Depois de Maio, podemos voltar a
parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar
informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora
aprofundar.
Neste mês, trago aqui um texto que
publiquei no número de Maio/Junho da revista Brotéria, onde procuro analisar o Comentário Teológico sobre o “segredo de
Fátima”, publicado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, enquanto prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, em Junho de 2000. Este é o terceiro trabalho
da série e que incluirá mais dois textos, nos dias 13 de Setembro e 13 de
Outubro, além de outros dois sobre a figura de Maria, a publicar no próximo dia
15.
FÁTIMA: SEGREDOS, CONTEXTOS E LINGUAGENS
A afirmação do então cardeal
Joseph Ratzinger é uma das que marca o Comentário
Teológico acerca do “segredo de Fátima”: “A conclusão do «segredo» lembra
imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva
de antigas intuições de fé”, escrevia, em Junho de 2000, o futuro Papa Bento
XVI (2005-2013).
A linguagem do segredo e a
linguagem relacionada com a experiência católica e crente da época em que se
dão os acontecimentos de Fátima, e dos seus desenvolvimentos posteriores,
ajudam a entender muito do que foi a construção do fenómeno ao longo deste
século. Fátima surge num contexto religioso e político determinado e
desenvolve-se, depois, também em relação com a espiritualidade e os
acontecimentos políticos das últimas décadas.
Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI
O texto do Comentário Teológico (que pode ser lido aqui, onde também se pode encontrar o texto da terceira parte do segredo escrita por Lúcia e o relato da conversa do então arcebispo Tarcisio Bertone com a irmã Lúcia e outros documentos relativos ao “segredo”)
pode ser lido como um olhar crítico do fenómeno tradicionalmente designado como
“aparições” – que, claramente, para Ratzinger, não deve ser designado como tal.
O texto aponta para caminhos diferentes dos da linguagem mais tradicional usada
em relação a Fátima, embora o faça através de uma proposta positiva, que tenta
retirar da mensagem o que de melhor nela se pode ler: a proximidade de Deus
através da ideia do coração imaculado e da atenção maternal de Maria de Nazaré;
o apelo à conversão permanente ao evangelho de Jesus; a centralidade do
objectivo de “crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade”, pois
“tudo o mais pretendia apenas levar a isso”; e “a importância da liberdade do
homem”, orientando-a “numa direcção positiva” e mobilizando “as forças da
mudança em bem”.
Esse olhar positivo, que pretende
confirmar a integração da mensagem de Fátima na mensagem evangélica mais
autêntica, pode perceber-se, por exemplo, quando o futuro Papa Bento XVI
escreve que o “triunfo do Imaculado Coração de Maria”, de que fala o texto do
segredo, significa que aquele “Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação
de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie”. Ou
ainda quando refere as palavras-chave da primeira e segunda partes do “segredo”
(a frase “salvar as almas”) e a da terceira parte (“o tríplice grito:
‘Penitência, penitência, penitência!’”), o que o leva a afirmar: “Volta-nos ao
pensamento o início do Evangelho: ‘Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.’
Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da
conversão, da fé.”
Paz – presença e ausência
Estranhamente, o Comentário do cardeal Ratzinger deixa de
lado a questão da paz, que é outro tema central da mensagem e da prática
pastoral de Fátima, bem como da adesão das populações. Aliás, essa ideia vem
sendo sublinhada desde há décadas pelos responsáveis do santuário, por
estudiosos do fenómeno, bispos e papas.
Quando veio a Fátima, em 1967, o
Papa Paulo VI anunciou a visita dizendo que viria, como peregrino, para invocar a intercessão da
mãe de Jesus “a favor da paz da Igreja e do mundo”. E, na homilia que
pronunciou no santuário, sublinhava esse objectivo: “O mundo, a paz do mundo”,
bem como o desejo de “paz interior” para a Igreja. Em 2010, o próprio Bento XVI
sublinharia, na sua homilia em Fátima, que os videntes “fizeram da sua vida
uma doação a Deus e uma partilha com os outros por amor de Deus” e que “só com
este amor de fraternidade e partilha construiremos a civilização do Amor e da
Paz”.
