Jean Vanier, que dedicou a vida a favor das
pessoas com deficiência, foi distinguido quinta-feira passada com o Prémio Templeton, um dos mais importantes, a nível
internacional, na área da religião. Esta distinção junta-se a muitas outras já
recebidas ao longo da vida pelo fundador de L’Arche (A Arca), onde pessoas com
e sem deficiência vivem juntas, em comunidade. Com esse pretexto, recorda-se
aqui o seu itinerário, num texto de Alice Caldeira Cabral, ex- responsável
do Movimento Fé e Luz em Portugal e agora numa comunidade do mesmo movimento,
criado por Jean Vanier.
Texto de Alice Caldeira Cabral
Nascido a 10
de Setembro de 1928, Jean Vanier é o quarto e penúltimo filho do casal Pauline
e Georges Vanier. O pai foi governador-geral do Canadá entre 1959 e 1967,
depois de uma carreira como diplomata que levou a que Jean tenha nascido na Suíça
e crescido em França e em Inglaterra.
De regresso
ao Canadá, quando começa a II Guerra Mundial, Jean, com apenas 13 anos, pede ao
pai para integrar a Marinha inglesa. O pai manifesta confiança nele, o que o
marca de forma importante. Integra primeiro a Marinha inglesa e, mais tarde, a
canadiana.
Aos 22 anos,
Jean compreende que a vida militar não o preenche. Vive uma intensa procura
espiritual. Entra para o Centro Internacional de Ensino de Teologia dos Leigos,
L’Eau Vive, dirigido pelo padre dominicano Thomas Philippe, que se torna seu
director espiritual. Pensa tornar-se padre, o que não chega a concretizar.
Estuda Filosofia, faz um doutoramento sobre a Ética em Aristóteles e inicia uma
carreira académica na Sorbonne. A sua tese, apresentada em 1962, será publicada
mais tarde, numa versão simplificada, com o título Le Gout du Bonheur (O gosto
da felicidade), ed. Presses De la Renaissance, Paris 2000.
“Quando
voltas?...”
Em 1964,
Jean foi professor de filosofia na Universidade de Toronto (Canadá). O seu
amigo padre Thomas fora entretanto nomeado capelão da Val Fleuri, instituição com
cerca de 30 pessoas com deficiência intelectual, situada em Trosly-Breuil, perto
de Compiègne (na região de Oise, em França). Thomas Philippe convidou-o a ir
conhecer essas pessoas porque, dizia, “são as pessoas marginais e excluídas da
vida duma sociedade que podem melhor revelar-nos o sentido da vida humana.” (1)
O contacto
com as pessoas com deficiência intelectual toca-o profundamente. À chegada
sente-se inseguro e fica impressionado com a violência a que assiste. Como
falar com pessoas tão diferentes daquelas com as quais convivia todos os dias?
Surpreendentemente, todos falam com ele, querem conhecê-lo, tocam-no,
interpelam-no directamente: “Quando voltas?...” Conhece Raphaël Simi e Philippe
Seux que vivem desde muito novos em instituições asilares e comove-se com o seu
sofrimento.
Nos Estados
Unidos e no Canadá, Jean Vanier conhecera exemplos de experiências de vida em comum
com pessoas excluídas. Sentindo-se próximo da espiritualidade de Charles de
Foucauld, das Irmãzinhas e dos Irmãozinhos de Jesus, apercebe-se de que o seu
desejo profundo era viver na companhia das pessoas pobres. Percebe então que
podia criar uma resposta diferente para o acolhimento dessas pessoas, com o
apoio de um amigo psiquiatra e do padre Thomas. Assim que acaba as aulas em
Toronto, recusa o lugar de professor permanente e decide, com Thomas Philippe,
comprar uma casa em Trosly (Oise, França).
A casa estava
em más condições de conservação e não tinha casa de banho. Com o apoio de
amigos e de fundos governamentais, o edifício é tornado habitável. A 5 de
Agosto de 1964, Jean acolhe Raphaël e Philippe como dois amigos e não já como “umas
pessoas com deficiência”.
Como nunca
se tinha ocupado de gestão doméstica, Jean percebe que precisa de ajuda para resolver
as muitas dificuldades que encontra. Vários amigos ajudam-no de novo. Começa
assim a Arche – Arca, uma aventura fora do comum, de amizade entre três pessoas
muito diferentes mas que se dispuseram a uma experiência de encontro pessoal na
partilha da vida. Viver juntos, aceitando-se e descobrindo os pontos fortes de
cada um e aprender a viver com as limitações sem se deixar oprimir por elas é
um desafio difícil, mas fecundo. A experiência da partilha de fé e da confiança
em Deus e de entrega total torna esta uma experiência única.
