Há dias, na revista espanhola Vida Nueva,
o padre Antonio García Rubio, pároco de Nossa Senhora do Pilar (Madrid),
escrevia, numa “carta ao Papa”: “A mim, pessoalmente, cada um dos seus gestos e
palavras provocam-me até ao ponto de me sentir convidado e empurrado a ser
outro padre e outro cristão diferente.”
Há meses que me pergunto: “E o que fazemos, agora,
com o que o Papa Francisco anda a dizer-nos e a fazer? Como assumimos, enquanto
crentes e comunidades, os desafios que ele diariamente nos coloca?” Seja no
campo de uma nova atitude perante o mundo, da aceitação do pluralismo na Igreja
ou de trabalhar por uma profunda mudança na Igreja.
Em alguns casos, dá a sensação de que muita gente
ainda não deu conta de que sopram ventos de frescura do lado do Vaticano.
Ventos que acentuam a importância de radicar a nossa vida no evangelho de Jesus
como fonte primeira; e que reforçam a ideia de que não devemos ter cristãos
obedientes mas gente adulta pelo baptismo. E capaz de correr riscos.
O texto que o bispo auxiliar de Lisboa, Nuno Brás,
escreveu há dias, sobre a freira beneditina espanhola Teresa Forcades i Vila no jornal Voz da Verdade parece revelar falta de entendimento de alguns sinais dos tempos que o Papa não
se tem cansado de nos desvelar. E, sobretudo, não é um texto que manifeste
preocupação em acolher, mas antes em condenar – ainda para mais, sem qualquer
possibilidade de defesa ou contraditório por parte da visada.
O livro A Teologia Feminista na História de Teresa Forcades (ed. Presente) acabou de
ser traduzido em Portugal. É um pequeno estudo, de 100 páginas, sobre a relevância
de algumas mulheres crentes no desenvolvimento de ideias teológicas e sociais.
E sobre o apagamento a que muitas dessas ideias foram sujeitas porque foram
formuladas por... mulheres.
Nuno Brás não leu o livro, a avaliar por aquilo que
diz no artigo. Prefere apenas tomar o que leu nos jornais, cuja linguagem e
imediatismo tantas vezes já criticou, mesmo em artigos do Voz da Verdade: “A serem
verdadeiras as entrevistas que deu [Teresa Forcades] e as notícias que a
mostraram a andar por várias partes do mundo à procura de seguidores, quase
sempre denunciada pelos Bispos desses lugares, é uma dessas”. Ou seja, alguém
que quer correr sozinho com o seu modo de viver a fé, seduzido “pela exposição
mediática”, que gosta, sobretudo, de “se ver ao espelho”.
Tive oportunidade de ler o livro. Que recomendo
vivamente, pois é um estudo profundo, sério e documentado sobre o tema, mesmo
se não estou de acordo com algumas ideias. Mas também tive oportunidade de
ouvir Teresa Forcades na sua passagem por Lisboa. E de a ouvir dizer que se
apaixonou por Jesus quando, aos 15 anos, leu os evangelhos e, educada numa
família não crente, perguntou: “Porque me esconderam esta beleza durante tanto
tempo?”
Quem assim falava não será alguém que queira correr
sozinho, que ande “à procura de seguidores” ou que queira ficar apenas a ver-se ao
espelho. Antes manifesta uma profunda paixão pela pessoa de Cristo que,
infelizmente, é aquilo que parece faltar em tantos responsáveis da Igreja
Católica. É pena, aliás, que nenhum meio de comunicação católico - como o Voz da Verdade - tenha entrevistado esta
freira beneditina para aprofundar o seu pensamento profundo e biblicamente
estimulante.
Teresa Forcades já publicou vários livros e o seu pensamento teológico é conhecido e respeitado em muitos
sectores, mesmo fora da Igreja, na Catalunha, em Espanha e em outros países como a Alemanha, por exemplo, onde foi convidada para leccionar. Aliás, a sua grande
erudição manifesta-se também na sua formação médica, que a levou a denunciar
vigorosamente os interesses das multinacionais farmacêuticas, por exemplo com
as vacinas da gripe A.
Regressemos ao tema das mulheres. Quanto mais
releio a Bíblia e muitos exegetas, mais me convenço de que, no início, as
mulheres tiveram um papel deveras mais importante (se “importante” é uma
palavra que se pode usar quando se fala de comunidade cristã) no cristianismo
primitivo do que andámos a ler durante vinte séculos. Os evangelhos citam várias vezes as mulheres que
seguiam Jesus “desde a Galileia”. No momento da crucificação, por exemplo,
lê-se no Evangelho de S. Mateus: “Estavam ali, a observar de longe, muitas
mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia e o serviram. Entre elas,
estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de
Zebedeu.” Maria de Betânia, que se senta a escutar Jesus, adopta a atitude que
só os discípulos podiam assumir: estar aos pés do mestre era, na literatura
judaica rabínica, sinónimo e símbolo de ser discípulo de alguém. E, em várias
comunidades fundadas por São Paulo, ele deixa mulheres na liderança: “Saudai Andrónico e Júnia (...) que tão
notáveis são entre os apóstolos”, escreve ele na Carta aos Romanos (Rom 16, 7;
mas vale a pena ler também o estudo de Jerome Murphy O’Connor, Paulo e
as Mulheres, ed. Paulinas).
Não defendo que o Papa decrete já amanhã que as
mulheres podem ser ordenadas. Não. Nem me interessa que o sejam, se isso
servir para perpetuar um modelo de ministério baseado no poder e não no
serviço, que tantas vezes ainda perdura na Igreja, apesar da doutrina do
Concílio Vaticano II. Mas parece-me que será bom que, entre todos, aprofundemos
as raízes bíblicas do tema. E que, progressivamente, se assim o entender o
discernimento eclesial, nos abramos à possibilidade de mudar, para termos uma
Igreja mais fiel à sua origem.
Mas há outra questão que me parece grave no texto
que Nuno Brás escreve (e seja-me perdoado o tom mais familiar do tratamento;
falei várias vezes com Nuno Brás a propósito do Voz da Verdade quando
ele, há cerca de 20 anos, dirigiu o jornal e estava interessado em renová-lo).
É quando ele invoca a sua autoridade, no final: Teresa Forcades “não tem o
direito de afirmar que as suas opiniões individuais fazem parte da fé que
recebemos dos Apóstolos e que hoje vivemos como cristãos, unidos ao Papa e à
Igreja do mundo inteiro. E eu, como sucessor dos Apóstolos, tenho o dever de o
dizer claramente. Mesmo com o risco de lhe fazer publicidade.”
O argumento da autoridade usa-se quando já não
temos mais argumentos. Como pai, quando não sou capaz de fundamentar opções
perante os meus filhos, também digo: “Sou o teu pai, por isso é como digo.”
Mas eu, que não
sou sucessor dos apóstolos, sinto-me apóstolo. Por causa do meu baptismo, que
procuro assumir o melhor que sei e posso, na minha fragilidade e com as
limitações que me conheço. E porque é isso que leio nos textos do Concílio
Vaticano II, quando na Constituição Lumen Gentium sobre a
Igreja se diz (LG 32): “Reina porém igualdade entre todos quanto à
dignidade e quanto à actuação comum do conjunto dos fiéis em favor da
edificação do Corpo de Cristo.”
Vem já do tempo do Papa Pio XII a afirmação de
que, “com a ausência da opinião pública, [faltaria à Igreja] qualquer
coisa de vital e a culpa recairia tanto sobre os pastores como sobre os leigos”
(Instrução Pastoral Communio et Progressio, nº 115; cfr. Pio XII,
Alocução ao Congresso Internacional de la Prensa Católica, 1950). Esta
afirmação significa que a comunidade não tem de viver no unanimismo nem
limitar-se a repetir uniformemente o que a hierarquia diz. Seria fastidioso
citar agora vários textos dos últimos papas a dizer isso mesmo. Mas vale a pena
recordar apenas que, na Evangelii Gaudium, a exortação do Papa Francisco
publicada na semana passada, ele sublinha a riqueza e importância da
diversidade na Igreja, e diz que os bispos devem ouvir toda a gente e não
apenas os que estão “sempre prontos” a lisonjeá-los. Por isso, Teresa
Forcades faz uma boa acção em relação a alguns bispos (sim, que há outros que
concordam com várias coisas que ela diz).
Mas não me bastam afirmações de papas, mesmo se são
importantes. São Paulo escrevia na Carta aos Gálatas: “Foi para a liberdade que
Cristo nos libertou.” A carmelita Edith Stein (canonizada por João Paulo II) dizia
que “a liberdade pessoal é um segredo tão grande que perante ele até Deus pára
com respeito.” E que “o nosso mundo interior é o lugar da liberdade absoluta”.
Por isso, não posso entender a minha pertença à comunidade cristã e, sobretudo,
a minha adesão a Jesus, senão como uma grande afirmação de liberdade. Tem sido
essa, aliás, a minha experiência: Jesus e o seu evangelho têm-me ensinado a ser
cada vez mais livre.
E sim: é
verdade que a fé cristã tem uma dimensão comunitária intrínseca, que é pena aliás
que fique por vezes obscurecida; mas se essa fé não for assumida individual e
responsavelmente, onde fica a adesão pessoal a Deus e ao baptismo?
Tomando de novo a frase inicial do padre Antonio
García Rubio, é bom sentirmo-nos convidados e empurrados a sermos cristãos
diferentes. Para melhor, já agora.
Dizendo tudo isto, mantenho o que disse há um ano,
perante várias pessoas, incluindo o bispo Nuno Brás: a beleza do cristianismo e
da proposta que Jesus faz é a de saber prosseguir no amor – que é o mais
importante de tudo, como nos diz a Carta de Paulo aos Coríntios. É isso mesmo
que sinto na experiência de ter muitos amigos com ideias diferentes das minhas
e de, apesar disso ou por isso mesmo, continuarmos a querer o melhor uns para
os outros. Mesmo sabendo que todos trilhamos caminhos diferentes.
4 comentários:
É isso mesmo. Parebéns por este texto!
Concordo totalmente. Parabéns pelo texto!
Felicito o António Marujo pela coragem serena do seu texto. Parece-me ser muito raro um cristão fazer publicamente uma correcção fraterna a um bispo. E neste caso foi muito oportuna!
Manuel Viana.
Muito bem!
O seu texto fez-me sentir orgulho em ser cristão e grato a Deus por me sentir livre e amado.
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