Kieran Tapsell, advogado público aposentado e autor de “Potiphar’s Wife: The Vatican’s Secret and Child Sexual Abuse”.
[Artigo publicado no National Catholic Reporter, de 28-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa e foi publicada na Newsletter o Instituto Humanitas da Unisinos].
«O editorial do National Catholic
Reporter, intitulado “A Igreja mudou em relação aos abusos sexuais, mas não o
suficiente”, corretamente identifica a cultura clerical essencialmente
masculina como um fator fundamental nos escândalos de abuso sexual, mas erra ao
não apontar para o fracasso do Papa Francisco em mudar partes doDireito
Canônico que incorporam tal cultura.
O Papa Francisco pode se ver impedido pela teologia no tocante a ter mulheres ordenadas ao sacerdócio. Mas os Cânones 478 e 1420 exigem que os vigários gerais, vigários episcopais e judiciais também sejam sacerdotes. Estes, portanto, não podem ser mulheres, exceto com uma autorização concedida por homens em Roma. Uma regra assim pode ser alterada com o simples uso de uma caneta.
O Papa Francisco pode se ver impedido pela teologia no tocante a ter mulheres ordenadas ao sacerdócio. Mas os Cânones 478 e 1420 exigem que os vigários gerais, vigários episcopais e judiciais também sejam sacerdotes. Estes, portanto, não podem ser mulheres, exceto com uma autorização concedida por homens em Roma. Uma regra assim pode ser alterada com o simples uso de uma caneta.
Um exemplo mais grave do clericalismo é a imposição, no Direito Canônico,
do segredo pontifício contra todas as acusações e informações relativas a
abusos sexuais infantis cometidos pelo clero. A única exceção que permitiria
reportar-se às autoridades civis foi dada aos EUA em 2002 e ao resto do mundo
em 2010, e limitou-se a valer onde existem leis civis aplicáveis que exigem que
este tipo de informação seja repassado. Pouquíssimas jurisdições têm leis
abrangentes nesse sentido. Nos Estados Unidos, somente a metade dos
estados obriga que o clero informe os casos à polícia.
As tentativas de Francisco em responsabilizar os bispos significaram muito pouco,
pois a capacidade dele de assim fazer está limitada pelo Código de Direito
Canônico. Os três bispos que ele forçou renunciar – Dom John Nienstedt e seu bispo auxiliar, Dom Lee Piché, de
St. Paul-Minneapolis, e Dom Robert Finn, de Kansas City-St. Joseph, no estado do
Missouri – violavam o Direito Canônico em vigor nos EUA desde 2002, o qual
exigia que obedecessem às leis civis de informar à polícia as acusações de
abuso.
Desde 1996, os bispos irlandeses,
ingleses, australianos e americanos quiseram que a obrigação de relatar às
autoridades civis fosse regra no Direito Canônico, independentemente de haver,
ou não, a obrigação segundo o direito civil local. A Santa Sé tem reiteradamente
rejeitado a ideia.
Em 2012, a Conferência dos Bispos
Católicos da Austrália enviou ao Vaticano para aprovação o seu protocolo
contra abusos sexuais, intitulado “Toward Healing 2010”. O texto exigia que fosse obrigatório
relatar às autoridades civis sempre, em todos os casos. Em 22-02-2013, a Congregação
para a Doutrina da Fé informou a conferência que tal obrigação poderia se
aplicar a todos os demais na Igreja, exceto aos clérigos.
Em 2014, a Conferência Episcopal
Italiana (da qual Francisco é o bispo mais importante, embora
não seja o seu presidente) anunciou que seus bispos não iriam relatar à polícia
as acusações de abuso sexual clerical porque as leis italianas não os
exigiam – postura coerente com o Direito Canônico. Em 2015, a Conferência
dos Bispos da Polônia fez o mesmo anúncio.
Em 2014, duas comissões das Nações
Unidas – sobre os direitos da criança e contra a tortura – solicitaram a Francisco que abolisse o segredo
pontifício para permitir que se relatassem às autoridades civis os
casos de abuso sexual infantil sempre que ocorrerem e que tornasse esta prática
um elemento obrigatório segundo o Direito Canônico. Não era outra coisa
senão um pedido para que a Igreja voltasse à prática centenária que existia
antes de 1917. Em setembro de 2014, o papa recusou o pedido, com a desculpa
extraordinária segundo a qual tornar obrigatória a prática de relatar casos de
abuso dentro do Direito Canônico iria interferir na soberania dos Estados
independentes. O Direito Canônico interfere em tal soberania tanto quanto
interferem as regras do futebol.
Em 15-02-2016, o Cardeal Sean O’Malley, da Arquidiocese de Boston, presidente da
Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, afirmou que os bispos têm uma
obrigação ética e moral de relatar às autoridades civis todas as acusações de
abuso sexual clerical, independentemente se há ou não leis civis nesse sentido.
A sua afirmação era um bom indicativo de que o Direito Canônico seria
alterado. Em 06-12-2016, a mesma comissão publicou as suas orientações para as
conferências episcopais nacionais. A declaração de O’Malley não foi
incluída.
Francisco vem dizendo que ele e seu
antecessor, o Papa Bento, adotaram uma política de “tolerância zero” em casos de pedofilia. No contexto
profissional, tolerância zero significa um desligamento permanente. No entanto,
os números que Francisco apresentou às Nações Unidas em 2014 mostravam que
menos de 25% de todos os padres acusados de pedofilia foram desligados da
Igreja. Temos aqui uma tolerância de 75%, não de zero por cento.
Em 2017, Dom Mark Coleridge, de Brisbane, na Austrália, contou a
uma Comissão Real que o Vaticano concordara em desligar apenas um dos
6 padres condenados por crimes sexuais. Isto representa uma tolerância de 83%.
Pode-se expressar melhor o desempenho
de Francisco pegando o exemplo de Marie Collins, que renunciou da Pontifícia Comissão para a
Tutela dos Menores em 1º de março deste ano:
“Quando aceitei a nomeação para a
Comissão em 2014, disse publicamente que se achasse que o que ocorria atrás de
portas fechadas estivesse em conflito com o que estava sendo dito ao público,
eu não permaneceria. Esse momento chegou. Sinto que não tenho escolha senão
renunciar caso queira manter a minha integridade”.»
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