Sobre essa
experiência, Jean afirma: “No fundo, eles queriam ter um amigo. Não queriam o
meu saber, nem o que eu sabia fazer, mas queriam o meu coração e o meu ser”
(2).
Rapidamente
surgem novas casas como a de Trosly. Jovens de França, Canadá, Inglaterra e
Alemanha juntam-se a ele, tornam-se “assistentes” e escolhem viver com pessoas
com deficiência intelectual sem família.
Esta
experiência de encontro e descoberta dos dons uns dos outros continua hoje em
dia, em 147 comunidades da Arca em todo o mundo. E os jovens assistentes
referem que é uma experiência que muda o seu olhar e os torna mais humanos.
Fé e Luz,
comunidades de encontro
Em 1971, a
história de Jean Vanier cruza-se com a de Marie Hélène Mathieu, fundadora do
Office Chrétien des Personnes Handicapés (Serviço Cristão de Pessoas com
Deficiência). Com ela, funda o Movimento Fé e Luz, que terá um cariz e uma
história bem diferentes: enquanto as comunidades da Arca são comunidades de
vida, as comunidades Fé e Luz são comunidades de encontro. Ambos os movimentos
nascem em torno das pessoas com deficiência intelectual que, de acordo com a expressão
usada por Jean Vanier, “estão entre as pessoas mais excluídas da sociedade”.
No Fé e Luz,
estas pessoas vivem com as suas famílias. Os jovens convidados a fazer parte
das comunidades são um pilar tão importante como as pessoas com deficiência ou
as suas famílias.
Tanto a Arca
como o Fé e Luz são movimentos ecuménicos e Jean desenvolveu um trabalho
notável para o encontro entre Igrejas, entre povos desavindos – na Irlanda do
Norte criou mesmo um movimento de diálogo e intercâmbio de experiências em
pequenas comunidades também entre católicos e protestantes. Mas também tem tido
experiências de diálogo inter-religioso, primeiro na Índia mas também no
Médio-Oriente onde o Fé e Luz e a Arca têm crescido muito nos últimos anos.
O movimento
está hoje presente em 82 países. Em Portugal, há comunidades nas dioceses de
Porto, Braga, Lisboa e Évora.
Eremita por
um ano em Portugal
Ainda nos
anos 60, e após a sua saída da Marinha canadiana, Jean Vanier viveu um tempo de
discernimento em relação ao rumo que queria dar à sua vida. Esteve em Fátima
durante um ano, numa casinha pequena, ao lado da fraternidade das Irmãzinhas de
Jesus (Charles de Foucauld). Nesse ano em que viveu como eremita, estabeleceu
uma relação muito próxima com monsenhor Luciano Guerra, na altura reitor do
Santuário.
Fisicamente muito alto, isso não inibe a sua capacidade
incrível de encontro interpessoal. A sua aproximação faz-se sobretudo pelo modo
como acolhe o outro numa simplicidade enorme, com uma rara marca de respeito e
capacidade de espera do ritmo de cada um. Gosta de rir e de celebrar – insiste
aliás na importância dos momentos de celebração em conjunto para alimentar
relações humanas de igual para igual, em que o poder de uns sobre os outros se
esbate e as convenções sociais podem ser subalternizadas.
Em 1971, aquando da primeira peregrinação a
Lourdes que esteve na origem do Movimento Fé e Luz (3), Jean estabeleceu uma
relação mais próxima com a delegação portuguesa, na qual se destacava Maria
Amélia Vaz Pinto, Pais de Azevedo, Isabel Marques e Domingos Gil. Foram estes os
iniciadores da primeira comunidade do Movimento Fé e Luz em Portugal (Lisboa, 1976).
Essa ligação
tecida de relações pessoais foi-se enriquecendo e estreitando quando, na
segunda peregrinação, em 1981, houve uma delegação portuguesa maior que incluía
pessoas do Porto: Ana Maria Corte-Real e Manuela Milheiro, apoiadas pelo padre Marcelino da Cunha
Ferreira, da paróquia do Marquês (4). Mais tarde o casal Maria José e Alfredo
Souto Neves fez parte da coordenação internacional do Movimento durante vários
anos, sendo responsáveis internacionais para a África.
Jean Vanier
esteve no Porto a orientar um retiro, em 1996, altura em que o movimento
festejava os 25 anos. Voltou em 2001 para uma conferência em Fátima e de novo
em 2005 para um novo retiro no santuário.
Tendo o dom
da palavra, o seu discurso é simples mas muito exigente. Fala sempre a partir
de pessoas e histórias de vida concretas experimentadas por ele no seu percurso
na Arca e em Fé e Luz.
