Depois de Maio, podemos voltar a parte do
muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e
elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Neste mês, trago aqui dois textos publicados
nas revistas JN História e Visão, onde tento resumir
o que era Fátima há 100 anos e como se desenvolveu a história inicial do
fenómeno. Este é o segundo trabalho da série iniciada aqui e que incluirá textos vários, nos dias 13 dos
próximos meses, até Outubro.
DO LUGAR INÓSPITO AO CAIS DE CINCO MILHÕES
Era um lugar
inóspito e agreste, de solo rochoso e de pouca vegetação. Ainda assim, crescem
na região oliveiras, figueiras e azinheiras, por exemplo. A pouco mais de 120
quilómetros de Lisboa, há um século a distância era muito maior. Era aquela que
separava um país muito pobre, analfabeto e com uma agricultura de subsistência,
da capital urbana que começava a despontar para o desenvolvimento, a cultura e
a política. Mais ainda: era também a distância entre o povo, predominantemente
monárquico, e as elites da capital, maioritariamente aderentes da República,
que tinha sido implantada em 1910.
A pequena Jacinta levada ao colo, a 13 de Outubro de 1917,
na foto captada por Joshua Benoliel
na foto captada por Joshua Benoliel
A 13 de Maio
de 1917, na Cova da Iria, um pequeno lugar da aldeia de Fátima, três crianças
acompanhavam os rebanhos dos pais: Lúcia dos Santos, de 10 anos, e os primos
Francisco Marto, com quase 9 anos, e Jacinta Marto, de 7. Contariam eles
depois, interrogados pelo pároco local, que estavam sentados quando viram um
relâmpago. “Levantaram-se e começaram a juntar as ovelhas para se irem embora
com medo, depois viram outro relâmpago, depois viram uma mulher em cima duma
carrasqueira, vestida de branco...”
Lúcia falou
com a visão (a prima Jacinta viu e ouviu mas não falou, o primo Francisco só
viu), que lhe teria dito para voltarem ao mesmo local todos os meses, até
Outubro. Lúcia ainda perguntou se a guerra duraria muito – o mundo estava
mergulhado na I Grande Guerra, mas a resposta a essa pergunta só viria em
Outubro: a guerra acabaria nesse mesmo dia, contaram as crianças, numa versão
que mais tarde seria corrigida.
O fenómeno
de Fátima acabaria por ter Lúcia como protagonista principal. Ela recebia “uma
mensagem especial”, como dizia o padre Joaquin Maria Alonso, que mais tarde
viria a ser um dos mais importantes investigadores dos documentos e do processo
de Fátima.
Lúcia era a
mais nova de sete irmãos (havia mais cinco raparigas e um rapaz). Teve uma
“infância de mimos e privilégios, a que não faltaram desgostos e desgraças
familiares”, como dizia o padre Alonso. Nas memórias, ela conta o modo como as
irmãs e o irmão a disputavam, pois queriam tê-la ao colo, e como se esmeravam
em enfeitá-la. Levavam-na também aos bailes da aldeia. E uma das últimas amigas
de infância, Maria do Rosário, contava no início do ano 2000 que Lúcia dançava
com os companheiros de brincadeira, enquanto o primo tocava pífaro.
Uma das
piores desgraças familiares era o alcoolismo do pai: “Meu pai tinha-se deixado
arrastar pelas más companhias e tinha caído nos laços duma triste paixão, por
causa da qual tínhamos já perdido alguns terrenos”, conta ela nas “Memórias”.
O sol como “uma roda de fogo”
Após o
primeiro episódio, a 13 de Maio, sucederam-se visões, uma vez por mês, até
Outubro. Durante aqueles meses, as mensagens que Lúcia entendia eram muito
simples: rezar o terço, pedir pelos pecadores, interceder por pessoas doentes
ou soldados que tinham partido para a frente de combate... Ao mesmo tempo, as
pessoas foram dando dinheiro, uma das primeiras peregrinas recolheu e Lúcia
quis saber o que fazer com a soma recolhida. “Façam dois andorezinhos
pequeninos; um leva-o tu mais três meninas como tu e vão de branco; o outro
leva-o o Francisco e mais três meninos como ele; levem uma capa branca,
levem-no à Senhora do Rosário e apliquem-no a ela”, pediu a visão.