O tema da paz em Fátima está
presente em Fátima desde o início e atravessa as décadas: nos primeiros acontecimentos,
Lúcia, por vezes pressionada pelas pessoas que acorrem, quer saber se a guerra
está para acabar ou se os jovens vão regressar. Muitos jovens portugueses, que
tinham sido mobilizados a partir de 1916, estavam já nas frentes de batalha, na
Flandres ou em França. E muitos já tinham perecido no campo de batalha.
Soldados portugueses partindo para a frente de batalha
(foto reproduzida daqui)
A guerra, que a maior parte da
população não quereria, tornou-se, assim, mais um factor de descontentamento de
uma parte importante do país para com o governo republicano. E esse descontentamento
manifesta-se também em Fátima, nas perguntas do povo que não queria perder os
seu jovens. A atitude de afrontamento do poder, desta vez mais passiva,
repetir-se-ia mais tarde, entre 1961-74, em relação à guerra colonial, com
mulheres, mães ou soldados a passarem por Fátima pedindo para sobreviver às
operações em Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, ou agradecendo o facto de
regressarem vivos. Como diz o historiador Bruno Cardoso Reis, as populações
católicas estavam mais preocupadas “com a salvação dos seus entes queridos” do
que “com a salvação do Império” (Ver texto sobre Fátima, a guerra e a
paz, no Expresso de 6 de Maio de
2017).
A fé e a revelação pública; o
“auxílio” das revelações privadas
O Comentário
começa por relativizar o conteúdo do próprio texto do segredo, dizendo o que
ali se pode ler: “Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro
não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar,
representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil
decifração. É isto o que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à
humanidade num tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior
de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente
assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a
visão, o que pensar dela?”
Não há qualquer referência ao
fenómeno das visões em si que, claramente, acontecem em situações, ambientes ou
culturas predispostas a tal. Mas, em várias das alusões que faz, o texto do
cardeal Ratzinger deixa implícita essa ideia, ao invocar as diversas fontes de
inspiração que podem ter levado Lúcia a escrever o que escreveu.
O texto tem uma estrutura muito simples. O então prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé começa por aprofundar a diferença entre
revelação pública e revelações privadas, a partir do lugar teológico de ambas e
sublinhando que entre elas há “uma diferença essencial, e não apenas de
grau”: revelação pública “designa a acção reveladora de Deus que se destina à
humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o
Antigo e o Novo Testamento”.
A revelação pública designa o modo
como “Deus se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de
Ele mesmo se tornar homem, para atrair e reunir em si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo”. Conclui o texto que, por isso, a
revelação não é feita “de comunicações intelectuais, mas de um processo vital
em que Deus Se aproxima do homem”. Neste sentido, a “única revelação pública”
exige a adesão da fé.
Já a revelação privada é apenas
“um auxílio” à fé e é credível apenas na medida em que “faz apelo à única
revelação pública”. Sendo revelação privada, não exige qualquer adesão de fé
“nem isso é possível”. É uma ajuda oferecida, “mas não é obrigatório fazer uso
dela” e o único critério para medir o seu valor é “a sua orientação para o
próprio Cristo”.
Fica claro, assim, que apesar de
os últimos papas confirmarem a sua adesão à narrativa de Fátima, a fé cristã e
católica não implica acreditar que Nossa Senhora apareceu em cima de uma
azinheira e foi vista pelas crianças.
Nas bodas de Caná, Maria diz
“façam o que ele [Jesus] vos disser”. E, nas poucas vezes em que é citada nos
Evangelhos, a sua figura é de quem remete para o centro da mensagem do seu
Filho e se coloca à sua disposição (como quando está junto da Cruz). Seria,
assim, estranho que ela se manifestasse para pedir a construção de dois
“andorezinhos” ou de uma capelinha, conforme os relatos ingénuos das primeiras
visões. Ou que se limitasse a pedir devoções, ainda que sob a forma do Coração
Imaculado de Maria, ou orações simples como o rosário – em ambos os casos
formas concretas de devoção historicamente situadas no tempo.
“Não se trata de algo físico”
A segunda parte do Comentário Teológico trata da estrutura
antropológica e psicológica das aparições. Ratzinger recorda que a antropologia
teológica distingue “três formas de percepção ou «visão»: a visão pelos
sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a
visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis)”. E, num tom pedagógico, acrescenta: “É claro que, nas
visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da percepção externa normal dos
sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço
circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa.”
