quinta-feira, 2 de abril de 2015

Comer juntos, o gesto da memória de Jesus

A refeição, um importante ritual em várias religiões



Johannes Vermeer, Cristo em casa de Marta e Maria (1654-56)
(ilustração reproduzida daqui)


Depois da celebração do Domingo de Ramos, em que se recorda a entrada de Jesus em Jerusalém, poucos dias antes de morrer crucificado, os cristãos (católicos, protestantes e anglicanos; pela diferença de calendários, os ortodoxos só celebram a Páscoa daqui a uma semana) evocam hoje a última ceia que Cristo come com os seus mais próximos.
A importância da refeição no ritual religioso não nasce com Jesus e o cristianismo. A ceia que acabou por ser ritualizada pelos cristãos em memória de Cristo era, ela própria, a celebração da Páscoa judaica: à volta da mesa e de um cordeiro ou cabrito, os judeus recordavam o tempo em que tinham saído do Egipto, fugindo à escravatura dos faraós.
Na primeira Páscoa, aquela que preparou a fuga aos exércitos do faraó, juntaram-se as famílias vizinhas, com sandálias nos pés e cajado na mão. “Comê-la-eis à pressa. É a Páscoa em honra do Senhor”, diz o texto bíblico do livro do Êxodo, que pede “um memorial (…) ao longo das gerações”.
A última ceia de Jesus ficou, no cristianismo, e por pedido do próprio – “Fazei isto em memória de mim” ­– como a celebração maior. Mas o valor bíblico da refeição não se resume à Última Ceia e alguns dos ensinamentos decisivos de Jesus ligam-se ao acto de comer juntos: é durante uma refeição em casa de um fariseu que Jesus causa escândalo ao perdoar os pecados da mulher que aparece a chorar e a lavar-lhe os pés; Jesus faz multiplicar os pães quando coloca a multidão faminta a partilhar o que cada um tem; depois da ressurreição, é à mesa que dois discípulos o reconhecem e Jesus aparece várias vezes junto dos amigos mais próximos para comer com eles; e, em casa de Lázaro e das suas irmãs Marta e Maria, Jesus parava várias vezes a repousar e a comer do pão que as mulheres lhe preparavam – como Vermeer representa no quadro aqui reproduzido.
O valor religioso do acto de comer junto com outros não se limita ao cristianismo e ao judaísmo. É com uma refeição festiva que os muçulmanos assinalam o final do Ramadão, o mês do jejum e da purificação. E os sikhs recordam o seu primeiro mestre espiritual: em 1649, Guru Nanak pegou em vinte rupias – uma fortuna que o pai lhe dera para gastar e, ao ver alguns homens santos que não tinham que comer, decidiu comprar alimento para partilhar com eles.
No acto de comer juntos, quebram-se barreiras, celebra-se a igualdade da mesa, transfiguram-se alimentos – o pão, o vinho – num ágape de amizade. Foi com esse gesto que Jesus iniciou a sua Páscoa. E se o tempo, muitas vezes, sacralizou e preencheu de rituais quase mágicos essa memória, o sinal maior continua a ser o do pão que se reparte. 

(texto publicado no Público a 24 de Março de 2005)

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