domingo, 13 de agosto de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (3) – Segredos, contextos e linguagens

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Neste mês, trago aqui um texto que publiquei no número de Maio/Junho da revista Brotériaonde procuro analisar o Comentário Teológico sobre o “segredo de Fátima”, publicado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em Junho de 2000. Este é o terceiro trabalho da série e que incluirá mais dois textos, nos dias 13 de Setembro e 13 de Outubro, além de outros dois sobre a figura de Maria, a publicar no próximo dia 15.


FÁTIMA: SEGREDOS, CONTEXTOS E LINGUAGENS

A afirmação do então cardeal Joseph Ratzinger é uma das que marca o Comentário Teológico acerca do “segredo de Fátima”: “A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé”, escrevia, em Junho de 2000, o futuro Papa Bento XVI (2005-2013).
A linguagem do segredo e a linguagem relacionada com a experiência católica e crente da época em que se dão os acontecimentos de Fátima, e dos seus desenvolvimentos posteriores, ajudam a entender muito do que foi a construção do fenómeno ao longo deste século. Fátima surge num contexto religioso e político determinado e desenvolve-se, depois, também em relação com a espiritualidade e os acontecimentos políticos das últimas décadas.


Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI

O texto do Comentário Teológico (que pode ser lido aqui, onde também se pode encontrar o texto da terceira parte do segredo escrita por Lúcia e o relato da conversa do então arcebispo Tarcisio Bertone com a irmã Lúcia e outros documentos relativos ao “segredo”) pode ser lido como um olhar crítico do fenómeno tradicionalmente designado como “aparições” – que, claramente, para Ratzinger, não deve ser designado como tal. O texto aponta para caminhos diferentes dos da linguagem mais tradicional usada em relação a Fátima, embora o faça através de uma proposta positiva, que tenta retirar da mensagem o que de melhor nela se pode ler: a proximidade de Deus através da ideia do coração imaculado e da atenção maternal de Maria de Nazaré; o apelo à conversão permanente ao evangelho de Jesus; a centralidade do objectivo de “crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade”, pois “tudo o mais pretendia apenas levar a isso”; e “a importância da liberdade do homem”, orientando-a “numa direcção positiva” e mobilizando “as forças da mudança em bem”.
Esse olhar positivo, que pretende confirmar a integração da mensagem de Fátima na mensagem evangélica mais autêntica, pode perceber-se, por exemplo, quando o futuro Papa Bento XVI escreve que o “triunfo do Imaculado Coração de Maria”, de que fala o texto do segredo, significa que aquele “Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie”. Ou ainda quando refere as palavras-chave da primeira e segunda partes do “segredo” (a frase “salvar as almas”) e a da terceira parte (“o tríplice grito: ‘Penitência, penitência, penitência!’”), o que o leva a afirmar: “Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: ‘Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.’ Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé.”

Paz – presença e ausência

Estranhamente, o Comentário do cardeal Ratzinger deixa de lado a questão da paz, que é outro tema central da mensagem e da prática pastoral de Fátima, bem como da adesão das populações. Aliás, essa ideia vem sendo sublinhada desde há décadas pelos responsáveis do santuário, por estudiosos do fenómeno, bispos e papas.
Quando veio a Fátima, em 1967, o Papa Paulo VI anunciou a visita dizendo que viria, como peregrino, para invocar a intercessão da mãe de Jesus “a favor da paz da Igreja e do mundo”. E, na homilia que pronunciou no santuário, sublinhava esse objectivo: “O mundo, a paz do mundo”, bem como o desejo de “paz interior” para a Igreja. Em 2010, o próprio Bento XVI sublinharia, na sua homilia em Fátima, que os videntes “fizeram da sua vida uma doação a Deus e uma partilha com os outros por amor de Deus” e que “só com este amor de fraternidade e partilha construiremos a civilização do Amor e da Paz”.

O tema da paz em Fátima está presente em Fátima desde o início e atravessa as décadas: nos primeiros acontecimentos, Lúcia, por vezes pressionada pelas pessoas que acorrem, quer saber se a guerra está para acabar ou se os jovens vão regressar. Muitos jovens portugueses, que tinham sido mobilizados a partir de 1916, estavam já nas frentes de batalha, na Flandres ou em França. E muitos já tinham perecido no campo de batalha.


