quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sermos melhores cristãos, mesmo com ideias diferentes – sobre um texto do bispo Nuno Brás

Há dias, na revista espanhola Vida Nueva, o padre Antonio García Rubio, pároco de Nossa Senhora do Pilar (Madrid), escrevia, numa “carta ao Papa”: “A mim, pessoalmente, cada um dos seus gestos e palavras provocam-me até ao ponto de me sentir convidado e empurrado a ser outro padre e outro cristão diferente.”
Há meses que me pergunto: “E o que fazemos, agora, com o que o Papa Francisco anda a dizer-nos e a fazer? Como assumimos, enquanto crentes e comunidades, os desafios que ele diariamente nos coloca?” Seja no campo de uma nova atitude perante o mundo, da aceitação do pluralismo na Igreja ou de trabalhar por uma profunda mudança na Igreja.
Em alguns casos, dá a sensação de que muita gente ainda não deu conta de que sopram ventos de frescura do lado do Vaticano. Ventos que acentuam a importância de radicar a nossa vida no evangelho de Jesus como fonte primeira; e que reforçam a ideia de que não devemos ter cristãos obedientes mas gente adulta pelo baptismo. E capaz de correr riscos.
O texto que o bispo auxiliar de Lisboa, Nuno Brás, escreveu há dias, sobre a freira beneditina espanhola Teresa Forcades i Vila no jornal Voz da Verdade parece revelar falta de entendimento de alguns sinais dos tempos que o Papa não se tem cansado de nos desvelar. E, sobretudo, não é um texto que manifeste preocupação em acolher, mas antes em condenar – ainda para mais, sem qualquer possibilidade de defesa ou contraditório por parte da visada.
O livro A Teologia Feminista na História de Teresa Forcades (ed. Presente) acabou de ser traduzido em Portugal. É um pequeno estudo, de 100 páginas, sobre a relevância de algumas mulheres crentes no desenvolvimento de ideias teológicas e sociais. E sobre o apagamento a que muitas dessas ideias foram sujeitas porque foram formuladas por... mulheres.
Nuno Brás não leu o livro, a avaliar por aquilo que diz no artigo. Prefere apenas tomar o que leu nos jornais, cuja linguagem e imediatismo tantas vezes já criticou, mesmo em artigos do Voz da Verdade: “A serem verdadeiras as entrevistas que deu [Teresa Forcades] e as notícias que a mostraram a andar por várias partes do mundo à procura de seguidores, quase sempre denunciada pelos Bispos desses lugares, é uma dessas”. Ou seja, alguém que quer correr sozinho com o seu modo de viver a fé, seduzido “pela exposição mediática”, que gosta, sobretudo, de “se ver ao espelho”.

