Na edição de hoje do Público/P2, publico um texto a partir das entrevistas a dois dos nomes de topo da sociologia religiosa contemporânea. Deus, afinal, não morreu na sociedade, dizem Thomas Luckmann e José Casanova.
Dois dos nomes de topo da sociologia religiosa contemporânea falaram em Lisboa das mudanças na religião na Europa secular e pós-moderna. Confessaram qual é o seu inimigo e referiram que a Europa repete hoje o discurso americano do século XIX
Morte de Deus? Retorno do religioso? Menos gente nas missas? O século XXI será religioso ou não? Esqueçam-se os chavões. A religião nunca deixou de estar presente na vida das pessoas e das sociedades. Thomas Luckmann, um dos mais importantes nomes da sociologia religiosa contemporânea, que esteve em Lisboa na semana passada, corta rente: "O religioso nunca se foi embora, só mudou a sua face."Autor de The Invisible Religion - The Problem of Religion in Modern Society (A Religião Invisível - O Problema da Religião na Sociedade Moderna), Luckmann abalou a análise sociológica da religião quando publicou a obra, em 1967. No livro, cunhava a expressão "religião invisível" e verificava que o fenómeno religioso mudara de lugar: da esfera pública para a individual.
Para Luckmann, a religião continuava a ter um lugar importante na vida das pessoas. Mas as suas manifestações principais tinham deixado de ser a frequência de uma igreja ou templo, passando a uma expressão cada vez mais pessoal e individualizada.
Menos de três décadas depois, em 1994, o espanhol José Casanova (radicado nos Estados Unidos desde 1973), publicou Public Religions in the Modern World (Religiões Públicas no Mundo Moderno). Para baralhar de novo, concluía que, na década de 80 do século XX, manifestações como o islão fundamentalista ou a teologia católica da libertação tinham devolvido a religião ao espaço público. Era a desprivatização do fenómeno.
Casanova esteve também em Lisboa onde, com Luckmann, falou sobre Sociedades seculares pós-modernas - mudanças religiosas na Europa, a convite do Instituto de Ciências Sociais. E, apesar de terem analisado diferentes realidades do fenómeno, Luckmann afirmou, ainda no debate, que partilha, com Casanova, "um inimigo intelectual comum: a teoria da secularização".
O espanhol decifra, em entrevista ao P2: "A teoria da secularização, que explicava este processo como a diminuição das crenças e das práticas religiosas, é uma visão muito pobre do que é o dinamismo moderno da religião."
Também em conversa com o P2, Thomas Luckmann acrescenta: "Para alguns, a sociedade tinha-se secularizado e agora dizem que há um retorno ao religioso. Não se trata disso."
É verdade: a prática religiosa diminui desde há décadas, na Europa, em todas as igrejas cristãs - e não apenas no catolicismo. "Ainda que aceitemos a diminuição enorme das práticas religiosas e das crenças oficiais nas sociedades europeias, isso não se explica por as sociedades serem mais modernas", diz Casanova.
Para o sociólogo espanhol, "o que a teoria da secularização dizia é que mais modernização leva necessariamente" a menos religião. "Esse é um modelo teórico muito pobre, não explica nada. Veja-se a sociedade americana: é a mais secular e também a mais religiosa."
Outro exemplo, aponta: na Dinamarca, a esmagadora maioria (96 por cento) das pessoas declara-se luterana; mas a frequência dos cultos dominicais da Igreja Luterana é residual. A realidade portuguesa não anda muito longe desta, com cerca de 20 por cento de pessoas que vão à missa ao domingo, apesar dos 90 por cento que se dizem católicos.
Rede e bricolage
Ambos, Luckmann e Casanova, têm centrado a sua análise no que se passa na Europa e Américas. Thomas Luckmann, de origem eslovena, leccionou na Áustria, Alemanha e Estados Unidos, vivendo hoje na Suíça. Verifica que, nos continentes europeu e americano, "privatização e dimensão pública da religião vão a par". Estruturalmente, afirma, "a religião mudou o seu lugar na sociedade e a sua relação com outras instituições e com a conduta da vida individual".
Para a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, conceitos como liberdade pessoal e autonomia são também importantes. Em O Peregrino e o Convertido - A Religião em Movimento (ed. Gradiva), a socióloga utiliza expressões como "rede" ou "bricolage", para caracterizar a religiosidade sem compromissos hierárquicos ou comunitários muito fortes.
Na modernidade, explica Casanova, "as igrejas perdem o monopólio que tinham" - o da salvação num território concreto, como definia Max Weber. As chamadas seitas - que Hervieu-Léger define como a religião "incontrolável" - assumem-se como grupos de adesão voluntária e não-territorial. Mais ainda, a rede permite a construção de cumplicidades a partir do universo de cada pessoa. E a bricolage, acrescenta o sociólogo espanhol, permite que cada indivíduo "construa o mundo desde si, tomando daqui e dali e elaborando a sua própria religião".
O processo individual relaciona-se com dinamismos colectivos. Na Europa, houve igrejas oficiais em todos os Estados. "Nos EUA, nunca houve uma Igreja estatal ao nível federal", observa Luckmann. Ao contrário do que acontecia na Europa - "se se nasce num país católico ou luterano, fica-se católico ou luterano, a não ser que haja um processo de desvinculação" -, nos Estados Unidos a religião foi sempre objecto de uma escolha individual.