Soldados portugueses partindo para a frente de batalha
(foto reproduzida daqui)

A guerra, que a maior parte da população não quereria, tornou-se, assim, mais um factor de descontentamento de uma parte importante do país para com o governo republicano. E esse descontentamento manifesta-se também em Fátima, nas perguntas do povo que não queria perder os seu jovens. A atitude de afrontamento do poder, desta vez mais passiva, repetir-se-ia mais tarde, entre 1961-74, em relação à guerra colonial, com mulheres, mães ou soldados a passarem por Fátima pedindo para sobreviver às operações em Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, ou agradecendo o facto de regressarem vivos. Como diz o historiador Bruno Cardoso Reis, as populações católicas estavam mais preocupadas “com a salvação dos seus entes queridos” do que “com a salvação do Império” (Ver texto sobre Fátima, a guerra e a paz, no Expresso de 6 de Maio de 2017).

A fé e a revelação pública; o “auxílio” das revelações privadas

O Comentário começa por relativizar o conteúdo do próprio texto do segredo, dizendo o que ali se pode ler: “Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o que pensar dela?”
Não há qualquer referência ao fenómeno das visões em si que, claramente, acontecem em situações, ambientes ou culturas predispostas a tal. Mas, em várias das alusões que faz, o texto do cardeal Ratzinger deixa implícita essa ideia, ao invocar as diversas fontes de inspiração que podem ter levado Lúcia a escrever o que escreveu.
O texto tem uma estrutura muito simples. O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé começa por aprofundar a diferença entre revelação pública e revelações privadas, a partir do lugar teológico de ambas e sublinhando que entre elas há “uma diferença essencial, e não apenas de grau”: revelação pública “designa a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento”.
A revelação pública designa o modo como “Deus se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo se tornar homem, para atrair e reunir em si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo”. Conclui o texto que, por isso, a revelação não é feita “de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem”. Neste sentido, a “única revelação pública” exige a adesão da fé.
Já a revelação privada é apenas “um auxílio” à fé e é credível apenas na medida em que “faz apelo à única revelação pública”. Sendo revelação privada, não exige qualquer adesão de fé “nem isso é possível”. É uma ajuda oferecida, “mas não é obrigatório fazer uso dela” e o único critério para medir o seu valor é “a sua orientação para o próprio Cristo”.
Fica claro, assim, que apesar de os últimos papas confirmarem a sua adesão à narrativa de Fátima, a fé cristã e católica não implica acreditar que Nossa Senhora apareceu em cima de uma azinheira e foi vista pelas crianças.
Nas bodas de Caná, Maria diz “façam o que ele [Jesus] vos disser”. E, nas poucas vezes em que é citada nos Evangelhos, a sua figura é de quem remete para o centro da mensagem do seu Filho e se coloca à sua disposição (como quando está junto da Cruz). Seria, assim, estranho que ela se manifestasse para pedir a construção de dois “andorezinhos” ou de uma capelinha, conforme os relatos ingénuos das primeiras visões. Ou que se limitasse a pedir devoções, ainda que sob a forma do Coração Imaculado de Maria, ou orações simples como o rosário – em ambos os casos formas concretas de devoção historicamente situadas no tempo.

“Não se trata de algo físico”

A segunda parte do Comentário Teológico trata da estrutura antropológica e psicológica das aparições. Ratzinger recorda que a antropologia teológica distingue “três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilisimaginativaintellectualis)”. E, num tom pedagógico, acrescenta: “É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa.”
Não será por acaso que o cardeal dá o exemplo da árvore: sabendo que a narrativa de Fátima coloca Nossa Senhora a “aparecer” em cima de uma azinheira, o que o futuro Bento XVI está a afirmar é que a “aparição” vista pelos videntes não podia ser vista como a árvore em que eles a viam. Não se tratava de algo físico, não estava lá, no espaço circundante, como a árvore sobre a qual eles a viam. Onde estava então? Na “visão interior”, como explica a seguir: a visão não era captada “por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes».”
Esta visão não era física, mas tão pouco era uma visão “intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística”. E concluía: “Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível.” Por isso, não pode ser apelidada de “fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva”, mas significa antes que “a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». E concretiza de novo: “Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual.”
Esta mesma perspectiva já tinha sido referida pelo cardeal Angelo Sodano quando apresentara, a 13 de Maio de 2000, o resumo do segredo e da sua interpretação: “A chave de leitura do texto só pode ser de carácter simbólico”, disse o então secretário de Estado do Vaticano. E é retomada igualmente no recente livro de D. Carlos Azevedo: “A ausência de dimensão simbólica para ler a vida, interpretar a realidade, evidencia-se nos nossos dias”, escreve, acrescentando que se “as palavras sobre Deus são sempre humanas, quanto mais as visões dos pastorinhos devem ser sujeitas a uma releitura”. (ver Carlos A. Moreira Azevedo, Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã, Esfera dos Livros, Lisboa, 2017).

