"O toque do presente": com este título, escrevia ontem no jornal digital Página 1 o teológo e poeta José Tolentino Mendonça:
Como dizia Oscar Wilde, “o mais difícil de ver é o óbvio”. Sem dúvida, de todos os tempos interiores de que dispomos, o mais difícil de habitar é o tempo presente. O passado é um tempo até certo ponto confortável, pois está intacto mesmo quando o revemos nos seus ângulos dolorosos. O futuro também transmite essa impressão difusa de protecção. Mas o presente, o desafio do presente, o desafio do agora, da palavra, do sentimento, do gosto que é o meu presente, esse pede-nos quase sempre uma longuíssima viagem.
Há um texto de Cecília Meireles, intitulado “Canção Excêntrica” a que volto muito:
“Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.
Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.”
É verdadeiramente uma canção excêntrica mas que, numa hora ou noutra, acabamos por trautear. Ela centra-nos na experiência do tempo, no seu extenso drama, aquilo que a sabedoria grega transmite com o mito de “Kronos”, o deus implacável que come os seus próprios filhos! Muitas vezes (demasiadas vezes) a vida é essa experiência de desgaste, de devoração, experiência inexorável de declive e perda. Aí não há espaço para o presente. Se o tempo é deglutição infi nita, só nos apercebemos dele quando passou. Compreendemos o que as coisas são quando elas já não são. Esta é a terrível mas sapiente imagem que o mito nos lega. Há, porém, outra palavra – uma palavra em que os textos cristãos das origens insistiram muito: “Kairos”, isto é, o tempo entrevisto como qualidade, oportunidade, lugar da revelação e da surpresa.
A nossa vida está entre estas duas categorias: o Kronos, esse tempo que nos cavalga, e o Kairos, esse tempo que nos reaproxima da vida como território da revelação criativa de nós próprios.
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