terça-feira, 20 de junho de 2017

Silêncio. É Sábado Santo por Pedrógão Grande

(adaptação de um texto publicado neste blogue, com outro título, a 19 de Abril de 2014)

O dia de Sábado Santo é, na liturgia cristã, o dia do grande silêncio. Uma mãe perde o seu filho, uma mulher perde o seu chão, mulheres e homens perdem o(s) seu(s) amigo(s), roubado(s) de forma violenta. A experiência da perda faz parte da humanidade que somos e ela não podia deixar de integrar, por isso, o cristianismo ou qualquer outra fé religiosa.
Mas este tem de ser também um dia de uma esperança silenciosa e confiante. De quem sabe que o abraço do outro, a presença silenciosa, a palavra reconfortante, o trabalho para dar fim à destruição, não são gestos em vão. E que a sua vontade e a sua convicção serão factor de transformação da realidade, contra toda a desesperança e o sem sentido que a vida parece ser nestes momentos.
Uma das peças musicais que melhor traduz esta experiência da perda, por um lado, e da esperança confiante, é o Ave Maria, de Giulio Caccini (1550-1618), um dos pais da ópera. Nela se consegue falar do despojamento a que tantas vezes somos forçados, mas também da redenção de que somos capazes, quando a nossa vida se firma na justeza e na confiança dos gestos do outro.
A interpretação mais sublime desta peça é a que o trompete de Henry Parramon e o órgão de Jean-Michel Louchant nos oferecem no disco Louanges a Notre Dame, publicado em 2001 pela SM. Quando os dois instrumentos se juntam, deles jorra a alegria, como escreve Philippe Barbarin, então bispo de Moulins e actual arcebispo de Lyon e cardeal. Melhor: os dois instrumentos traduzem musicalmente o sublime, transfigurando a composição, despojando  a música de artifícios e reduzindo-a à sua máxima limpidez. A sobriedade melódica do trompete, em diálogo com o recato do órgão, levam-nos à emoção plena e inolvidável (que se repete no disco com a criação Je vous salue, Marie, do próprio Parramon).
Na impossibilidade de encontrar disponível essa recriação, para aqui a reproduzir, fica um vídeo onde a base melódica é o piano e que se aproxima muito da proposta de Parramon e Louchant.


(Outra versão com trompete, que também consegue uma grande força emotiva, é a cantada por Irina Arkhipova, no vídeo que pode ser encontrado aquiuma versão sinfónica, com coro, desta mesma peça, pode ser vista e ouvida aqui)



sábado, 17 de junho de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (1) – Visões, não aparições – pôr Fátima no sítio

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Começo por duas entrevistas de D. Carlos Azevedo a propósito do debate sobre visões ou aparições, e por um texto que publiquei na revista digital Forma de Vida, do programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Este artigo serve de porta de entrada a vários outros, pois nele sintetizo algumas das questões que abordei, de forma mais específica, em outros artigos, que serão por sua vez publicados no RELIGIONLINE, nos dias 13 dos próximos meses, até Outubro.

O Papa Francisco a pôr Fátima no sítio


(Foto: a Cruz Alta, de Robert Schad; foto reproduzida daqui)

Foi o próprio Papa Francisco que, com aquilo que disse e fez em Fátima ou a propósito da sua viagem ao santuário português, ajudou a repor no lugar vários aspectos da devoção mariana e da própria mensagem de Fátima. Na conferência de imprensa no voo de regresso a Roma, a propósito das «aparições» que ocorrem em Medjugorje (Bósnia), desde 1981, o Papa afirmou: «Eu, pessoalmente, sou mais “ruim” [do que o relatório inicial preparado pelo Vaticano]: prefiro Nossa Senhora mãe, nossa mãe, e não uma Nossa Senhora chefe dum departamento telegráfico que todos os dias, a determinada hora, envia uma mensagem; esta não é a Mãe de Jesus.»
É fácil adivinhar que, se o fenómeno de Fátima ocorresse hoje, Francisco colocaria reservas às aparições com data marcada uma vez que, também na Cova da Iria, a visão dos três pastorinhos acontecia num dia previsto. Mas este é um pormenor, porque o mais importante é o Papa ter dito que Fátima tem uma mensagem de paz e que ele veio como peregrino – duas dimensões fundamentais da relação das pessoas com o santuário.
(O texto pode continuar a ser lido aqui)