Uma visão que não é uma “fotografia” do Além

É na terceira parte do seu comentário – que intitula como “Uma tentativa de interpretação do ‘segredo’ de Fátima – que Ratzinger se aproxima do texto de Lúcia, no sentido de o explicar teologicamente e de propor o modo como ele pode ser tomado para a experiência de fé. E que, quase a concluir, se refere aos livros de piedade que poderiam ter influenciado a visão de Lúcia.


Os três videntes de Fátima: Jacinta, Lúcia e Francisco 
(foto reproduzida daqui)

Quando explicava a visão interior, aliás, o futuro Bento XVI escreve que ela se manifesta “com as limitações que lhe são próprias”. Já na visão exterior há uma carga de subjectividade, pois nunca “vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos”. Mais ainda na visão interior, em que o vidente “vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis”, num processo de tradução mais acentuado, em que o sujeito desempenha “uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece.”
Desse modo, “tais visões não são em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende”. E se isso é claro nas visões dos santos, “vale também para as visões dos pastorinhos de Fátima”.
As explicações do texto do cardeal Ratzinger obrigam a procurar, no contexto da época, os elementos que compuseram a “fotografia” dada pelos videntes – e, de forma muito determinante, por Lúcia, que desempenha o papel principal quer em 1917, quer na construção posterior do fenómeno. 
O “segredo” é revelado na visão de 13 de Julho. Escrito em três partes, fala “da vista do inferno”, da devoção ao Imaculado Coração de Maria e do “bispo vestido de branco” que é morto pelos soldados. As duas primeiras, escritas em 1941, eram já conhecidas. A terceira parte, sobre a qual se levantaram muitas especulações, foi escrita em 1944 e revelada apenas no ano 2000, por ocasião da última visita do Papa João Paulo II ao santuário.
No texto sobre o inferno, Lúcia descreve (mantêm-se aqui a ortografia do texto, mesmo com alguns erros, reproduzida no documento oficial antes citado): “Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fôgo que parcia estar debaixo da terra. Mergulhados em êsse fôgo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronziadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dôr e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios destinguiam-se por formas horríveis e ascrosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa bôa Mãe do Céu; que antes nos tinha prevenido com a promeça de nos levar para o Céu (na primeira aparição) se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.”
Na época em que se dão os acontecimentos, um livro que circulava em Portugal, com o título Missão Abreviada, descrevia de modo muito semelhante a visão do inferno. Espécie de manual para as pregações populares do clero, o seu autor, padre Manoel do Couto (natural de Telões, Vila Pouca de Aguiar), tratava temas como a vocação de Deus, o fim último do homem, o pecado, a morte, o juízo universal, a misericórdia e o amor de Deus, a penitência, os sacramentos, a vida e a paixão de Jesus... Ao mesmo tempo, explicava quais os “assuntos da maior importância”: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, o cristianismo como “religião verdadeira” e a Igreja Católica como única Igreja verdadeira no cristianismo, as devoções e formas de rezar, as “mezinhices”, a impureza, e os comportamentos perante questões como os luxos e as modas, os bailes e os jogos, a usura e o roubo, a embriaguez ou os divertimentos do Entrudo...
Na meditação 12ª da primeira parte, “Sobre o Inferno”, o autor escrevia: “Considera, pecador, que o inferno é um lugar no centro da terra; é uma caverna profundíssima cheia de escuridão, de tristeza e horror; é uma caverna cheia de labaredas de fogo e de nuvens de espesso fumo. Lá são atormentados os pecadores na companhia dos demónios; lá estão bramindo e uivando como cães danados, proferindo terríveis blasfémias contra Deus. Lá são atormentados os pecadores com a pena de dano (...) Além disto, os pecadores lá no inferno também sofrem a pena dos sentidos, isto é, também são atormentados por um fogo o mais devorante...”
Ao referir as visões de Fátima como visões interiores, o texto do cardeal Ratzinger diz que essa característica é “bem evidente” no caso da visão da inferno. E torna-se claro que a coincidência de linguagem entre o texto da Missão Abreviada e do escrito de Lúcia traduz “as limitações” e as “capacidades concretas” de que o documento falava. Seria difícil, aliás, articular uma tal visão do inferno, tão material e realista, com a afirmação de João Paulo II, em Julho de 1999, segundo a qual o inferno não é um lugar físico mas se relaciona com a ausência de Deus...

