segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A “aventura irrealizável” de traduzir a Bíblia para português corrente

Augusto de Almeida Esperança (1928-2018), In memoriam


Augusto Esperança, em Outubro de 2004, na Igreja Inglesa, em Lisboa, 
na celebração dos 200 anos das Sociedades Bíblicas; ao lado, a viúva, Felícia Fiandor Esperança

No início, parecia uma aventura “irrealizável”: Portugal tornava-se, em 1972, o sexto ou sétimo país, no mundo inteiro, a fazer uma tradução da Bíblia, directamente dos originais, com uma equipa interconfessional. “Não tínhamos dinheiro nem tínhamos tradutores, especialmente no meio evangélico. Tive que os escolher a dedo depois de muita ponderação e oração”, recordava, em 13 de Julho de 2002, o pastor Augusto de Almeida Esperança, da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal (IEPP), que morreu ontem, domingo, dia 5 de Agosto, em Lisboa. O funeral será esta quarta-feira, 8 de Agosto, às 10h, saindo da Igreja Presbiteriana, na Rua Tomás da Anunciação, onde o corpo ficará a partir das 21h desta terça-feira, dia 7. 
Na mesma evocação, Augusto Esperança recordava algumas peripécias: “Fizemos o primeiro seminário, ou curso de tradução, durante uma semana no Centro Ecuménico [Reconciliação] da Igreja Presbiteriana, em Buarcos [Figueira da Foz]. (...) Arrisquei convidar biblistas católicos mesmo sem os conhecer, mas de quem tive as melhores referências. Foram eles o Dr. Carreira das Neves e o Dr. António Tavares, escolha de que nunca me arrependi. (O Dr. José Ramos entrou mais tarde para a equipa).”
Desses convites, ficaram amizades para a vida. Augusto Esperança recordava ainda que esse curso especializado teve a orientação dos melhores biblistas das Sociedades Bíblicas Unidas. Entre eles, o Dr. Bratcher, Dr. Wonderly, Dr. Eugene Nida e Dr.Tippox. Mais tarde, tivemos como consultores o Dr. Ellingworth, o Dr. Jan de Waard,o Dr. Mendoza e o Dr. Jean-Claude Margot. Do nosso meio protestante português tínhamos o Dr. Soares de Carvalho, o Rev. Pinto Ribeiro, o bispo Emílio de Carvalho de Angola e o Dr. Almeida Penicela, de Moçambique. (O pastor Pedro Cardoso e o Dr. Alexandre Júnior que colaboraram na tradução experimental de Marcos não estiveram presentes. Aliás os dois não puderam continuar, por motivos particulares).”
Esta iniciativa de Augusto Esperança à frente da Sociedade Bíblica de Portugal (SBP) acontecia três anos depois de ele ter assumido responsabilidades na agência da Sociedade Bíblica, imprimindo a esta instituição uma dinâmica nunca vista, como recorda Timóteo Cavaco, que lhe sucedeu enquanto secretário-geral da instituição. É difícil resumir quase três décadas de trabalho, acrescenta Timóteo Cavaco, mas o pastor Esperança reestruturou completamente o trabalho de divulgação da Bíblia em Portugal: depois de ter sido o primeiro português a exercer funções de liderança na agência portuguesa da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (estabelecida em 1864), deve-se a ele a transferência, para Portugal, da impressão das edições bíblicas, a compra de novas instalações para a sede e livraria da SBP, e a autonomização da associação em relação à casa-mãe de Londres, passando a haver uma instituição de carácter interconfessional, a Sociedade Bíblica de Portugal (1989), que congregava cidadãos nacionais de diferentes proveniências e experiências eclesiais.

“Envolvimento e empenhamento social”