A 13 de
Outubro, para quando estava prometida um sinal “para que todos” acreditassem,
alguns milhares de pessoas concentraram-se no lugar, atraídas pela notícia que
entretanto começara a circular.
Depois de
uma chuva intensa, a tempestade parou. “O Sol começou a desandar, parecia uma
roda de fogo, todo à volta, todo à volta, todo à volta, para este lado do
poente, e veio à Terra”, contava a amiga Maria do Rosário, num depoimento que
se pode ler no livro A Senhora de Maio.
“Quando ele veio abaixo, as pessoas tiveram muito medo, porque pensavam que se
acabava o mundo, o Sol a descer, a descer. Mas não se acabou, e a Lúcia disse:
‘Não tenham medo que não há novidade, isto é um milagre do Sol.’”
A multidão durante a chuva, antes do "milagre do sol", na foto de Benoliel
Depois dos
acontecimentos, Lúcia foi para a escola. “A Senhora”, como ela se referia à
aparição, dissera logo na segunda vez (em Junho) para ela aprender a ler. Nessa
época, Lúcia não conhecia palavras como Rússia – o tema da conversão da Rússia
seria um dos mais repetidos durante décadas, até ao início da década de 1990,
depois da queda do Muro de Berlim – a propósito de Fátima e do chamado
“segredo”. Entretanto, ela seguiria a vida religiosa, primeiro como religiosa
doroteia, depois como carmelita.
O chamado
“segredo de Fátima” só muito mais tarde seria revelado por Lúcia. Nas suas Memórias, ela escreveria, em 1941: “Bem;
o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar. A
primeira foi, pois, a vista do inferno!” A descrição que Lúcia fazia, a seguir,
sobre o que ela e os primos teriam visto corresponde, em grande parte, às
palavras que se encontram na Missão
Abreviada, livro que, na época, servia como catecismo popular e circulava
muito em Portugal. Contava a vidente: “Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar
de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo, os demónios
e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com
forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas...”
Depois desta
visão, Lúcia conta ainda o que ouviu da visão: “Vistes o inferno, para onde vão
as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a
devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão
muitas almas e terão paz.”
A Rússia e o bispo morto pelos soldados
A segunda
parte do segredo vinha a seguir e relacionava-se com a Rússia – referência que
tão pouco foi feita durante aqueles primeiros meses e só apareceu mais tarde
nas novas visões que a religiosa contou ter tido em Tui, quando já estava no
convento. Escreve Lúcia nas suas Memórias:
“A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio
XI começará outra pior”, escrevia, referindo o início da II Guerra Mundial
(Lúcia considerava que a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, foi o
início da guerra, quando o Papa era ainda Pio XI).
A estas referências
– bem como à questão da linguagem anticomunista – não serão alheias a
personalidade do cónego Manuel Formigão, que se tornaria confidente e director
espiritual de Lúcia, por muitos considerado “o quarto mensageiro e o ‘apóstolo’
de Fátima”. Na Enciclopédia de Fátima,
Jesué Pinharanda Gomes escreve que ele foi “o principal escritor do primeiro
período da literatura sobre Fátima, assim como o doutrinador que deu consistência
à mensagem que os pastorinhos, por sua cultura e idade, dificilmente
conseguiriam pôr em forma discursiva”.
Nas Memórias, e a propósito da guerra, Lúcia
acrescentava: “Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida,
sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus
crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo
Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado
Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus
pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo
mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados,
o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o
Meu Coração Imaculado triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se
converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.”
Com a queda
do Muro de Berlim, em 1989, e o fim dos regimes comunistas na Europa de Leste,
muitos pensaram que estaria cumprida a promessa que Lúcia escutara, em 1917. A
própria Lúcia disse, depois desses acontecimentos (mas não antes), que a
consagração que o Papa fizera em 1984 teria sido plenamente realizada. A
referência ao fim dos “erros da Rússia” tornou-se, entretanto, cada vez mais
rara no discurso oficial do Santuário e da própria hierarquia da Igreja.