Hoje em dia
o Jean evita deslocações mas orienta retiros e escuta pessoas num local central
da Arche – La Ferme, perto da 1ª casa da Arche, em Trosly-Breuil, na Oise em
França, não muito longe de Paris. Tem feito regularmente conferências na UNESCO
em Paris a última das quais em Janeiro intitulada: “Vivre ensemble les larmes
et la joie” (Viver juntos as lágrimas e a alegria).
Prémios e
livros
O Prémio
Templeton, atribuído pela Fundação John Templeton, pretende distinguir pessoas
com “contribuições excepcionais” para a afirmação da dimensão espiritual da
vida. Os cerca de 1,8 milhões de euros serão entregues por Jean Vanier, na
totalidade, às instituições com as quais ele ainda continua a trabalhar, apesar
dos seus 86 anos de vida.
Esta
distinção junta-se a muitas outras recebidas por Jean Vanier, pelo seu trabalho,
entre os quais o Prémio Paulo VI, em 1997, atribuído pelo Papa João Paulo II, e
o Prémio Pacem in terris em 2013. Oficial da Legião de Honra, de França, Jean
Vanier foi também um dos 60 leigos convidados pelo Papa João Paulo II para
participar no Sínodo sobre os Leigos em Roma, em 1988.
Com uma bibliografia
muito vasta, pode encontrar-se ainda em português o livro Novas Perspectivas do
Amor (Ed. Perpétuo Socorro). Outros dois livros fundamentais de Jean Vanier
foram publicados também em Portugal, mas ambos estão esgotados: A Comunidade
Lugar do Perdão e da Festa (ed. Paulistas/Paulus); e Encontrei Jesus (ed.
Paulistas), este último ilustrado pelas Irmãzinhas de Jesus e muito usado na
catequese de crianças. (5)
Em A
Comunidade Lugar do Perdão e da Festa, Jean Vanier escreve: “Uma das maravilhas
da comunidade é que ela permite acolher e ajudar pessoas, o que não se poderia
fazer sozinho. Quando se juntam as forças, quando se repartem os trabalhos e o
cuidado das pessoas, pode-se acolher muita gente, até mesmo pessoas em grande
sofrimento, e pode-se ajuda-las a descobrir que são amadas e dignas de amor e
assim encontrar o caminho da cura interior e da confiança em si mesmas, nos
irmãos e em Deus.”
Notas
(1) Prefácio
ao livro Antes de Tudo o Abraço (Paulinas, 2012), de Marie Hélène Mathieu
(2) Jean
Vanier, Le corps brisé – Retour vers la Communion, Parole et Silence, 1998,
Saint-Maur
(3) Sobre
isto pode consultar-se a história do Movimento Fé e Luz no livro Antes de Tudo
o Abraço (Paulinas, 2012), de Marie Hélène Mathieu com prefácio de Jean Vanier
(tradução de Plus Jamais Seuls, Presses de la Renaissance, 2011, Paris).
(4) Gostaria
de dar aqui nota da aventura do início desta Comunidade da Senhora da Conceição
do Porto. Havia alguns pais que estavam preocupados porque os seus filhos com
deficiência intelectual, aos 14 anos, iam ficar sem a possibilidade de
frequentar a escola. Por outro lado, havia uma catequista que dava catequese a
algumas destas crianças. Em 1981 celebrava-se o Ano Internacional das Pessoas
com Deficiência. O pároco, padre Marcelino, reuniu-os a todos e colocou-se a
questão: “O que é que a Igreja pode esperar destas pessoas?”. Ainda não
conheciam Jean Vanier mas colocaram a
questão na sua senda e esta foi e é uma das comunidades mais fecundas do nosso
país. Descobriram que havia em França trabalho com pessoas com deficiência
intelectual e foram a Lourdes.
(5) Outros títulos
importantes da sua bibliografia: Toute personne est une histoire sacrée (Plon,
1994), Aimer jusqu’au Bout – Le Scandale du Lavement des Pieds (Novalis,
Bayard, 1996), Accueillir notre Humanité (Presses de la Renaissance, 1999), Entrer
dans le Mystère de Jésus (Novalis, Bayard, 2005), Les Signes des Temps à la
Lumière de Vatican II (Albin Michel, 2012), Homme et Femme il les fit (Fleurus,
2001), Living Gently in a Violent World – The Prophetic Witness of Weakness
(Diálogo entre Stanley Hauerwas e Jean Vanier) IVP Books, 2008
1 comentário:
Obrigada Alice.
É sempre bom re-encontrar descrito pelos olhos e pelo coração dos seus amigos. Isabel Vale
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