimensão religiosa, há os valores culturais. Neste sentido, temo que não só no presente, mas também no próximo futuro, se possa comprometer a realização integral da pessoa humana de cada português.

É certo que, numa visão algo economicista se farão contas e com um ou dois feriados [a menos], poupar-se-ia, em princípio, uma quantia determinada de dinheiro. É muito natural que esses cálculos estejam feitos e que sejam todos muito correctos. Mas a vida não se esgota no económico, a vida é também convivência, é descanso, até a própria alegria do feriado...
É também essa alegria manifestada inclusivamente no Carnaval, um feriado que tem uma tradição e que o povo muito estima. Estas dimensões também têm de ser ponderadas quando se pensa em pôr ou tirar algum dos feriados. Não sei, não me quero pronunciar, se todos estes aspectos estiveram igualmente presentes na mesa de estudo deste problema.
Acrescente-se ainda que alguns dos feriados têm uma dimensão religiosa e comunitária, o que vai tocar nas comunidades cristãs e na sua sensibilidade, que compreendem a maioria do povo português, mesmo que nem sempre “praticante”.
Este problema pode parecer simples, à primeira vista. Mas, na realidade, é muito complexo, pela sua dimensão cultural, social e religiosa. Por isso, ao tocar-se-lhe, exige sempre muito senso humano, social, político, cultural e religioso.

[Aos católicos diria] que não tenham medo. Que vão para a praça pública. Que assumam as suas responsabilidades, com humildade e simplicidade, e que proponham corajosamente o contributo do Evangelho à mudança e à transformação do nosso país.

(Foto reproduzida daqui)

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