Não será por acaso que o cardeal
dá o exemplo da árvore: sabendo que a narrativa de Fátima coloca Nossa Senhora
a “aparecer” em cima de uma azinheira, o que o futuro Bento XVI está a afirmar
é que a “aparição” vista pelos videntes não podia ser vista como a árvore em
que eles a viam. Não se tratava de algo físico, não estava lá, no espaço
circundante, como a árvore sobre a qual eles a viam. Onde estava então? Na
“visão interior”, como explica a seguir: a visão não era captada “por todos os
presentes, mas apenas pelos «videntes».”
Esta visão não era física, mas tão
pouco era uma visão “intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da
mística”. E concluía: “Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção
interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à
manifestação externa sensível.” Por isso, não pode ser apelidada de “fantasia,
que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva”, mas significa antes
que “a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do
sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos:
uma visão através dos «sentidos internos». E concretiza de novo: “Trata-se de
verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível
que nos é habitual.”
Esta mesma perspectiva já tinha
sido referida pelo cardeal Angelo Sodano quando apresentara, a 13 de Maio de
2000, o resumo do segredo e da sua interpretação: “A chave de leitura do texto
só pode ser de carácter simbólico”, disse o então secretário de Estado do
Vaticano. E é retomada igualmente no recente livro de D. Carlos Azevedo: “A
ausência de dimensão simbólica para ler a vida, interpretar a realidade,
evidencia-se nos nossos dias”, escreve, acrescentando que se “as palavras sobre
Deus são sempre humanas, quanto mais as visões dos pastorinhos devem ser
sujeitas a uma releitura”. (ver Carlos A. Moreira Azevedo, Fátima – Das
Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã, Esfera dos Livros, Lisboa, 2017).
Uma visão que não é uma
“fotografia” do Além
É na terceira parte do seu comentário
– que intitula como “Uma tentativa de interpretação do ‘segredo’ de Fátima –
que Ratzinger se aproxima do texto de Lúcia, no sentido de o explicar
teologicamente e de propor o modo como ele pode ser tomado para a experiência
de fé. E que, quase a concluir, se refere aos livros de piedade que poderiam
ter influenciado a visão de Lúcia.
Os três videntes de Fátima: Jacinta, Lúcia e Francisco
(foto reproduzida daqui)
Quando explicava a visão interior,
aliás, o futuro Bento XVI escreve que ela se manifesta “com as limitações que
lhe são próprias”. Já na visão exterior há uma carga de subjectividade, pois
nunca “vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos
sentidos”. Mais ainda na visão interior, em que o vidente “vê segundo as
próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e
conhecimento que lhe são acessíveis”, num processo de tradução mais acentuado,
em que o sujeito desempenha “uma parte essencial na formação da imagem daquilo
que aparece.”
Desse modo, “tais visões não são
em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também
as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende”. E se isso é claro
nas visões dos santos, “vale também para as visões dos pastorinhos de Fátima”.
As explicações do texto do cardeal
Ratzinger obrigam a procurar, no contexto da época, os elementos que compuseram
a “fotografia” dada pelos videntes – e, de forma muito determinante, por Lúcia,
que desempenha o papel principal quer em 1917, quer na construção posterior do
fenómeno.
O “segredo” é revelado na visão de
13 de Julho. Escrito em três partes, fala “da vista do inferno”, da devoção ao
Imaculado Coração de Maria e do “bispo vestido de branco” que é morto pelos
soldados. As duas primeiras, escritas em 1941, eram já conhecidas. A terceira
parte, sobre a qual se levantaram muitas especulações, foi escrita em 1944 e
revelada apenas no ano 2000, por ocasião da última visita do Papa João Paulo II
ao santuário.
No texto sobre o inferno, Lúcia
descreve (mantêm-se aqui a
ortografia do texto, mesmo com alguns erros, reproduzida no documento oficial
antes citado): “Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fôgo que parcia
estar debaixo da terra. Mergulhados em êsse fôgo os demónios e as almas, como
se fossem brasas transparentes e negras, ou bronziadas com forma humana,
que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam,
juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair
das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e
gemidos de dôr e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os
demónios destinguiam-se por formas horríveis e ascrosas de animais espantosos e
desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças
à nossa bôa Mãe do Céu; que antes nos tinha prevenido com a promeça de nos
levar para o Céu (na primeira aparição) se assim não fosse, creio que teríamos
morrido de susto e pavor.”
