quinta-feira, 16 de julho de 2015

Francisco na América Latina: é necessária uma mudança, contra o "esterco do diabo"



O altar construído no parque Ñu Guazu (Assunção, Paraguai), 
onde o Papa celebrou a eucaristia domingo passado, 
foi totalmente decorado com espigas e grãos de milho, 
abóboras, coco e frutos da época (foto reproduzida daqui)


A viagem do Papa Francisco ao Equador, Bolívia e Paraguai – os três países mais pobres da América do Sul – ficou marcada por vários momentos e palavras. Mas o momento mais importante talvez tenha sido o discurso do Papa no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, organizado pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz. Um discurso “marcante”, que assinala uma espécie de “refundação” da doutrina social da Igreja, como o caracterizou o Religion Digital.
A intervenção do Papa seguiu-se à leitura do documento de conclusões do encontro, denominado Carta de Santa Cruz.
No seu texto, o Papa Francisco recorda algumas das ideias que já tinha vincado na sua intervenção conclusiva do I encontro, realizado em Roma, no final de Outubro do ano passado.
O Papa Bergoglio voltou a repetir que terra, tecto e trabalho – os 3 T, como os definiu – são “direitos sagrados”. E acrescentou que se referia a problemas não só dos latino-americanos mas, “em geral, de toda a humanidade”.
No discurso, perante mais de 1500 representantes de movimentos de camponeses, trabalhadores precários, migrantes, agricultores sem-terra, moradores de periferias urbanas e muitos outros, convocados pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz para três dias de debateso Papa afirmou que este sistema económico “impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza”. É um sistema que “já não se aguenta: não o aguentam os camponeses, não o aguentam os trabalhadores, não o aguentam as comunidades, não o aguentam os povos... E nem sequer o aguenta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco” (a tradução oficial para português utiliza a versão “não o suportam” em vez de “não o aguentam”; mas, em castelhano, foi “aguentar” o verbo utilizado pelo Papa).
Na intervenção, da qual se pode ler aqui uma selecção de dez frasesBergoglio criticou ainda o novo “colonialismo ideológico” que chega a impor “medidas que pouco têm a ver com a resolução” de problemas “e muitas vezes tornam as coisas piores”. E pediu ainda perdão aos povos indígenas, “não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América”.
“Precisamos e queremos uma mudança”, uma “mudança real, uma mudança de estruturas”, acrescentou Francisco. Uma mudança que seja “redentora”, que contrarie os “danos irreversíveis” que estão a castigar a terra e a infligir “tanto sofrimento, tanta morte e destruição”. Sente-se, acrescentou, “o cheiro do que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano”.

Esta realidade caracteriza a “ditadura subtil” que se vive e provoca “efeitos malignos”. E contra isso o Papa propõe três tarefas, “que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos movimentos populares”: a de colocar “a economia ao serviço dos povos”, unir “os povos no caminho da paz e da justiça” e “defender a Mãe Terra”.
O discurso é, possivelmente, o mais longo do seu pontificado, até agora, o que também diz da importância que Francisco lhe atribui. Quer nesta intervenção, que pode ser lida aqui na íntegraquer em diversos outros momentos da viagem, o Papa insistiu ainda na ideia de que o futuro está nas mãos dos povos, mais do que das dos grandes dirigentes, elites ou potências.

A pergunta é: porque esqueceu a Igreja?...