A terceira
parte do segredo seria escrita por Lúcia em 1944, a pedido do bispo de Leiria,
D. José Alves Correia da Silva. Seria revelada só no ano 2000, durante a última
visita do Papa João Paulo II ao santuário. A visão de um “bispo vestido de
branco”, que aos pastorinhos parecia o Papa, a subir “uma grande cidade meia em
ruínas”, era o centro da visão revelada por Lúcia. Mas era relativa a um tempo
em que, na Igreja, se falava ainda do Papa como estando prisioneiro no
Vaticano, depois da unificação de Itália e do fim dos Estados Pontifícios, em
1870.
“Chegado ao
cimo do monte, prostrado e de joelhos aos pés da grande cruz foi morto por um
grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram
morrendo uns trás outros os bispos,
sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares...”, dizia o
texto.
Holocausto e paganismo nazi estão ausentes
O documento
não fala da perseguição dos regimes ateus contra a Igreja, mas, na
interpretação lida pelo cardeal Angelo Sodano em nome do Papa e da Santa Sé,
essa era a interpretação correcta dada por Lúcia. Nunca, neste processo e ao
longo do século, há qualquer referência de Lúcia ao regime nazi – que o
Vaticano considera um regime pagão –, ao Holocausto dos judeus ou, mesmo, à
perseguição movida pelos nazis contra tantos cristãos em toda a Europa ocupada.
Crianças judias vítimas da perseguição nazi, acolhidas em Portugal
É conhecido
que, em 2000, o Papa João Paulo II fez saber que lia no documento de Lúcia a referência ao atentado que sofrera
a 13 de Maio de 1981, na Praça de São Pedro, no Vaticano. No comentário
teológico que publicou em Junho de 2000,
o cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e
futuro Papa Bento XVI, relativizaria essa leitura, falando do segredo como
resultado de visões privadas e caracterizando como “razoável” que o Papa
tivesse visto nessa descrição o atentado que sofrera. E acrescentava: “A
conclusão do ‘segredo’ lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de
piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão
consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma
história de sangue e de lágrimas.” (O texto do segredo e do comentário
teológico ao texto estão disponíveis na página do Vaticano na internet).
Com a
implantação da democracia em Portugal, o Santuário de Fátima tem continuado a
atrair milhões de pessoas – são mais de cinco milhões de peregrinos por ano, que
fazem dele um dos mais importantes destinos de peregrinação do mundo católico e
não só. O sítio agreste deu lugar a um “cais”, como escreve frei Bento
Domingues no livro A Religião dos
Portugueses, onde reflecte sobre o fenómeno. Um cais onde as pessoas
depositam as suas lágrimas e as suas esperanças, à procura da luz.
DAS “COISAS DE CRIANÇAS” À LEGITIMAÇÃO DA IGREJA
Depois das visões dos dias 13, os
primeiros 13 anos de Fátima são decisivos na construção do fenómeno; durante os
primeiros três anos, os responsáveis eclesiásticos apenas se interessam por
averiguar o que ali se passa; rapidamente passam a uma adesão clara. O processo
canónico apenas formalizará essa adesão.
No início, pareceu
tudo muito simples: em 13 de Maio de 1917, na Cova da Iria, um lugarejo de
Fátima, três crianças contaram que viram uma mulher em cima de uma azinheira; vinha
“do céu” e viria à terra seis vezes, não garantindo se a Grande Guerra 1914-18 acabaria
já ou demoraria ainda muito tempo; prometeu, no entanto, que as duas raparigas
(Lúcia e a sua prima, Jacinta) iriam para o céu, mas que o rapaz (Francisco,
irmão de Jacinta) teria ainda de rezar as suas “continhas” do rosário.
Dos três, só
Lúcia, a mais velha, via, ouvia e falava com a visão. Jacinta via e ouvia,
Francisco apenas via o que se passava, mas não ouvia nenhum dos diálogos. João
Marto, irmão de Jacinta e Francisco, esteve presente em Agosto num dos
episódios das visões – que se repetiu entre Maio e Outubro –, mas não viu nada senão
os outros três “virados para uma azinheira” e a prima Lúcia que falava, sem que
ele compreendesse o que dizia.
No
catolicismo da época, muito voltado para devoções e para uma relação quase
mágica com a divindade, o ambiente era propício a acontecimentos do género. Ao
mesmo tempo, a guerra e as perseguições da República a membros da Igreja
criavam um ambiente de tensão e sofrimento nas populações.
