sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ana Vicente (1943-2015): Mulher crente em Deus presente no mundo

Memória


Ana Vicente (foto reproduzida daqui)


Em 2011, no livro Memórias e Outras Histórias (Temas e Debates, 2011), escrevia, a propósito da doença cancerosa que a atingira três anos antes: “Neste , como em qualquer período da nossa vida, o futuro é um país estrangeiro, como dizia um escritor inglês. Estar atenta aos sinais dos tempos em geral e aos que se atravessam no meu caminho, especificamente, é aconselhável. Estar em comunhão com Deus e com o próximo é o bem-estar permanente que procuro.”
Era assim Ana Vicente, investigadora e autora de vários livros, defensora dos direitos das mulheres e membro do movimento internacional Nós Somos Igreja, que morreu domingo passado no Estoril. Uma missa de sétimo dia será celebrada no próximo dia 29, quarta-feira, às 19h45, no Convento de São Domingos, em Lisboa, presidida por frei Bento Domingues, amigo de longa data.
Mulher de fé, acreditava num cristianismo fortemente implicado na vida das pessoas, atenta ao mundo e aos seus sinais, interessada por aqueles e aquelas que a rodeavam. Mesmo na doença, Ana Vicente não deixou de procurar esse “bem-estar” – não só para ela, mas também para outros. Com a ajuda de uma enfermeira do Instituto Português de Oncologia, reuniu várias pessoas com problemas oncológicos que se juntavam periodicamente para conversar sobre a doença, as angústias e as esperanças que os habitavam.
A serenidade, o sorriso, a delicadeza com os outros, bem como as convicções fortes pelas quais lutava, eram marcas da sua personalidade. Numa entrevista dada em conjunto com a filha, Filipa, a Anabela Mota Ribeiro, publicada no Público em Julho de 2013 (disponível aqui na íntegra), a filha contava, sobre o modo como a mãe vivia a doença: “Ela resiste à doença e desafia-a, contra todas as regras – até nisso vai contra as regras. O livro [A Arte Sem História, de Filipa Lowndes Vicente] é uma forma de falar do enorme amor e admiração que tenho pela minha mãe. Ainda maior, se possível, ao ver a serenidade e ao mesmo tempo a energia, o humor!, com que tem convivido com a doença.”
Apesar da sua incerteza sobre o futuro, Ana Vicente acrescentava, no texto inicialmente citado: “Tenho a certeza que é necessário descobrir novos modelos de desenvolvimento sociais e económicos pois, como tem sido repetido à saciedade, os que nos dominam já demonstraram estar caducos pelos grosseiros desequilíbrios que desencadeiam, também a nível ambiental, e pela dimensão da pobreza que toleram.”
Nascida em 1943, Ana Lowndes Vicente era filha da inglesa Susan Lowndes e do português Luiz de Oliveira Marques, cuja história reconstituiu em Arcádia – Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa (Gótica, 2006): “Estas duas pessoas excepcionais, e de uma autenticidade exemplar, gostarão de partilhar com os leitores a sua imensa fé em Deus e o seu compromisso com a mensagem evangélica: ‘amai-vos uns aos outros como eu vos amei’, o seu entusiasmo pelas coisas bonitas da vida, a sua paixão pelo prazer da leitura, a sua atenção ao quotidiano”, contava ela, na introdução do livro.
Na sua juventude, empenhou-se ainda em grupos de oposição católica à ditadura do Estado novo. No blogue Entre as brumas da memória, Joana Lopes recorda que Ana Vicente foi uma das primeiras colaboradoras do Direito à Informação, uma publicação clandestina destinada a dar notícias da guerra colonial, integrando, mais tarde, a cooperativa Pragma – por causa da qual foi presa pela polícia política, durante alguns dias, em Caxias.

Feminismos, uma caminhada na busca da igualdade

Diplomada com o curso superior de Cultura Religiosa e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Ingleses, pela Universidade de Lisboa, Ana Vicente foi professora e tradutora, trabalhou nos gabinetes de Maria de Lourdes Pintassilgo e de Leonor Beleza, foi consultora do Fundo das Nações Unidas para a População, além de ter feito parte de várias organizações internacionais.
Desempenhou ainda o cargo de secretária executiva do Projecto Vida – Programa Nacional de Combate à Droga. Entre a dezena e meia de livros (história, biografias, memórias, questões de género e de mulheres), há também vários de literatura infantil (O H Perdeu uma Perna, Para que serve o Zero?Onde está o Mi?, Onde acaba o Arco-Íris?, Como passa o Tempo?, todos com ilustrações de Madalena Matoso).
Durante duas décadas, trabalhou na Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres (que presidiu, entre 1992 e 1996). Essa actividade, a par dos estudos e investigações que fez sobre questões de géneros e de mulheres, acabou por marcar a sua vida – na família, ela é quarta geração de mulheres a dedicar-se à escrita. E isso reflectiu-se em dezenas de artigos e alguns dos livros publicados, como As Mulheres em Portugal na Transição do Milénio (Multinova, 1998), As Mulheres Portuguesas vistas por Viajantes Estrangeiros – séculos XVIII, XIX e XX (Gótica, 2001) ou Os Poderes das Mulheres, Os Poderes dos Homens (Gótica, 2002).


Georges de la Tour, La diseuse de bonne aventure
ilustração utilizada na capa de Os Poderes das Mulheres, Os Poderes dos Homens 
(imagem reproduzida daqui)

Neste último livro, Ana Vicente pretendia relacionar o desenvolvimento social, político e económico com o usufruto dos direitos humanos pelas mulheres e pelos homens. Afirmando-se convicta da capacidade das mulheres poderem ajudar na mudança e na transformação do mundo, citava o escritor conservador inglês Paul Johnson, que dizia que “a raça humana só tem estado a funcionar com metade da sua energia criativa”, o que provoca consequências trágicas para a humanidade. E o mesmo Johnson acrescentava: “A grande mola de mudança, hoje em dia, é a crescente autoconfiança das mulheres nas suas capacidades, a sua vontade de mostrar este orgulho de forma prática, os primeiros sinais do triunfalismo feminino.”
Na entrevista já citada, dada a Anabela Mota Ribeiro, Ana Vicente afirmava, sobre o feminismo: “Não há um feminismo, há feminismos. (...) A minha definição é muito alargada. Significa um movimento social, talvez dos mais importantes do século XX, porque transformou, e está a transformar, as relações entre as pessoas de uma forma profunda. Os feminismos são uma caminhada importantíssima e baseada numa justiça que o ser humano busca desde sempre: a da igualdade. A de as pessoas serem consideradas porque são pessoas e não porque são mulheres ou homens.”

“Deus é Aquela que...”

O seu feminismo – entendido nesta acepção – tinha uma relação profunda com muitas das posições que assumia em relação à questão religiosa e ao catolicismo em que se integrava. Fazia-o com uma fé intensa e convicta, e fundamentada na grande tradição cristã e católica. No livro Os Poderes das Mulheres, Os Poderes dos Homens, depois de uma profunda profissão de fé católica, acrescentava: “a gratificação da relação com Deus, a tentativa de corresponder aos desafios de Jesus Cristo, o prazer intelectual, estético e espiritual proporcionado pela cultura cristã, seja com a leitura de Santa Teresa de Ávila, de Thomas Merton ou pela visão da imensidade das obras artísticas, móveis e imóveis, modernas ou antigas, espalhadas pelo mundo, têm preenchido a minha vida.”
No livro Ser Igreja (Ariadne/Nós Somos Igreja, 2007), que ela própria coordenou com Leonor Xavier, Ana Vicente escreve, no texto Que poderei eu dizer sobre Deus?: “Quero dirigir-me a Deus, quero exprimir o meu amor por Deus e admirar-me perante o amor que Deus tem por mim. Decidi optar pela utilização do género feminino, para apelidar Deus, sendo esta utilização tão legítima como a do masculino, enquanto não formos capazes de criar um pronome que seja capaz de ultrapassar os dois géneros.”
À pergunta “Porque acredito eu em Deus?”, respondia: “Deus é a beleza, o espírito, a ressurreição no sentido do constante renascer. Deus é, para mim, a criação permanente. Deus é Aquela que criou o universo, o qual na sua dimensão infinita reflecte a própria essência de Deus. Acredito que, como todas as Criadoras, (...) Deus ama o que criou.”
Num debate sobre o livro Paciência Com Deus, de Tomáš Halik, que decorreu na Capela do Rato a 8 de Janeiro de 2014, Ana Vicente dizia que o cristianismo não é prescritivo nem um sistema de mandamentos e proibições. E o seu modo de entender a fé ia ao ponto de avaliar a concretização cristã na história. Num artigo no Público, em 5 de Agosto de 2005, intitulado Os melhores alunos do cristianismo, escrevia que “as populações que vivem na Europa, quer o reconheçam ou não, foram beber nos Evangelhos os seus valores mais preciosos: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a paz”. E por isso “podemos afirmar, sem qualquer hesitação, que a Europa nunca foi tão cristã como agora”.
No texto (que pode ser lido aqui na íntegra http://www.publico.pt/espaco-publico/jornal/os-melhores-alunos--do-cristianismo-33466), a investigadora citava vários exemplos no campo social e político em que a mudança civilizacional foi significativa, para afirmar: “É este o desafio que a instituição-Igreja Católica tem que enfrentar. Ao fazer acusações de relativismo moral, e mostrar descontentamento connosco, não estará esta a afastar precisamente os seus filhos mais obedientes, aqueles que concretizaram com alguma perfeição a mensagem evangélica embora, em muitos aspectos, com grandes falhas? São antes estes que estão a rejeitar o relativismo moral, na verdadeira acepção da palavra. Como bons alunos que são, sabem que na vida terrena, nada jamais está adquirido, e que é sempre necessário procurar fazer mais e melhor. Por isso, não aceitam pôr em causa os valores que, em aliança com os seus irmãos de todas as confissões (ou de nenhuma), com tanto esforço, conseguiram transpor para o seu dia a dia. Valores que conseguiram integrar nas instituições políticas e sociais europeias, tendo em vista a dignidade terrena de milhões de pessoas.”

“Só me falta um dos sete sacramentos...”



(ilustração reproduzida daqui)

No recente IV Colóquio de Teologias Feministas, realizado em Novembro de 2014, em Lisboa, Ana Vicente mostrava-se esperançada na liderança reformadora que o Papa Francisco está a desempenhar e acrescentava, sobre o que a Igreja deve ser: “Uma Igreja inclusiva, com uma nova atitude face às mulheres (a propósito, é verdadeiramente absurdo organizar um Sínodo sobre a Família com 253 participantes, dos quais cerca de 90% eram homens e, destes, cerca de 70% celibatários, por pertencerem ao clero; e, como disse a antiga presidente da Irlanda, Mary McAleese, ‘como é que homens que nunca mudaram uma fralda a um bebé podem permitir-se aconselhar o Papa sobre a família?’); uma Igreja onde o sacerdócio seja profundamente repensado; uma Igreja que valorize a sexualidade, respeitando a orientação de cada pessoa; e uma Igreja com um empenhamento absoluto na esfera dos direitos humanos, dentro e fora da instituição.”
A defesa que fazia da mudança do papel das mulheres na Igreja ia ao ponto de pugnar pela ordenação de mulheres, mas defendendo um outro modelo de presbiterado. No livro Memórias e Outras Histórias, já referido, recordava com humor, a propósito da doença: “Quando ainda estava internada chamei o frei Bento Domingues, O.P., para me dar (...) a bênção dos doentes, o que fez com a sua habitual bonomia. (...) Só me falta, portanto, receber um dos sete sacramentos, o da ordenação.”
Em Março de 2011, respondendo a um inquérito deste blogue sobre nova evangelização, Ana Vicente contestava a expressão: “Muito preferia ver a utilização de outra linguagem por parte da Igreja-instituição, numa busca de fidelidade à mensagem evangélica original e simples.” E acrescentava, fazendo de novo profissão de fé na presença de Deus no mundo: “As marcas de Deus estão cada vez mais presentes no mundo secular – procura intensa da igualdade entre todas as pessoas, igualdade de direitos e de deveres, mulheres, homens, crianças, diferentes orientações sexuais, capacidades, idades, respeito por toda a criação, direitos dos animais, protecção da natureza, paz, ética na política (...), justiça nacional e internacional (...); ética na economia e nas finanças, etc., etc.”

Ana Vicente acreditava nesse Deus presente no mundo.

(textos anteriores no blogue:
"Somos todos pessoas" - De branco, no Domingo, pelas vítimas da indiferença no Mediterrâneo - sobre a proposta de uma acção de solidariedade para o próximo dia 26
A barbárie, a indiferença e o silêncio da esquerda - sobre as perseguições aos cristãos)


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