D. Carlos Azevedo: “Em Fátima não houve aparições!”

“Em Fátima, não houve aparições”, defende, em entrevista a Manuel Vilas Boas, da TSF, o bispo e historiador Carlos Azevedo, actualmente a trabalhar como delegado do Conselho Pontifício para a Cultura, do Vaticano. A mãe de Jesus, explica, nunca esteve, fisicamente, em qualquer parte do mundo. Por isso, não se deve falar em aparições mas visões.
Carlos Azevedo publicou recentemente o livro Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã, no qual segue a tese do então cardeal Joseph Ratzinger. O futuro Papa Bento XVI escreveu, no ano 2000, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina, o Comentário Teológico sobre o segredo de Fátima. No texto,  distingue exactamente aquelas duas perspectivas. Retomando no livro essa distinção, o bispo defende, nesta entrevista, que se deve passar a usar mais rigor na linguagem.  
Um mês depois da visita do Papa Francisco ao santuário da Cova da Iria, o bispo analisa ainda, na entrevista, os comportamentos do Estado português e da Igreja Católica e diz que não prevê regressar, definitivamente, a Portugal, nos próximos anos.
A entrevista pode ser ouvida aqui.

A partir do mesmo livro, uma outra entrevista publicada no Público, ainda em Abril, pode ser lida aqui.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O primeiro Dia Mundial dos Pobres: “O amor não admite álibis”

“O amor não admite álibis: quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres.” Esta é uma das afirmações centrais da mensagem do Papa Francisco para o I Dia Mundial dos Pobres, por ele instituído na carta Misericordia et miseracom que assinalou o final do ano da misericórdia, em Novembro de 2016.


(foto reproduzida daqui)

O texto é significativamente datado de ontem, 13 de Junho, memória de Santo António, e o título – “Não amemos com palavras, mas com obras” – é retirado da primeira carta de São João: “Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade”. E, ao recordá-la, o Papa sugere que “a misericórdia, que brota por assim dizer do coração da Trindade, pode chegar a pôr em movimento a nossa vida e gerar compaixão e obras de misericórdia em prol dos irmãos e irmãs que se encontram em necessidade”.
No documento, o Papa insiste no “escândalo” da pobreza, pede uma “nova visão da vida e da sociedade”, diz que os pobres “não são um problema” mas antes um recurso para “acolher e viver a essência do Evangelho”, aponta sugestões concretas para viver o Dia Mundial e apresenta o Pai Nosso como uma oração que implica “partilha, comparticipação e responsabilidade comum”.
A data escolhida pelo Papa para este Dia Mundial dos Pobres é o XXXIII Domingo do tempo comum (o penúltimo do ano litúrgico), que este ano cairá a 19 de Novembro. Com a sua instituição, o Papa pretende “estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro”. Mas também quer que “todos, independentemente da sua pertença religiosa”, se abram “à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade”. E acrescenta: “Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão.”
Aos problemas colocados pela pobreza e pela existência de pobres “é preciso responder com uma nova visão da vida e da sociedade”, escreve o Papa na mensagem. “Causa escândalo a extensão da pobreza a grandes sectores da sociedade no mundo inteiro. Perante este cenário, não se pode permanecer inerte e, menos ainda, resignado”, escreve o Papa.
O fenómeno da pobreza, acrescenta, descrevendo realidades concretas, “interpela-nos todos os dias com os seus inúmeros rostos vincados pelo sofrimento, a marginalização, a opressão, a violência, as torturas e a prisão, pela guerra, a privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e o analfabetismo, pela emergência sanitária e a falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e a escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada”. A pobreza tem, ainda, “o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!”
Para dar um “contributo eficaz para a mudança da história, gerando verdadeiro desenvolvimento, é necessário escutar o grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de marginalização”. Mas os pobres não ficam de fora dos apelos do Papa: eles não devem perder “o sentido da pobreza evangélica que trazem impresso na sua vida”.
Lembrando as primeiras comunidades cristãs e os relatos dos Actos dos Apóstolos, Francisco diz que o “serviço aos pobres” constitui “um dos primeiros sinais com que a comunidade cristã se apresentou no palco do mundo”. Só possível porque os primeiros cristãos compreenderam que a sua vida, enquanto discípulos de Jesus, “se devia exprimir numa fraternidade e numa solidariedade tais que correspondesse ao ensinamento principal do Mestre que tinha proclamado os pobres bem-aventurados e herdeiros do Reino dos céus (cf. Mt 5, 3)”.

“Encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los”

A atenção aos pobres deve ser feita de atenção a cada pessoa concreta. “Continuam a ressoar de grande atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: ‘Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez’”, escreve o Papa, para concluir: “somos chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma.”