Tive oportunidade de ler o livro. Que recomendo vivamente, pois é um estudo profundo, sério e documentado sobre o tema, mesmo se não estou de acordo com algumas ideias. Mas também tive oportunidade de ouvir Teresa Forcades na sua passagem por Lisboa. E de a ouvir dizer que se apaixonou por Jesus quando, aos 15 anos, leu os evangelhos e, educada numa família não crente, perguntou: “Porque me esconderam esta beleza durante tanto tempo?”
Quem assim falava não será alguém que queira correr sozinho, que ande “à procura de seguidores” ou que queira ficar apenas a ver-se ao espelho. Antes manifesta uma profunda paixão pela pessoa de Cristo que, infelizmente, é aquilo que parece faltar em tantos responsáveis da Igreja Católica. É pena, aliás, que nenhum meio de comunicação católico - como o Voz da Verdade - tenha entrevistado esta freira beneditina para aprofundar o seu pensamento profundo e biblicamente estimulante.
Teresa Forcades já publicou vários livros e o seu pensamento teológico é conhecido e respeitado em muitos sectores, mesmo fora da Igreja, na Catalunha, em Espanha e em outros países como a Alemanha, por exemplo, onde foi convidada para leccionar. Aliás, a sua grande erudição manifesta-se também na sua formação médica, que a levou a denunciar vigorosamente os interesses das multinacionais farmacêuticas, por exemplo com as vacinas da gripe A.
Regressemos ao tema das mulheres. Quanto mais releio a Bíblia e muitos exegetas, mais me convenço de que, no início, as mulheres tiveram um papel deveras mais importante (se “importante” é uma palavra que se pode usar quando se fala de comunidade cristã) no cristianismo primitivo do que andámos a ler durante vinte séculos. Os evangelhos citam várias vezes as mulheres que seguiam Jesus “desde a Galileia”. No momento da crucificação, por exemplo, lê-se no Evangelho de S. Mateus: “Estavam ali, a observar de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia e o serviram. Entre elas, estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.” Maria de Betânia, que se senta a escutar Jesus, adopta a atitude que só os discípulos podiam assumir: estar aos pés do mestre era, na literatura judaica rabínica, sinónimo e símbolo de ser discípulo de alguém. E, em várias comunidades fundadas por São Paulo, ele deixa mulheres na liderança: “Saudai Andrónico e Júnia (...) que tão notáveis são entre os apóstolos”, escreve ele na Carta aos Romanos (Rom 16, 7; mas vale a pena ler também o estudo de Jerome Murphy O’Connor, Paulo e as Mulheres, ed. Paulinas).
Não defendo que o Papa decrete já amanhã que as mulheres  podem ser ordenadas. Não. Nem me interessa que o sejam, se isso servir para perpetuar um modelo de ministério baseado no poder e não no serviço, que tantas vezes ainda perdura na Igreja, apesar da doutrina do Concílio Vaticano II. Mas parece-me que será bom que, entre todos, aprofundemos as raízes bíblicas do tema. E que, progressivamente, se assim o entender o discernimento eclesial, nos abramos à possibilidade de mudar, para termos uma Igreja mais fiel à sua origem.
Mas há outra questão que me parece grave no texto que Nuno Brás escreve (e seja-me perdoado o tom mais familiar do tratamento; falei várias vezes com Nuno Brás a propósito do Voz da Verdade quando ele, há cerca de 20 anos, dirigiu o jornal e estava interessado em renová-lo). É quando ele invoca a sua autoridade, no final: Teresa Forcades “não tem o direito de afirmar que as suas opiniões individuais fazem parte da fé que recebemos dos Apóstolos e que hoje vivemos como cristãos, unidos ao Papa e à Igreja do mundo inteiro. E eu, como sucessor dos Apóstolos, tenho o dever de o dizer claramente. Mesmo com o risco de lhe fazer publicidade.”
O argumento da autoridade usa-se quando já não temos mais argumentos. Como pai, quando não sou capaz de fundamentar opções perante os meus filhos, também digo: “Sou o teu pai, por isso é como digo.”
Mas eu, que não sou sucessor dos apóstolos, sinto-me apóstolo. Por causa do meu baptismo, que procuro assumir o melhor que sei e posso, na minha fragilidade e com as limitações que me conheço. E porque é isso que leio nos textos do Concílio Vaticano II, quando na Constituição Lumen Gentium sobre a Igreja se diz (LG 32): “Reina porém igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à actuação comum do conjunto dos fiéis em favor da edificação do Corpo de Cristo.”
Vem já do tempo do Papa Pio XII a afirmação de que, “com a ausência da opinião pública, [faltaria à Igreja] qualquer coisa de vital e a culpa recairia tanto sobre os pastores como sobre os leigos” (Instrução Pastoral Communio et Progressio, nº 115; cfr. Pio XII, Alocução ao Congresso Internacional de la Prensa Católica, 1950). Esta afirmação significa que a comunidade não tem de viver no unanimismo nem limitar-se a repetir uniformemente o que a hierarquia diz. Seria fastidioso citar agora vários textos dos últimos papas a dizer isso mesmo. Mas vale a pena recordar apenas que, na Evangelii Gaudium, a exortação do Papa Francisco publicada na semana passada, ele sublinha a riqueza e importância da diversidade na Igreja, e diz que os bispos devem ouvir toda a gente e não apenas os que estão “sempre prontos” a lisonjeá-los. Por isso, Teresa Forcades faz uma boa acção em relação a alguns bispos (sim, que há outros que concordam com várias coisas que ela diz).
Mas não me bastam afirmações de papas, mesmo se são importantes. São Paulo escrevia na Carta aos Gálatas: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou.” A carmelita Edith Stein (canonizada por João Paulo II) dizia que “a liberdade pessoal é um segredo tão grande que perante ele até Deus pára com respeito.” E que “o nosso mundo interior é o lugar da liberdade absoluta”. Por isso, não posso entender a minha pertença à comunidade cristã e, sobretudo, a minha adesão a Jesus, senão como uma grande afirmação de liberdade. Tem sido essa, aliás, a minha experiência: Jesus e o seu evangelho têm-me ensinado a ser cada vez mais livre.
E sim: é verdade que a fé cristã tem uma dimensão comunitária intrínseca, que é pena aliás que fique por vezes obscurecida; mas se essa fé não for assumida individual e responsavelmente, onde fica a adesão pessoal a Deus e ao baptismo?
Tomando de novo a frase inicial do padre Antonio García Rubio, é bom sentirmo-nos convidados e empurrados a sermos cristãos diferentes. Para melhor, já agora.

Dizendo tudo isto, mantenho o que disse há um ano, perante várias pessoas, incluindo o bispo Nuno Brás: a beleza do cristianismo e da proposta que Jesus faz é a de saber prosseguir no amor – que é o mais importante de tudo, como nos diz a Carta de Paulo aos Coríntios. É isso mesmo que sinto na experiência de ter muitos amigos com ideias diferentes das minhas e de, apesar disso ou por isso mesmo, continuarmos a querer o melhor uns para os outros. Mesmo sabendo que todos trilhamos caminhos diferentes. 

4 comentários:

paulo disse...

É isso mesmo. Parebéns por este texto!

paulo disse...

Concordo totalmente. Parabéns pelo texto!

Anónimo disse...

Felicito o António Marujo pela coragem serena do seu texto. Parece-me ser muito raro um cristão fazer publicamente uma correcção fraterna a um bispo. E neste caso foi muito oportuna!
Manuel Viana.

Anónimo disse...

Muito bem!
O seu texto fez-me sentir orgulho em ser cristão e grato a Deus por me sentir livre e amado.