Na época em que se dão os
acontecimentos, um livro que circulava em Portugal, com o título Missão Abreviada, descrevia de modo
muito semelhante a visão do inferno. Espécie de manual para as pregações
populares do clero, o seu autor, padre Manoel do Couto (natural de Telões, Vila
Pouca de Aguiar), tratava temas como a vocação de Deus, o fim último do homem,
o pecado, a morte, o juízo universal, a misericórdia e o amor de Deus, a
penitência, os sacramentos, a vida e a paixão de Jesus... Ao mesmo tempo,
explicava quais os “assuntos da maior importância”: a devoção ao Sagrado
Coração de Jesus, o cristianismo como “religião verdadeira” e a Igreja Católica
como única Igreja verdadeira no cristianismo, as devoções e formas de rezar, as
“mezinhices”, a impureza, e os comportamentos perante questões como os luxos e
as modas, os bailes e os jogos, a usura e o roubo, a embriaguez ou os
divertimentos do Entrudo...
Na meditação 12ª da primeira
parte, “Sobre o Inferno”, o autor escrevia: “Considera, pecador, que o inferno
é um lugar no centro da terra; é uma caverna profundíssima cheia de escuridão,
de tristeza e horror; é uma caverna cheia de labaredas de fogo e de nuvens de
espesso fumo. Lá são atormentados os pecadores na companhia dos demónios; lá
estão bramindo e uivando como cães danados, proferindo terríveis blasfémias
contra Deus. Lá são atormentados os pecadores com a pena de dano (...) Além
disto, os pecadores lá no inferno também sofrem a pena dos sentidos, isto é,
também são atormentados por um fogo o mais devorante...”
Ao referir as visões de Fátima
como visões interiores, o texto do cardeal Ratzinger diz que essa
característica é “bem evidente” no caso da visão da inferno. E torna-se claro
que a coincidência de linguagem entre o texto da Missão Abreviada e do escrito de Lúcia traduz “as limitações” e as
“capacidades concretas” de que o documento falava. Seria difícil, aliás,
articular uma tal visão do inferno, tão material e realista, com a afirmação de
João Paulo II, em Julho de 1999, segundo a qual o inferno não é um lugar físico
mas se relaciona com a ausência de Deus...
A conversão da Rússia e as
perseguições aos cristãos
Na segunda parte do segredo, Lúcia
escreve que, para salvar as almas da condenação eterna, Deus queria estabelecer
no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. E acrescentava a visão (de
novo, segundo a ortografia própria do documento): “Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão
muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a
Deus, no reinado de Pio XI começará outra peor [Para Lúcia, o início da II Guerra Mundial foi em 1938, quando a
Alemanha anexou a Áustria e o Papa era ainda Pio XI]. Quando virdes uma
noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus
vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e
de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração
da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros
sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se
não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à
Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer, várias
nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo
Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será consedido ao mundo
algum tempo de paz.”
Quando começou a referir-se à Rússia, em 1929
e, sobretudo, a partir de 1938 (antes disso, há apenas alusões pouco claras,
que Lúcia explicará depois com a sua ignorância acerca do nome), a vidente
vivia ainda em Espanha, onde a terrível Guerra Civil incluiu os assassinatos de
muitos cristãos e o encerramento de mosteiros; ao mesmo tempo, os cristãos
ortodoxos da então União Soviética viviam tempos de duras perseguições: durante
a década de 1930, muitos foram presos, torturados ou mortos, milhares de
igrejas foram encerradas e as escolas passaram a ensinar o ateísmo e o desprezo
da religião.