Mesmo assim,
as reacções perante o sucedido manifestavam uma grande diversidade: Fátima era
uma maquinação do clero ou apenas uma manifestação de crendice; as aparições não
eram verdadeiras ou eram uma manifestação divina... No campo republicano, nem
todos rejeitariam liminarmente os acontecimentos. Uma das evidências disto
mesmo é a reportagem de Avelino de Almeida publicada n’O Século de 15 de Outubro de 1917, que terminava com o jornalista a
escrever: “Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro
bailado do Sol que (...) deixou naturalmente impressionados (...) os livres
pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que
acorreram”.
O
historiador Bruno Cardoso Reis, num artigo na revista História sobre os primeiros 50 anos de Fátima, nota que, mesmo
entre os apoiantes de Afonso Costa “não parece ter havido consenso sobre a
melhor forma de lidar” com o fenómeno.
Morte, fome e miséria
Certo é que
aqueles primeiros anos foram decisivos, mesmo se muito diferentes do que viria
a ser a configuração do fenómeno ao longo das décadas seguintes. De tal modo
que vários críticos católicos e especialistas passaram a falar de “Fátima I” (o
que aconteceu em 1917) e de “Fátima II” (as visões posteriores de Lúcia e as
narrativas subsequentes do fenómeno, incluindo o chamado “segredo de Fátima”).
As visões de
Fátima surgem no contexto de um ano terrível para o país. Na apresentação do
livro A Senhora de Maio, o
historiador Fernando Rosas (num texto disponível em áudio no sítio
esquerda.net) referia alguns dos acontecimentos que converteram 1917 no annus terribilis” para o regime liderado
por Afonso Costa, começando com a ida do Corpo Expedicionário Português para os
campos de batalha da Flandres e da França, logo em Janeiro.
Durante os
meses seguintes, outros acontecimentos graves se registaram, recordava Rosas: a
“revolta da batata” em Maio, vagas de assaltos a mercearias, greves na
construção civil e nos bombeiros, uma grande greve dos Correios, com “mortos e
centenas de presos”, a “epidemia endémica de tifo nas cidades”, as primeiras
mortes de soldados portugueses nas trincheiras.
Era um “pathos de morte, fome e miséria”,
resumia o historiador, a que se somou, politicamente, uma ruptura no Partido Democrático,
agravando as tensões na liderança do regime. Fernando Rosas fala de um
“ambiente propício para o providencialismo salvífico, tanto no plano religioso
como no plano político”: os acontecimentos de Fátima, entre Maio e Outubro de
1917, precedem o golpe de Sidónio Paes, em Dezembro. “Mas ambos respondem ao
mesmo ambiente providencialista e de salvação nacional”, observa.
Soldados numa trincheira durante a Grande Guerra 1914-18
No início, o
que se passa em Fátima é olhado de soslaio por muitos membros da hierarquia –
quase todos, mesmo. “Entre o final de 1917 e o início de 1920 Fátima fica, de
certo modo, entregue a si mesma, pela conjugação de causas eclesiásticas e
políticas”, nota Bruno Cardoso Reis no texto já citado.
“Coisas de crianças... eu era um incrédulo”
No livro Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão
Cristã, publicado no início de Abril, o bispo e historiador Carlos Azevedo divulga
documentos dos arquivos do Vaticano que ajudam a perceber o modo como a
hierarquia católica (não) olhou para Fátima nos primeiros três ou quatro anos.
Em Abril de
1917, recorda Carlos Azevedo, a Santa Sé já decidira corresponder aos desejos
de muitos católicos leirienses, restaurando a diocese de Leiria. A decisão seria
concretizada pelo Papa Bento XV em Janeiro de 1918. Mas, em todos os muitos documentos
sobre esse processo, “não há a mais leve referência, ainda que implícita, aos
acontecimentos da Cova da Iria”, nota o autor.
A escolha do
bispo para liderar a diocese restaurada, no entanto, será um processo que se
arrastará ainda durante três anos: José Alves Correia da Silva só será nomeado
em Fevereiro de 1920, tomando posse em Agosto. Na vasta correspondência trocada
entre a Santa Sé e vários bispos portugueses durante o processo de selecção, tão
pouco “os acontecimentos de Fátima são chamados ou citados”. Mais: a escolha do
nome “em nada foi influenciada previamente pelas visões ocorridas”. O bispo
nomeado, aliás, confessaria depois: “Nem sabia ao certo onde ficava Fátima.