Nascido a 8 de Fevereiro de 1928 em Pias (Serpa), Augusto de Almeida Esperança foi cedo viver para o Carrascal (Sintra), onde se converteu a Cristo numa igreja protestante. Depois de terminar o curso liceal, entrou para o Seminário Evangélico de Teologia (Presbiteriano), em Carcavelos, onde estudou teologia. Viria a completar esses estudos com a licenciatura em Estrasburgo (França), entre Novembro de 1952 e Agosto de 1953. Mais tarde, já pastor da Igreja Presbiteriana em Lisboa, Esperança fez uma pós-graduação em Teologia, em Boston (EUA, 1965-66).
Antes de completar os estudos teológicos, porém, já Augusto Esperança colocava a sua vocação ao serviço da Igreja. Serviu entre Dezembro de  1950 e Abril de 1951 na Igreja Metodista do Mirante (Porto), no quadro duma solicitação feita pela Igreja Metodista Portuguesa à Junta Presbiteriana de Cooperação. Esteve logo depois, ainda como evangelista, dois meses na Igreja da Figueira da Foz e outros onze meses na Igreja Presbiteriana do Salvador, no Montijo. 
Ordenado pastor em 29 de Outubro de 1952, durante o 1.º Sínodo da IEPP, esteve, depois de completar os estudos em França, ao serviço na Igreja Evangélica Ajudense (Lisboa), na ilha de S. Miguel (Açores) e Figueira da Foz. Eleito moderador do Sínodo da IEPP em 1959, Augusto Esperança foi colocado na Igreja Presbiteriana de Lisboa (Rua Tomás da Anunciação), onde fica até 1969 e onde desenvolve um trabalho pastoral e evangelístico considerado notável.
Teresa Frazão, residente no bairro onde se situa a Igreja Presbiteriana, recorda “o trabalho de envolvimento e empenhamento social” a que ele se dedicou. Mais tarde, a tradução interconfessional da Bíblia seria muito usada por vários grupos em que participou, sendo notório o “grande entusiasmo” de Augusto Esperança no diálogo ecuménico, recorda.
No campo social, Augusto Esperança foi ainda, durante quase trinta anos, representante dum trabalho de diaconia que a Entraide Protestante de l’Église Reformé Suisse manteve em Portugal através da IEPP, e que beneficiou milhares de crianças. 
Presidente da Aliança Evangélica Portuguesa (1967-1969), o pastor presbiteriano promoveu, nessa qualidade, uma importante campanha de evangelização no Pavilhão dos Desportos (actual Pavilhão Carlos Lopes), em Lisboa, vice-presidente da comissão executiva da IEPP (1996-2002), o pastor Esperança trabalhou também como gerente da extinta Clínica de S. Lucas, instituição de saúde de referência na cidade de Lisboa. Era casado com Felícia Fiandor Esperança, com quem teve dois filhos.
Nomeado secretário da agência portuguesa da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira em Portugal, em 1969, deu início às reformas já enunciadas, trabalho que liderou até Setembro de 1997, quando se aposentou e deixou o lugar executivo. 

Biblistas católicos e protestantes à mesma mesa

Com Augusto Esperança, a divulgação da Bíblia deixara, em 1972, de estar centrada nos colportores, uma espécie de vendedores-ambulantes, uma vez que a mesma já não se adequava à estrutura social de então, refere Timóteo Cavaco. Além disso, a impressão das Bíblias passou a ser realizada em gráficas portuguesas com custos muito menores para a produção das edições da SB. Pedra de toque desta reestruturação é a constituição de uma associação nacional de carácter interconfessional em 1989, a Sociedade Bíblica de Portugal, 
Nesse mesmo ano, o projecto da primeira tradução bíblica da responsabilidade da Sociedade Bíblica deu um novo impulso ao trabalho de Augusto Esperança. Aquela que é ainda hoje a única tradução bíblica interconfessional em língua portuguesa e uma das primeiras e ter sido realizada em todo o mundo, foi iniciada “num ambiente fraterno, mas de grande erudição e competência académica”, reunindo à volta da mesma mesa, durante 20 anos, biblistas católicos e protestantes para preparar um texto bíblico em linguagem corrente. Essa edição, recorda Timóteo Cavaco, já alcançou até hoje mais de dois milhões de pessoas, não só em Portugal como em muitos outros países, nomeadamente lusófonos.
 O valor ecuménico desse trabalho foi reconhecido ontem mesmo, na rede social Facebook, pelo padre António Janela, do patriarcado de Lisboa: “Tive a graça de conhecer o Rev. Augusto Esperança e de lhe agradecer a generosa missão de levar a Palavra do Senhor a tantos portugueses, em tempos nada fáceis, mas felizmente ultrapassados.”
Valdo Bertalot, secretário-geral da Sociedade Bíblica de Itália, testemunhava também no Facebook: “É muito triste ouvir estas notícias sobre o Augusto. Ele foi ‘um mestre’ para todos nós! Conheci-o em 1972 na Figueira da Foz! Graças a Deus por tal irmão que nos foi dado!”
 Na mesma rede, Filipe Samuel Nunes, professor e escritor, membro da Igreja Congregacional/Igreja Baptista, dizia que Augusto Esperança era “um homem íntegro e duma ética a toda a prova” e um “pregador excelente: pregava de forma expositiva com ousadia e energia, numa combinação perfeita de doutrina e aplicação à vida cristã”. E o bispo Irineu Cunha, da Igreja Metodista, acrescentava que se poderiam aplicar com toda a justeza a Augusto Esperança as palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a Fé”. 

(Os dados biográficos de Augusto Esperança são adaptados de um texto de David Valente, a quem agradeço, tal como também a Timóteo Cavaco e Teresa Frazão pelos contributos para este texto)

Sem comentários: