Na cena final, é um Barioná convicto que responde à sua mulher, Sara: “Pelo nosso filho tens que agarrar-te à vida com avareza, com raiva. Educa-o sem ocultar-lhe nada das misérias do mundo e arma-o contra elas. E dou-te uma mensagem para ele. Mais tarde, (…) muito mais tarde, quando sentir a sua imensa solidão e abandono, quando te fale de um certo sabor a fel no fundo da sua boca, diz-lhe: ‘O teu pai sofreu tudo isso que tu sofres agora e morreu na alegria’. (…) Na alegria! Sou livre, tenho o meu destino nas minhas mãos. Vou contra os soldados de Herodes e Deus vem ao meu lado. Sou leve, Sara, leve. Ah, se soubesses o quão leve sou! Oh, Alegria, Alegria! Chora de alegria. Adeus, minha doce Sara. Levanta a cabeça e sorri-me. Temos que ser felizes: quero-te muito e Cristo nasceu.”
O texto é de (para muitos um improvável) Jean-Paul Sartre e foi representado pela primeira vez num campo de prisioneiros, em 1940, em plena II Guerra Mundial. Hoje, amanhã e domingo e, de novo, nos mesmos dias da próxima semana, será levado à cena pelo Teatro do Ourives, numa encenação de Júlio Martin da Fonseca. O espectáculo decorre na Rua de São Domingos à Lapa, 41, em Lisboa. Sextas e sábados às 21h30 e domingos às 18h00; a entrada é gratuita mas é necessário fazer reservas pelo telefone 916 770 513 ou através do mail teatrodoourives@gmail.com.
Sobre a peça, escreveu o próprio Sartre, em 31 de Outubro de 1962: “O facto de me ter debruçado sobre o tema da mitologia do cristianismo não significa que a direcção do meu pensamento tenha mudado nem sequer por um instante durante o cativeiro. Tratava-se simplesmente, de acordo com os sacerdotes prisioneiros, de encontrar um tema que pudesse tornar realidade, nessa noite de Natal, a união mais ampla possível entre cristãos e não crentes.”
Este mistério da Natividade foi escrito e levado ao palco no campo de prisioneiros Stalag 12D, em Dezembro de 1940, por um Sartre, nas palavras de Bernard-Henry Lévy “decididamente fiel ao seu papel de animador entusiasta”.
Durante muito tempo não se encontrou o texto. Durante muito tempo, Sartre proibiu a sua representação, à excepção de uma edição-lembrança de quinhentos exemplares, fora do circuito comercial, nos anos 60 do século XX.
Hoje já dispomos deste texto, que é a sua primeira peça de teatro. Assim como de alguns relatos dos protagonistas deste momento histórico de dor e de esperança.
Segundo o testemunho do Padre Marius Perrin, companheiro de Sartre no cativeiro: “Depois de Barioná, tudo mudou. Foi como se Sartre tivesse introduzido um ‘vírus’. Foi como se, graças a ele, ‘um longo período de incubação’, em que estivemos impedidos de nos revoltar, tivesse finalmente chegado ao fim”.
Também para Sartre, Barioná representou – de acordo com Bernard - Henry Lévy – “a verdadeira viragem na vida e na obra (…) é desta experiência do Stalag e da elaboração da peça nesse local, que data o nascimento de um segundo Sartre, efectivamente messiânico, optimista, engagé num sentido novo do termo e que volta subitamente as costas à bela metafísica pessimista que era como um salvo-conduto, uma vacina, contra os desvarios políticos.”
Encontramos nesta obra uma faceta menos conhecida de Sartre, mas sempre presente subterraneamente, uma herança discreta que lhe vem dos avós e continuada pelos pais através de uma mistura católica e protestante.
Em As Palavras ele anota: “Escreve-se para os seus vizinhos ou para Deus” e ele desde muito cedo parece ter tomado “o partido de escrever para Deus a fim de salvar os seus vizinhos”.
Segundo o testemunho do Padre Marius Perrin “os homens de Barioná correm talvez para a sua morte (…) para que a esperança dos homens livres não seja assassinada”.
E este Mistério de Natal, de Jean-Paul Sartre, é certamente um belíssimo e comovente convite “à descoberta fulgurante da liberdade”.
Em O Século de Sartre, Bernard-Henry Lévy faz a sinopse da peça:
“O texto conta a história de uma aldeia da Judeia sob ocupação romana.
Conta como, dado que os Romanos tinham decidido aumentar os impostos, o chefe da aldeia, Barioná, exorta os seus concidadãos a ripostar deixando de fazer filhos.
Mas eis que a sua mulher Sara lhe anuncia, que está precisamente grávida – e eis que, exactamente no mesmo dia, da aldeia vizinha de Belém chega a notícia do Nascimento de um outro recém-nascido, “enfaixado e deitado num presépio”, que os Magos e os feiticeiros creditados anunciam como sendo o Messias.
Que irá fazer Barioná? Irá, como pensou inicialmente, matar este recém-nascido, cujo futuro, crucificação e ressurreição foram vaticinados pelo feiticeiro da aldeia? Ou irá, ao invés, converter-se e protegê-lo da violência dos Romanos que, alarmados pela agitação que reina na região, decidiram também suprimi-lo.
Depois de reflectir, Barioná decide proteger a criança. Sacrificando a sua vida e a dos seus aldeões para proteger a do pequeno Messias, ele aguentará os Romanos até que Maria, José e o seu recém-nascido tenham conseguido escapar. E a Sara, que se despede numa derradeira cena comovente, também lhe diz que mudou de opinião quanto a eles e que, por conseguinte, quer que ela dê à luz o seu filho e que lhe diga, à hora da nascença, que o seu pai morreu na alegria!”
Em 2005, por ocasião do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre, a editora Gallimard publicou uma edição comemorativa do teatro completo do filósofo francês.
Esta obra incluiu pela primeira vez o drama Barioná, a primeira peça de teatro escrita pelo autor. A peça foi representada três vezes no Stalag 12D, em Tréveris, na Alemanha – onde o autor esteve preso – nos dias 24, 25 e 26 de Dezembro de 1940, e foi presenciada por cerca de dois mil prisioneiros de cada vez.
Em apenas seis semanas, Sartre não só escreveu a obra, como ensaiou um dos personagens – o Rei Mago Baltazar –, dirigiu os actores e supervisionou a fabricação do cenário e figurinos.
Numa das suas cartas a Simone de Beauvoir, escreveu:
Seguramente devo ter talento como autor dramático: escrevi uma cena do anjo que anuncia aos pastores o nascimento de Cristo, que deixou a todos sem respiração (…) inclusivamente a alguns saltaram-lhes as lágrimas.
Parece que fiz um Mistério de Natal muito comovente, ao ponto de alguns dos actores, ao declamarem, lhes saltarem as lágrimas.
Esta representação teve como origem o desejo e a autorização de celebrar no campo de prisioneiros de guerra, a Missa do Galo. Esta notícia e a relação de mútuo respeito entre Sartre e um grupo de padres católicos – Marius Perrin, o dominicano Pierre Boisselot, que exercia a função de capelão do campo, o jesuíta Maurice Espitallier e o padre Henry Leroy – levaram a que ele tomasse a iniciativa de propor a junção do sagrado e do profano: “Porque não ressuscitamos a tradição dos Mistérios que antes se celebravam e nos quais todos podem participar de alguma maneira?”
A minha primeira experiência teatral foi particularmente afortunada. Enquanto estive preso na Alemanha em 1940, escrevi, pus em cena e interpretei uma obra de Natal, a qual, conseguindo esquivar a vigilância do censor alemão, através de símbolos simples, se dirigia aos meus companheiros de cativeiro (…) naquela ocasião, ao dirigir-me aos meus companheiros por cima das luzes das gambiarras e falando-lhes desde a sua condição de prisioneiros, vi-os de repente tão realmente silenciosos e atentos que compreendi o que o teatro tinha de ser: um grande fenómeno colectivo e religioso.
(Com base em textos e informações do Teatro do Ourives)
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