Coisas de crianças, dizia de mim para mim (...). Em suma: eu era um incrédulo.”
A “absoluta incredulidade”
tinha sido também a posição inicial – embora por poucos dias – de outra pessoa
que viria a ser chave na construção do fenómeno: o padre Manuel Nunes Formigão,
muitas vezes chamado “apóstolo de Fátima” ou “quarto pastorinho” (ver caixa).
É ele um dos
padres que, por incumbência do substituto do patriarca, o bispo Lima Vidal, faz
os primeiros inquéritos às crianças. Dois anos depois, Formigão recordará no
jornal A Guarda, sob o pseudónimo
Visconde de Montelo, o que acontecera a 13 de Setembro, quando foi à Cova da
Iria: “Não me aproximei do local das aparições”, contava, “e quase que não
conversei com ninguém, ficando na estrada a cerca de trezentos metros de distância,
e apenas constatei a diminuição da luz solar, que me pareceu um fenómeno sem
importância devido porventura à elevada altitude da serra. Continuei, por isso,
a manter-me numa prudente mas benévola expectativa, como sucedia desde os
acontecimentos de Agosto, porque antes deles esboçava invariavelmente um
sorriso de absoluta incredulidade ao ouvir qualquer referência às aparições de
Fátima.”
Um vestido decente, até aos pés...
No final
desse mês, a 27, o padre regressa à Cova da iria para interrogar os videntes. Dessa
vez, ficaria convencido: “Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade
(...), rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses”,
escreveu ele, no relato que fez dos interrogatórios. Não eram “vítimas de
alucinação” nem estariam “iludidas” ou, tão pouco, auto-sugestionadas. Não
havia sequer histerismo, “segundo a declaração de um médico consciencioso que
as examinou cuidadosamente”.
A única
questão que o padre Formigão ainda não conseguia responder era sobre a suposição
de uma “intervenção diabólica”, pelo facto de as crianças dizerem que a Senhora
tinha um vestido que descia “até um pouco abaixo do meio da perna”. Comentaria
o padre, no relato do primeiro interrogatório: “Nossa Senhora não pode,
evidentemente aparecer senão o mais decente e modestamente vestida. O vestido
deveria descer até perto dos pés. O contrário (...) constitui a dificuldade
mais grave a opor à sobrenaturalidade da aparição e faz nascer no espírito o
receio de que se trata de uma mistificação.”
Com novas
perguntas que ele foi fazendo aos videntes, as crianças foram entendendo
posteriormente que, afinal, o vestido descia até aos tornozelos...
Em 1920, com
a chegada do bispo à nova diocese, o padre Formigão insiste na criação de uma
comissão de averiguação aos acontecimentos. No primeiro encontro entre ambos,
em Setembro, o bispo mostra-se “frio e indiferente”. Mas, tal como Formigão,
também o bispo mudará rapidamente de opinião pois, no mês seguinte, ordena ao
vigário de Ourém, padre Jacinto Ferreira, que compre em seu nome os terrenos da
Cova da Iria.
A 10 de
Novembro de 1921, Formigão escreve ao bispo, dizendo que é urgente “a
organização de um processo episcopal de inquérito” que concluirá seguramente
pelo “reconhecimento da sobrenaturalidade dos acontecimentos”.
Cónego Formigão, o quarto pastorinho de
Fátima
Na conclusão
do seu texto sobre o cónego Manuel Nunes Formigão na “Enciclopédia de Fátima”,
o investigador Jesué Pinharanda Gomes não tem dúvidas em concluir: Formigão é
“deveras, o quarto mensageiro e o ‘apóstolo’ de Fátima”. Ele viria a tornar-se,
acrescenta, “o principal escritor do primeiro período da literatura sobre
Fátima, assim como o doutrinador que deu consistência à mensagem que os
pastorinhos, por sua cultura e idade, dificilmente conseguiriam pôr em forma
discursiva”.
Alguns
acontecimentos terão sido decisivos nesta adesão de Formigão ao fenómeno: em
1909, o padre esteve em Lourdes, entre Julho e Setembro, trabalhando como padre
e servita do santuário. Nessa altura, refere o texto citado, “suplicou, aos pés
da imagem da gruta [de Lourdes], que lhe concedesse a graça de se tornar ‘um
dos mais ardorosos propagandistas do seu culto em Portugal’, fazendo a promessa
de se consagrar a essa missão”, segundo uma carta que, em 1930, escreve ao
cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa.
