terça-feira, 24 de junho de 2014

Um debate britânico (e europeu): Qual o lugar dos muçulmanos nas sociedades ocidentais?



Mulheres muçulmanas envoltas em bandeiras britânicas (foto reproduzida daqui)


Quando a participação cívica dos muçulmanos na sociedade civil levanta suspeitas de islamização, o que está em causa: a cidadania  dos muçulmanos ou uma democracia que diferencia cidadanias plenas e condicionais? Que acolhimento das práticas religiosas dos alunos, alimentares e rituais, devem providenciar as escolas públicas? Que reconhecimento da realidade multicultural das sociedades deve ser reflectida nos currículos escolares? Os “valores nacionais” constituem carta de admissão assimilativa ou resultam antes de histórias entrelaçadas forjadas em comum e em aberto? A inclusão política pode avançar sem inclusão sócio-económica efectiva?
Estas são algumas das questões de fundo presentes no debate que, desde há dias, atravessa a sociedade britânica, por causa de uma alegada Operação Cavalo de Tróia islamita para ganhar o controlo das escolas de Birmingham e “islamizar” os currículos escolares, através do envolvimento de pais nas direcções das escolas.
O alegado plano veio a público num artigo do The Sunday Times de 2 de Março, tendo vindo a ganhar maior dimensão como “plano” através de novos artigos incluindo do Telegraph na semana seguinte. (Cronologias sobre o desenvolvimento do caso podem ser encontradas aqui e aqui; uma outra que descreve e interpreta criticamente o que se tem passado pode ser lida aqui).
Apesar de se terem levantado muitas suspeitas sobre a veracidade da própria carta, e portanto, do suposto “plano” , o ministro da Educação, Michael Gove – antigo jornalista, conhecido como um neocon e que depois dos atentados de 7 de Julho de 2005 no Metro de Londres escreveu um livro sobre o perigo da islamização que incluía um capítulo intitulado Cavalo de Tróia (ver este texto sobre a questão– deu ordens à inspecção nacional escolar (Ofsted),  para investigar 21 escolas de Birmingham com maiorias muçulmanas.

Estas escolas tinham sido inspeccionadas há poucos meses e classificadas de excelente [“outstanding”], tendo sido ainda reconhecido que, apesar das dificuldades do contexto sócio-económico em que trabalham, tinham conseguido extraordinário sucesso na melhoria dos resultados dos alunos. Agora, após esta intervenção, várias destas escolas ficam sujeitas a uma imediata intervenção estatal, por alegadamente estarem a falhar na imunização à radicalização do terrorismo e na promoção das políticas de contra-terrorismo.
Numa carta ao The Guardian, destacada em primeira página, várias personalidades, incluindo o antigo encarregado [Chief Education Officer] do Departamento de Educação de Birmingham, sir Tim Brighouse, levantaram sérias dúvidas sobre a politização das inspecções e as consequências de fundo quanto à autonomia e credibilidade da inspecção (ver também aqui). 
O primeiro-ministro, David Cameron, ordenou entretanto uma investigação à origem da carta publicada pelo Times, cujo resultado se aguarda e que será conduzida por um antigo responsável da investigação contra-terrorista.
Nestes dias, o debate ganhou proporções nacionais. A questão da autenticidade da carta passou para segundo plano, passando a discutir-se o problema da promoção dos “valores britânicos” e do modo como os muçulmanos devem ou não acatá-los, enquanto o ministro da Educação insiste na necessidade de os responsáveis das escolas promoverem valores britânicos.
Intervindo num debate sobre os “valores britânicos”  na assembleia geral do Muslim Council of Britain, a 15 de Junho, entretanto alargada a um debate mais amplo através de publicação na Open Democracy, AbdoolKarim Vakil, professor de História Portuguesa e Europeia no  King’s College, de Londres, insistiu na ideia de que, se hoje a sociedade britânica é mais tolerante, justa, livre e igual isso se deve em parte à mobilização e “às lutas das minorias étnicas e religiosas, inclusive dentro da classe trabalhadora, da juventude e dos movimentos de mulheres, para superar o racismo, a xenofobia, a injustiça e a discriminação”, de modo a que se chegue a “normas comuns e ideais como uma sociedade plural, diversa”. O vídeo da intervenção de 12 minutos pode ser visto aqui e o texto publicado na Open Democracy pode ser lido aqui.
Vakil, co-autor, com S. Sayyid, do livro Thinking Through Islamophobia: Global Perspectives (Pensar através da islamofobia, ed. Hurst, 2011) e responsável do Comité de Pesquisa e Documentação do Muslim Council of Britain, acrescenta: “Partilho das preocupações sobre currículos e escolas que não estão a fazer o suficiente para educar as crianças e os cidadãos de amanhã para os perigos do extremismo; preocupo-me com a correia transportadora de radicalização – a radicalização e extremismos que são nutridos, autorizados e encorajados pelo ensino de versões estreitas, paroquiais e caiadas de história e de valores britânicos.”

Outros textos sobre o caso

Artigo de Robin Richardson a explicar o caso

Ponto de situação das questões em jogo

Artigo de M.G. Khan, professor no Ruskin College da Universidade de Oxford e  governador de uma das escolas mais em destaque nesta questão, publicado no The Times Education Supplement

Artigo de Talha Ahmad, antigo aluno e professor nestas escolas, publicado na Muslim News

Uma listagem de intervenções críticas sobre a questão (na página da Islamic Human Rights Commission)

A carta de sir Tim Brighouse e outros ao The Guardian e o correspondente artigo do jornal

Um texto sobre o livro de Michael Gove, Celsius 7/7 e o conceito de “cavalo de Tróia”

(um agradecimento a AbdoolKarim Vakil pela colaboração prestada)

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