Nesse clima político – a que
também não é alheio o conflito instaurado pela I República em relação ao
catolicismo, em Portugal, e a sucessiva pacificação da questão trazida pelo
Estado Novo –, era natural que Lúcia, também sob a influência do cónego Manuel
Formigão, visse no comunismo o inimigo dos crentes. Ao invés, a vidente nunca
se referiria à ascensão do nazismo que, muito mais tarde, a Santa Sé iria
caracterizar como uma “ideologia pagã” (Ver o ponto 5.4. do texto Memória e Reconciliação – A Igreja e as Culpas do Passado, publicado em Março de 2000
pela Comissão Teológica Internacional, presidida pelo cardeal Ratzinger)
e que, além de ter planeado a “solução final” para os judeus, provocou, com a
Guerra e o Holocausto, a maior tragédia da história da humanidade.
Foi também essa mentalidade
anticomunista dominante (contextualizada, como se viu, por grandes perseguições
e ataques a cristãos) que levaria Lúcia, em Novembro de 1945, a escrever uma
carta ao cardeal Gonçalves Cerejeira, na qual se referia a Salazar como o
“escolhido por Deus” para governar Portugal. (Um estudo do investigador José Barreto, do Instituto de
Ciências Sociais, sobre esta carta de Lúcia, está publicado como anexo no livro
que publiquei recentemente, em co-autoria com Rui Paulo da Cruz: A Senhora de Maio, ed. Temas e Debates,
Lisboa, 2017)
A Colina das Cruzes, na Lituânia,
símbolo das perseguições aos cristãos na União Soviética
(foto reproduzida daqui)
O tema da Rússia, se apareceu
tardiamente nas narrativas do fenómeno, também praticamente desapareceu da
linguagem mais oficial, ainda que tivesse sido referido na apresentação do
segredo. O texto da terceira parte não fala da perseguição dos regimes ateus
contra a Igreja, mas, na interpretação lida pelo cardeal Angelo Sodano em Maio
de 2000, em Fátima, em nome do Papa João Paulo II, essa era a interpretação
correcta dada por Lúcia.
A queda do Muro de Berlim e o fim
dos regimes comunistas de Leste, em 1989-90, pareciam, de facto, dar razão à
profecia. Mas, imediatamente, se tornou claro de que era muito difícil falar de
“conversão” da Rússia apenas por causa do fim do regime comunista. Além de não
se ter libertado das teias da corrupção, de governantes autocráticos e de
perseguições políticas, a Rússia continua igualmente a ser, para muitos crentes
(incluindo cristãos evangélicos ou Testemunhas de Jeová), lugar de perseguição.
O último relatório da Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) sobre a liberdade
religiosa no mundo (tal como os anteriores), dá conta de vários casos de perseguição
e de um clima de intolerância para com as minorias religiosas, incluindo
cristãs.
Uma interpretação “razoável”
A terceira parte do segredo,
revelada em 2000, foi tomada por João Paulo II como uma profecia do atentado
por si sofrido, em plena Praça de São Pedro, a 13 de Maio de 1981, tendo em
conta a coincidência da data com a da primeira visão de Fátima. Escrito em Tui,
a 3 de Janeiro de 1944, o texto de Lúcia descreve (mantendo de novo a grafia
original): “Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de
Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fôgo em a mão
esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas
apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora
ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte
disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus:
‘algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por
diante’ um Bispo vestido de Branco ‘tivemos o pressentimento de que era o Santo
Padre’. Varios outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma
escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos
como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí,
atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar
vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que
encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés
da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios
tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos
Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e
senhoras de varias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois
Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos
Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.”
Também aqui é fácil ver não só o
reflexo das perseguições aos cristãos do tempo dos acontecimentos, como a
ideia, então muito difundida, de que o Papa estava “preso” no Vaticano, depois
da unificação italiana de 1870, e do fim dos Estados Pontifícios. Os soldados
que matam o Papa e as outras pessoas podem ser os soldados de Garibaldi, que
lutaram com aqueles objectivos, contra o poder temporal do papado em Itália.
No que se refere à leitura de João
Paulo II, o cardeal Ratzinger caracteriza-a apenas como “razoável”, tomando a
força da linguagem simbólica: “Na Via Sacra deste século, tem um
papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem
dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao
Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por
avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é
morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando,
depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira
parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito
perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as
palavras seguintes: «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o
Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de
ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez
mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que
podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as
balas, a fé mais poderosa que os exércitos.”