Já de
regresso a Portugal, Formigão foi para professor do seminário de Santarém
(nessa altura parte do patriarcado de Lisboa), tendo ficado também responsável
da Sopa dos Pobres da cidade (o “bodo a mil pobres”, como era conhecida), na
qual contava com a ajuda de muitos estudantes aos quais dava aulas também no
Liceu Sá da Bandeira. Com a instauração da República, o novo administrador do
concelho dissolveu a Conferência de São Vicente de Paulo, que dinamizava a Sopa
dos Pobres, o que terá ajudado ao seu descontentamento e oposição à República.
Em 1917, o
padre Manuel Formigão passou da “absoluta incredulidade” à atitude oposta,
depois de interrogar os miúdos e de se convencer da veracidade dos seus
testemunhos – mesmo se pouco claros em vários aspectos. Depois de interrogar os
pastorinhos, a 27 de Setembro, Formigão achou que estava diante de testemunhos
verdadeiros, que nenhuma pressão conseguia demover; e que também nada
autorizava deduzir que se estivesse perante qualquer tipo de auto-sugestão,
histeria ou alucinação. Só ficava por resolver a questão do tamanho do vestido,
que rapidamente os testemunhos das crianças alteraram a partir das sugestões do
padre.
Legitimação concluída
Poucos meses
antes, em Junho, Lúcia deixara Fátima (Francisco morrera em 1919, Jacinta em
1920, ambos vítimas da pneumónica). Entra, como educanda, no Colégio de Vilar,
das Irmãs Doroteias, no Porto. No ano seguinte, o bispo cria a comissão
canónica de investigação aos acontecimentos, composta por sete padres – entre
os quais Manuel Nunes Formigão.
Apesar de o
bispo querer um processo rápido, os trabalhos da comissão arrastam-se. O
relatório final, redigido por Formigão e com breves emendas aprovadas pelos
restantes membros, é entregue a 13 de Abril de 1930. O investigador José
Barreto nota que o texto mostra um processo de carácter “formal e meramente
ratificatório”, pois inclui, quase ipsis
verbis, vários artigos que o próprio Formigão escrevera ao longo desses 13
anos.
Esse facto é
um problema, diz Barreto: “A conjugação, numa só pessoa, para mais usando junto
do público duas identidades distintas, da dupla qualidade de principal
propagandista e de condutor-relator do processo canónico de averiguações sobre
Fátima, não pode, obviamente, deixar de suscitar grandes reservas sobre a
seriedade e o rigor do dito processo.”
Entretanto, o
relatório não tinha sido necessário para se iniciar a construção do santuário:
em 1928, foi lançada a primeira pedra da futura basílica, dois anos depois do
golpe militar ter possibilitado à Igreja mais liberdade de acção. Vários bispos
tinham já ido a Fátima e, em 1929, Cerejeira é entronizado como cardeal e
patriarca de Lisboa. O novo Presidente da República, Óscar Carmona, visita
Fátima pela primeira vez.
Bruno
Cardoso Reis resume: “Não foi a Igreja institucional que criou Fátima ou que a
impôs”, mas “também não é certo dizer que foi Fátima que se impôs à Igreja
institucional”, pois a hierarquia poderia ter-se pronunciado contra o sucedido,
como defendiam vários católicos de destaque na época. O processo de consolidação
passa, nota ainda, “por uma série de decisões” do bispo de Leiria. Em 1930, a
legitimação de Fátima está terminada, a canonização do fenómeno virá depois.
Bibliografia
Documentação Crítica de Fátima, vol. I e II;
Enciclopédia
de Fátima, ed. Principia;
Memórias da
Irmã Lúcia, ed. Santuário de Fátima;
A
Senhora de Maio, de António Marujo e Rui Paulo da Cruz, ed. Temas e
Debates/Círculo de Leitores;
“Fátima nos seus primeiros cinquenta anos”, artigo
de Bruno Cardoso Reis na revista História;
Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à
Visão Cristã, de Carlos Azevedo, ed. Esfera dos Livros;
Religião e Sociedade – Dois Ensaios, de
José Barreto, ed. ICS
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