Na Europa, Luckmann apenas identifica modelos diferentes de relação entre Igreja e Estado se se entrar em detalhes: nesse caso, "haveria 50 modelos diferentes". Mas, observa, há pequenas diferenças entre a ortodoxia a Leste (Grécia, Sérvia, Bulgária, Rússia e Leste da Ucrânia), o anglicanismo como religião oficial no Reino Unido, o "recente des-estabelecimento" das igrejas na Europa do Sul e o des-estabelecimento comunista nos países de Leste.
Nos Estados Unidos, acrescenta Casanova, apesar de ter sido ali que se concretizou "o primeiro modelo de separação Igreja-Estado", a religião "esteve sempre presente na vida pública, com um papel político muito forte, à esquerda e à direita". "Nos movimentos de direitos civis dos negros todo o discurso é religioso, na direita conservadora o discurso é religioso", afirma. Exemplos recentes? A oração de um pastor baptista no momento da consagração da vitória eleitoral de Barack Obama ou o modo como o Presidente cessante justificou com uma espécie de nova cruzada a invasão do Iraque.
A realidade dos EUA, que na Europa seria encarada como promiscuidade entre religião e Estado, faz com que "nenhuma Igreja tenha privilégios na esfera pública, mas que haja liberdade total da religião na sociedade", nota José Casanova. O Estado nem sequer "tem direito a perguntar quantas religiões existem nem ninguém tem que ter qualquer autorização para criar uma igreja". Mais trabalho para os investigadores, portanto.
O sociólogo espanhol observa ainda que esse discurso religioso se fez muito no campo do Partido Democrata. Foi depois tomado pelos republicanos, com Ronald Reagan. "A crise do Partido Democrata coincidiu com o abandono desse discurso, que foi agora recuperado", processo que ajudou também na vitória de Obama. O processo de individualização da religião é uma "componente estrutural da religião nas sociedades americana e europeia, mas com histórias diferentes", observa Thomas Luckmann. Essa é a semelhança do fenómeno nos dois lados do Atlântico. Tal individualização - os sociólogos preferem este termo a privatização, "expressão mais negativa", diz Casanova - é positiva: "Os indivíduos fazem-se mais livres, porque assumem a sua autonomia também perante as instituições religiosas."
O processo de privatização das últimas três décadas teve outra consequência paradoxal: foi ele "a condição para que igrejas e religiões voltassem à esfera pública, já não como interlocutores privilegiados" do Estado, mas como "uma voz na esfera pública das sociedades, com direito a apresentar os seus valores e ideias, mas em que a sua voz é contrastada por outras vozes".
Do lado católico, Casanova situa a mudança no Concílio Vaticano II, quando a Igreja assumiu o seu "des-estabelecimento", perdendo a confessionalidade estatal. "Mas a Igreja Católica não aceitou nem aceitará nunca ser uma coisa privada, porque a moral é intersubjectiva. Aceitou perder a posição de confissão de Estado, aceitou não mobilizar partidos, mas nunca aceitaria perder o direito a ter uma voz pública."
O que se passa agora na Europa é que a entrada da Polónia e a possível integração da Turquia na União Europeia trazem, além dos imigrantes, novas realidades. Casanova comenta: "A Polónia, e sobretudo os imigrantes muçulmanos, trazem um discurso novo à esfera pública europeia. De repente, os países europeus, seculares e cristãos, confrontam-se com imigrantes que não são nem seculares nem cristãos."
A Turquia é um caso exemplar: "Antes era secular e menos democrática e agora é mais muçulmana e mais democrática. Foi a incorporação da massa turca, que era muçulmana, na política que levou o islão à esfera pública e que está a criar as condições reais para que a Turquia possa ser membro da UE."
Um processo em tudo semelhante ao dos partidos democratas-cristãos na Europa, nota Casanova: "Foram esses partidos que democratizaram as sociedades europeias depois da II Guerra Mundial. Através do partido religioso, deu-se a democratização do sistema."
Tal como a origem da construção europeia: "A UE foi um projecto democrata-cristão com a bênção do Vaticano, mesmo em França, onde os democratas-cristãos eram minoritários. O processo da UE está baseado em dois princípios: a reconciliação entre França e Alemanha e entre católicos e protestantes."
Turquia, caso exemplar
O caso turco e os imigrantes muçulmanos levaram mesmo o cardeal francês Jean-Louis Tauran, presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso, do Vaticano, a declarar que Deus regressou às sociedades europeias "graças aos muçulmanos". Foi esta "importante minoria" que pediu "espaço para Deus na sociedade", disse Tauran na faculdade de Teologia de Nápoles (Sul de Itália), citado na semana passada pela AFP.
Certo é que muitos europeus convivem mal com este Deus recolocado na praça pública pelos muçulmanos - ou, pelo menos, com uma certa imagem desse Deus. Mas José Casanova não vê nada de muito novo neste fenómeno: no século XIX, os Estados Unidos definiam-se como "um país cristão, mas com a esfera pública dominada pelos protestantes".
Os católicos, que começavam então a chegar da Irlanda, eram considerados antimodernos, anti-seculares e seguidistas do Papa de Roma. "Foi de tal modo que a Igreja Católica adoptou um discurso antimoderno e anti-secular. Mas, hoje, o discurso em relação aos católicos do século XIX está a repetir-se na Europa... em relação aos muçulmanos."
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