A imprensa internacional comentou em geral de forma muito positiva as diferentes intervenções do Papa. A viagem foi vista como reflectindo uma Igreja cada vez menos romana e mais universal.
Muitas das afirmações do Papa serão seguramente olhadas por muitas pessoas como intervenções políticas de um líder espiritual, que não as devia fazer. Mas, como escrevia Andrea Tornielli no Vatican Insider, estas palavras estão “em absoluta sintonia com a tradição cristã”. E recorda: “‘Não partilhar os próprios bens com os pobres significa roubá-los e privá-los da vida. Os bens que possuímos não são nossos, mas deles’, escrevia São João Crisóstomo. (...) Não há que perguntar, pois, se o Papa é comunista ou porque fala tanto sobre os pobres. A verdadeira pergunta é: porque é que na Igreja se esqueceram estes ensinamentos a tal ponto que parece revolucionária a pregação do Papa argentino?
A viagem ficou marcada também, como um fait-divers, pelo oferta de um crucifixo sobre uma foice e um martelo, oferecido ao Papa pelo Presidente boliviano, Eco Morales. Num primeiro momento, o Papa chamou a atenção para dizer que não estava muito correcta aquela mescla de símbolos. Mas, depois, eventualmente informado sobre a sua origem, o seu porta-voz esclareceu que o Papa não tinha tido uma reacção especialmente negativa ao presente. O crucifixo tinha sido, afinal, desenhado pelo padre jesuíta espanhol Luis Espinal Camps, que foi torturado e assassinado por paramilitares em La Paz, em 1980, depois de denunciar a violência política no país – aliás, pouco depois de chegar à Bolívia, o Papa deteve-se mesmo no lugar onde foi morto o padre EspinalPor tudo isso, o Papa entendeu o presente não como “uma confusão entre fé e ideologia”, mas como um sinal de“diálogo e liberdade”.
Já no voo de regresso, o próprio Papa referiu-se ao episódio, dizendo que iria guardar a oferta no Vaticano e que não considerou o presente como uma “ofensa”. Na mesma ocasião, referiu-se ainda à crise europeia a propósito da Grécia, afirmando apoiar as pretensões do governo grego por uma “revisão justa” da dívida.

Numa análise ao episódio do crucifixo, John Allen escrevia, no Crux, que a oferta de Morales, se teve intenção de ser um aproveitamento, poderia sair-lhe pela culatra. Em 1987, recorda o jornalista, o Papa João Paulo II apareceu à varanda do palácio presidencial com o então ditador Augusto Pinochet, num gesto muito criticado na época. Menos de um ano depois, Pinochet autorizou – e perdeu – um referendo sobre a sua liderança e o Chile retomou lentamente o caminho para a democracia. Cinco anos antes, a junta militar que governava a Argentina também tentou aproveitar a visita de João Paulo II como forma de caucionar o regime que, menos de um ano mais tarde, tinha já caído. O mesmo aconteceu com o ditador Alfredo Stroessner, no Paraguai, que caiu do poder menos de um ano depois da visita de João Paulo II, em 1988. John Allen ressalva que Morales não é um ditador, foi democraticamente eleito três vezes e continua a ter um forte apoio popular. Há diferenças de pontos de vista, no entanto, entre o Papa e Morales – nomeadamente em questões ambientais e nas relações Igreja-Estado. Por isso, conclui, se Morales pretendesse fazer aproveitamentos políticos com a visita de Francisco, isso poderia correr-lhe mal.
Já no Paraguai, o Papa recordou as “heróicas mulheres” que lutaram contra a ditadura de Stroessner e as vítimas do Plano Condor que, liderado pela CIA norte-americana entre 1970 e 1980, permitiu que as ditaduras latino-americanas perseguissem os seus opositores.

A espiritualidade de zapping

Noutro encontro da viagem, com seminaristas e padres, de novo na Bolívia, o Papa denunciou as “castas” eclesiásticas, que “estão continuamente a repreender o povo de Deus”. “Já não são pastores, mas capatazes”, afirmou. O clero não deve ter a atitude de passar ao lado da vida das pessoas, nem alimentar uma “espiritualidade de zapping”, que não consegue “relacionar-se, envolver-se inclusive com o Senhor”. Antes deve manifestar compaixão pela situação de cada pessoa, fazendo um convite que leve à mudança. (O programa completo e os discursos da viagem podem ser lidos aqui)
Em consequência directa (ou não) da passagem do Papa por aqueles três países latino-americanos, as autoridades chilenas propuseram à Bolívia o restabelecimento imediato de relações diplomáticas, cortadas por causa da reivindicação boliviana de uma saída directa para o mar, que o país deixou de ter na sequência de uma guerra que fez em conjunto com o Peru, contra o Chile, em 1879.
Num outro texto de análise lateral à viagem, John Allen descobre ainda que Francisco é o Papa da “falibilidade papal”. Esse é o novo dogma, diz o jornalista e comentador, que descobriu, apenas na conferencia de imprensa de regresso, a bordo do avião, sete afirmações de Francisco que remetem para essa ideia. (texto original, em inglês, aqui)


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