Grandeza e miséria do mundo
(...) Cá onde o mal se afina e o bem se dana (...)
Luís de Camões, Os Lusíadas
Há tempos assim, em que a vertigem dos acontecimentos se acelera e nos deixa como que paralisados, perante a iminência de todos os pesadelos. Em que as sequelas de cada acontecimento se multiplicam, de modo a deixar sem nexo à tarde o (sem-)sentido de manhã construído.
Não, não me refiro apenas ao escândalo da Casa Pia e ao avolumar dos sinais inquietantes de que aos submundos da degradação moral se somam os caminhos tortuosos como se faz justiça no nosso país.
Este é, porventura, o caso em que, por episódios sucessivos, fomos todos levados àquele ponto de encruzilhada em que, em lugar de escolher entre a boa e a má saída da floresta, sentimos que ambos os caminhos que se desenham pela frente podem ser perigosos.
Mas, ao lado daquele que é “o caso”, vemos outros, de dimensão maior ou menor, cá dentro e lá fora, todos indiciadores de que haverá que arrepiar caminho.
Quando alguém foge à justiça e muitos “alguens” saúdam essa fuga e agridem quem a contesta; quando alguém se escuda na imunidade parlamentar para não assumir claramente actos praticados; quando alguém invoca a discordância da lei para não acarretar com as consequências de circular quase ao dobro da velocidade permitida; quando alguém, como em Itália, chega a chefe de governo e se ocupa a denegrir a magistratura e a criar mecanismos para passar impune em processos que correm contra si; quando alguém utiliza factos manipulados para convencer o mundo a apoiar uma guerra; quando uma nação que comprovadamente viola os direitos e a dignidade dos seus cidadãos é eleita para presidir à comissão dos direitos humanos e quando essa comissão não se entende, depois, para condenar países, como Cuba, onde esses direitos são atropelados; quando tudo isto acontece não é apenas o caso ou a situação concreta que está em causa, é, antes, uma (des)ordem moral que está em causa. E é também o risco de tocar naquele fio invisível e frágil, mas vital para manter a vida social de pé e a respirar, que é a confiança.
Falta faz a serenidade. Não só a serenidade da mera contenção, freneticamente requerida nos últimos dias, mas a que permita a introspecção pessoal e colectiva.
Ao desconcerto percebido do mundo talvez falte o tempero da multiplicidade de gestos e modos de viver discretos e solidários, que pouco valem no “mercado” das lógicas mediáticas dominantes. Porque o mundo é mais vasto e interessante do que a pintura carregada que diariamente nos fornecem.
(Crónica no DM de amanhã)
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