O jesuíta alemão Peter Knauer,
professor de Teologia Fundamental, contestava, num depoimento ao Público em Junho de 2000, este tipo de
leitura (O texto está também
publicado como anexo no livro A Senhora
de Maio, Temas e Debates, Lisboa, 2017): “O terceiro segredo de Fátima
não corresponde à realidade das coisas. O Papa não morreu como o ‘bispo branco’
na visão. Nada nos impede de dar graças a Deus, como o fazemos por todos os
bens da criação, mas isso não significa que seja preciso imaginar uma
intervenção sobrenatural. (...) A intervenção sobrenatural de Deus na nossa
vida consiste em encher-nos do seu Espírito e não em outras coisas como
‘desviar balas’. A bala não foi ‘desviada’, apenas tomou o caminho que tomou.
Se o Papa continuou a viver será por falta de precisão do assassino ou porque
este ou o Papa ou os dois se moveram no próprio momento do tiro, o qual é
contingente e nada tem de sobrenatural. Senão, porque não foi a bala desviada
um pouco mais?”
Se é legítimo que um crente, mesmo
que seja o Papa, veja a mão de Deus na sua vida, também se pode perguntar
porque não interviria Deus igualmente para resolver questões dramáticas e ultrajantes da dignidade humana como a
fome, a miséria, a guerra, os refugiados, a tortura e a prisão
arbitrária, a droga ou o desemprego,
por exemplo? E também seria legítimo perguntar porque não ver no “bispo vestido
de branco” um bispo que, esse sim, foi morto: Óscar Romero, arcebispo de San
Salvador, assassinado em 1980, enquanto celebrava a eucaristia.
Tocar Deus em Fátima
Muitos destes argumentos foram já, a seu tempo, tomados por algumas
vozes críticas que, a partir da Teologia Fundamental, apontaram incoerências,
contradições ou outros erros nas narrativas dos acontecimentos, remetendo para
o papel da linguagem simbólica e o contexto histórico em que os acontecimentos
se verificam. Por coincidência, várias das mais importantes vozes são de padres
jesuítas: desde Karl Rahner, que dedicou ao tema das visões e profecias uma das
suas obras (ver Karl Rhaner, Visionen und Prophezeiungen. Zur Mystik und
Transzendenzerfahrung, Herder, 1989, uma reedição do texto publicado
originalmente em 1958), até ao belga Edouard Dhanis, passando pelo espanhol Carlos María
Staehlin, o suíço Otto Karrer, o alemão Bernward Brenninkmeyer e o
norte-americano Robert Graham. Em Portugal, também houve vozes críticas, entre
as quais se inclui a do padre dominicano João Oliveira Faria, que publicou duas
importantes obras sobre o tema.
O que se passou é que obras consistentes como as de Rahner,
Staehlin ou Dhanis (vários textos deste último, aliás, motivaram um debate
intenso nas páginas da Brotéria, nas
décadas de 1950-60) só indirectamente chegaram a Portugal, através de artigos
que refutavam os seus argumentos. Por isso, a reflexão teológica sobre as
narrativas de Fátima e a construção do fenómeno ao longo destas décadas, nunca
foi muito abundante em Portugal. A este facto, também não será estranha a
ditadura a que o país esteve sujeito e que, além de castigar a divergência
política, tão pouco permitia muitos desvios em relação ao discurso oficial da
hierarquia católica.
Para lá da teologia, resta a questão antropológica. Se, por
absurdo, o Papa e os bispos dissessem, agora, que não queriam mais ter nada a
ver com Fátima, é de imaginar que milhões de pessoas continuariam a ir todos os
anos ao santuário. Porque, para muitos dos que ali acorrem, Fátima é uma
expressão tangível da presença de Deus nas suas vidas, nas suas dores e
alegrias, é a possibilidade de tocar o divino. É, na fórmula feliz
consagrada por frei Bento Domingues no estudo sobre A Religião dos Portugueses, o “cais” dos portugueses (ver Bento Domingues, A Religião dos Portugueses,
Figueirinhas, Porto; o texto está há muito esgotado, mas a entrevista de frei
Bento publicada no livro A Senhora de
Maio retoma vários dos seus argumentos). Ou, como escrevia o cardeal Ratzinger em Junho de 2000, a
expressão do “coração aberto a Deus”.
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