A conversão da Rússia e as perseguições aos cristãos

Na segunda parte do segredo, Lúcia escreve que, para salvar as almas da condenação eterna, Deus queria estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. E acrescentava a visão (de novo, segundo a ortografia própria do documento): “Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra peor [Para Lúcia, o início da II Guerra Mundial foi em 1938, quando a Alemanha anexou a Áustria e o Papa era ainda Pio XI]. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será consedido ao mundo algum tempo de paz.”
 Quando começou a referir-se à Rússia, em 1929 e, sobretudo, a partir de 1938 (antes disso, há apenas alusões pouco claras, que Lúcia explicará depois com a sua ignorância acerca do nome), a vidente vivia ainda em Espanha, onde a terrível Guerra Civil incluiu os assassinatos de muitos cristãos e o encerramento de mosteiros; ao mesmo tempo, os cristãos ortodoxos da então União Soviética viviam tempos de duras perseguições: durante a década de 1930, muitos foram presos, torturados ou mortos, milhares de igrejas foram encerradas e as escolas passaram a ensinar o ateísmo e o desprezo da religião.
Nesse clima político – a que também não é alheio o conflito instaurado pela I República em relação ao catolicismo, em Portugal, e a sucessiva pacificação da questão trazida pelo Estado Novo –, era natural que Lúcia, também sob a influência do cónego Manuel Formigão, visse no comunismo o inimigo dos crentes. Ao invés, a vidente nunca se referiria à ascensão do nazismo que, muito mais tarde, a Santa Sé iria caracterizar como uma “ideologia pagã” (Ver o ponto 5.4. do texto Memória e Reconciliação – A Igreja e as Culpas do Passado, publicado em Março de 2000 pela Comissão Teológica Internacional, presidida pelo cardeal Ratzinger) e que, além de ter planeado a “solução final” para os judeus, provocou, com a Guerra e o Holocausto, a maior tragédia da história da humanidade.
Foi também essa mentalidade anticomunista dominante (contextualizada, como se viu, por grandes perseguições e ataques a cristãos) que levaria Lúcia, em Novembro de 1945, a escrever uma carta ao cardeal Gonçalves Cerejeira, na qual se referia a Salazar como o “escolhido por Deus” para governar Portugal. (Um estudo do investigador José Barreto, do Instituto de Ciências Sociais, sobre esta carta de Lúcia, está publicado como anexo no livro que publiquei recentemente, em co-autoria com Rui Paulo da Cruz: A Senhora de Maio, ed. Temas e Debates, Lisboa, 2017)


A Colina das Cruzes, na Lituânia, 
símbolo das perseguições aos cristãos na União Soviética
(foto reproduzida daqui)

O tema da Rússia, se apareceu tardiamente nas narrativas do fenómeno, também praticamente desapareceu da linguagem mais oficial, ainda que tivesse sido referido na apresentação do segredo. O texto da terceira parte não fala da perseguição dos regimes ateus contra a Igreja, mas, na interpretação lida pelo cardeal Angelo Sodano em Maio de 2000, em Fátima, em nome do Papa João Paulo II, essa era a interpretação correcta dada por Lúcia.
A queda do Muro de Berlim e o fim dos regimes comunistas de Leste, em 1989-90, pareciam, de facto, dar razão à profecia. Mas, imediatamente, se tornou claro de que era muito difícil falar de “conversão” da Rússia apenas por causa do fim do regime comunista. Além de não se ter libertado das teias da corrupção, de governantes autocráticos e de perseguições políticas, a Rússia continua igualmente a ser, para muitos crentes (incluindo cristãos evangélicos ou Testemunhas de Jeová), lugar de perseguição. O último relatório da Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) sobre a liberdade religiosa no mundo (tal como os anteriores), dá conta de vários casos de perseguição e de um clima de intolerância para com as minorias religiosas, incluindo cristãs.

Uma interpretação “razoável”

A terceira parte do segredo, revelada em 2000, foi tomada por João Paulo II como uma profecia do atentado por si sofrido, em plena Praça de São Pedro, a 13 de Maio de 1981, tendo em conta a coincidência da data com a da primeira visão de Fátima. Escrito em Tui, a 3 de Janeiro de 1944, o texto de Lúcia descreve (mantendo de novo a grafia original): “Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fôgo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: ‘algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante’ um Bispo vestido de Branco ‘tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre’. Varios outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.”
Também aqui é fácil ver não só o reflexo das perseguições aos cristãos do tempo dos acontecimentos, como a ideia, então muito difundida, de que o Papa estava “preso” no Vaticano, depois da unificação italiana de 1870, e do fim dos Estados Pontifícios. Os soldados que matam o Papa e as outras pessoas podem ser os soldados de Garibaldi, que lutaram com aqueles objectivos, contra o poder temporal do papado em Itália.
No que se refere à leitura de João Paulo II, o cardeal Ratzinger caracteriza-a apenas como “razoável”, tomando a força da linguagem simbólica: “Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.”
O jesuíta alemão Peter Knauer, professor de Teologia Fundamental, contestava, num depoimento ao Público em Junho de 2000, este tipo de leitura (O texto está também publicado como anexo no livro A Senhora de Maio, Temas e Debates, Lisboa, 2017): “O terceiro segredo de Fátima não corresponde à realidade das coisas. O Papa não morreu como o ‘bispo branco’ na visão. Nada nos impede de dar graças a Deus, como o fazemos por todos os bens da criação, mas isso não significa que seja preciso imaginar uma intervenção sobrenatural. (...) A intervenção sobrenatural de Deus na nossa vida consiste em encher-nos do seu Espírito e não em outras coisas como ‘desviar balas’. A bala não foi ‘desviada’, apenas tomou o caminho que tomou. Se o Papa continuou a viver será por falta de precisão do assassino ou porque este ou o Papa ou os dois se moveram no próprio momento do tiro, o qual é contingente e nada tem de sobrenatural. Senão, porque não foi a bala desviada um pouco mais?”
Se é legítimo que um crente, mesmo que seja o Papa, veja a mão de Deus na sua vida, também se pode perguntar porque não interviria Deus igualmente para resolver questões dramáticas e ultrajantes da dignidade humana como a fome, a miséria, a guerra, os refugiados, a tortura e a prisão arbitrária, a droga ou o desemprego, por exemplo? E também seria legítimo perguntar porque não ver no “bispo vestido de branco” um bispo que, esse sim, foi morto: Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980, enquanto celebrava a eucaristia.

Tocar Deus em Fátima


Peregrinos em Fátima (Foto de Alfredo Cunha 
no livro Enquanto Houver Portuguesesreproduzida daqui

Muitos destes argumentos foram já, a seu tempo, tomados por algumas vozes críticas que, a partir da Teologia Fundamental, apontaram incoerências, contradições ou outros erros nas narrativas dos acontecimentos, remetendo para o papel da linguagem simbólica e o contexto histórico em que os acontecimentos se verificam. Por coincidência, várias das mais importantes vozes são de padres jesuítas: desde Karl Rahner, que dedicou ao tema das visões e profecias uma das suas obras (ver Karl Rhaner, Visionen und Prophezeiungen. Zur Mystik und Transzendenzerfahrung, Herder, 1989, uma reedição do texto publicado originalmente em 1958), até ao belga Edouard Dhanis, passando pelo espanhol Carlos María Staehlin, o suíço Otto Karrer, o alemão Bernward Brenninkmeyer e o norte-americano Robert Graham. Em Portugal, também houve vozes críticas, entre as quais se inclui a do padre dominicano João Oliveira Faria, que publicou duas importantes obras sobre o tema.
O que se passou é que obras consistentes como as de Rahner, Staehlin ou Dhanis (vários textos deste último, aliás, motivaram um debate intenso nas páginas da Brotéria, nas décadas de 1950-60) só indirectamente chegaram a Portugal, através de artigos que refutavam os seus argumentos. Por isso, a reflexão teológica sobre as narrativas de Fátima e a construção do fenómeno ao longo destas décadas, nunca foi muito abundante em Portugal. A este facto, também não será estranha a ditadura a que o país esteve sujeito e que, além de castigar a divergência política, tão pouco permitia muitos desvios em relação ao discurso oficial da hierarquia católica.

Para lá da teologia, resta a questão antropológica. Se, por absurdo, o Papa e os bispos dissessem, agora, que não queriam mais ter nada a ver com Fátima, é de imaginar que milhões de pessoas continuariam a ir todos os anos ao santuário. Porque, para muitos dos que ali acorrem, Fátima é uma expressão tangível da presença de Deus nas suas vidas, nas suas dores e alegrias, é a possibilidade de tocar o divino. É, na fórmula feliz consagrada por frei Bento Domingues no estudo sobre A Religião dos Portugueses, o “cais” dos portugueses (ver Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Figueirinhas, Porto; o texto está há muito esgotado, mas a entrevista de frei Bento publicada no livro A Senhora de Maio retoma vários dos seus argumentos). Ou, como escrevia o cardeal Ratzinger em Junho de 2000, a expressão do “coração aberto a Deus”.

Sem comentários: