domingo, 29 de abril de 2012

"Identidades religiosas em Portugal": comentários de Anselmo Borges


Anselmo Borges comenta, na sua coluna semanal no DN, os resultados do inquérito sobre "Identidades religiosas em Portugal: identidades, valores e práticas - 2011", realizado pela Universidade Católica. Escreve ele, a dado ponto:
" (...)Como conclui o relatório assinado por Alfredo Teixeira, do Centro de Estudos de Religiões e Culturas, da UC, referindo-se à reconfiguração da pertença religiosa em Portugal, "pode observar-se um decréscimo relativo da população que se declara católica e um incremento da percentagem relativa às outras posições de pertença religiosa, com um particular destaque para o universo protestante (incluindo os evangélicos)". "Globalmente, o crescimento relativo dos sem religião em relação ao número de católicos é mais pronunciado do que o crescimento do número dos pertencentes a outras denominações religiosas. Isto é particularmente relevante no caso da categoria 'crentes sem religião'" (4,6%). O conjunto constituído pelos não crentes concentra-se na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Como escreveu Vasco Pulido Valente, a diminuição percentual dos católicos "não se pode tratar como uma catástrofe" (já a sua afirmação de que "o católico típico português, como se esperaria, é hoje uma mulher da província e de meia-idade, longe de qualquer cidade importante e sem educação escolar (ou sem quase educação escolar)" é uma caricatura apressada). De qualquer modo, dizer, como fez o porta-voz da CEP, que "o que é essencial é a qualidade e não a quantidade" pode ser uma resposta preguiçosa.
As explicações para a situação são múltiplas, e a Igreja não é a única responsável. Assim, não se pode esquecer a secularização da consciência nem o materialismo e o hedonismo da nossa cultura bem como a abertura maior do mercado religioso, também por causa da imigração. O sentido de mais autonomia, maior prosperidade e a escolarização poderão contribuir para a indiferença religiosa, o ateísmo e a crença sem pertença. Mas, por parte da Igreja, não poderá ignorar-se a influência negativa dos escândalos da pedofilia, a ostentação do Vaticano, a hierarquização, que não favorece a real participação dos fiéis e nomeadamente das mulheres, a quebra no dinamismo pastoral do clero, a inadaptação aos novos tempos, concretamente no domínio sexual, que conduz a fracturas face à doutrina oficial.(...)"
Ler o texto completo: "Menos católicos mais católicos?" (DN, 28.4.2012)

domingo, 22 de abril de 2012

À Procura da Palavra - O mesmo e Outro

(Crónica do P. Vítor Gonçalves, de comentário aos textos da liturgia católica)

"Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo." (Evangelho segundo S. Lucas, 24, 39 - Domingo III da Páscoa)

Ilustração reproduzida daqui


Os encontros com Jesus ressuscitado são sempre surpreendentes. Passam do desconhecimento inicial à alegria do reconhecimento. Uma saudação de paz, o susto e o medo, as dúvidas, o sopro do Espírito, e a missão de levar a Boa Nova são alguns temas comuns dos relatos. É sempre a dificuldade de colocar na estreiteza das palavras o esplendor deste acontecimento. Mas o importante é que estes encontros mudam a vida daqueles que os experienciam. Sendo os mesmos, é como se ficassem também outros: capazes de afastar o medo e de ousar viver como nunca tinham imaginado!

As mãos e os pés de Jesus trazem as marcas da paixão. Não é indiferente esta insistência que São Lucas apresenta: Jesus não foi homem a fingir, nem a ressurreição apagou as marcas do sofrimento. E é como companheiro, como amigo que se preocupa com o desânimo dos discípulos de Emaús e com o medo dos apóstolos fechados em casa, que Ele se aproxima. A vida que vence a morte não acontece sem a lâmina do sofrimento. Várias vezes o convite a seguir Jesus foi apresentado com o horizonte da cruz. Por dentro destes dias difíceis que são os nossos, a dúvida, o medo e até a sensação do abandono de Deus estão presentes. É também por dentro das nossas portas fechadas que o mesmo Jesus se apresenta. Para ajudar a descobrir novos significados da vida, novos modos de sermos com os outros. Sermos os mesmos na identidade mais profunda, mas outros na esperança transformadora!

Ainda mal refeitos da surpresa e iluminados para compreenderem que as Escrituras falam de Jesus, os discípulos foram logo enviados como testemunhas. A sua universidade foi o Espírito Santo e o seu método o amor que haviam de colocar nas palavras e nos gestos. Refazendo as pontes entre as pessoas. Levando a misericórdia e o perdão a todas as realidades feridas. Reinventando em cada tempo os projectos que podem unir as pessoas, levando-as a darem o melhor de si mesmas, a comprometerem-se na mudança do que está mal e degrada o ser humano. Partilhando o trabalho e a festa, vencendo o desânimo e a amargura. O encontro com Jesus ressuscitado não torna a vida mais fácil; torna-a mais plena. E as marcas das nossas paixões são marcas de um amor dado em total gratuidade.

“Portugal com menos católicos” é o primeiro eco de um estudo do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa. Para lá dos números, que ressurreição nos pedirá a análise mais profunda deste estudo? “Enterrar a cabeça como a avestruz” será recusar os apelos do Espírito de Jesus! Que “mesmo” guardar sem impedir que possamos ser “outro”?

Bento Domingues: Levantar o céu?

Texto de Bento Domingues no "Público" de 22 de abril de 2012.

terça-feira, 10 de abril de 2012

"A luz torna possível a vida; torna possível o encontro; torna possível a comunicação; torna possível o conhecimento, o acesso à realidade, à verdade"

Vale a pena ler a homilia de Bento XVI dedicada à luz, na Vigília Pascal (7 de abril):
Fiat Lux @Carolyn M. French, 2010

Queridos irmãos e irmãs!
A Páscoa é a festa da nova criação. Jesus ressuscitou e nunca mais morre. Arrombou a porta que dá para uma nova vida, que já não conhece doença nem morte. Assumiu o homem no próprio Deus. «A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus»: dissera São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (15, 50). E todavia Tertuliano, escritor eclesiástico do século III, a propósito da ressurreição de Cristo e da nossa ressurreição, não temera escrever: «Tende confiança, carne e sangue! Graças a Cristo, adquiristes um lugar no Céu e no Reino de Deus» (CCL II, 994). Abriu-se uma nova dimensão para o homem. A criação tornou-se maior e mais vasta. A Páscoa é o dia duma nova criação, mas por isso mesmo, neste dia, a Igreja começa a liturgia apresentando-nos a criação antiga, para aprendermos a compreender bem a nova. E assim, na Vigília Pascal, a Liturgia da Palavra começa pela narração da criação do mundo. A propósito desta e no contexto da liturgia deste dia, são particularmente importantes duas coisas. Em primeiro lugar, a criação é apresentada como uma totalidade da qual faz parte o fenômeno do tempo. Os sete dias são imagem duma totalidade que se desenvolve no tempo, aparecendo os dias ordenados até ao sétimo, o dia da liberdade de todas as criaturas para Deus e de umas para as outras. Por conseguinte, a criação está orientada para a comunhão entre Deus e a criatura; a criação existe para que haja um espaço de resposta à glória imensa de Deus, um encontro de amor e liberdade. Em segundo lugar, na Vigília Pascal, a Igreja fixa a atenção sobretudo na primeira frase da narração da criação: «Deus disse: “Faça-se a luz”!» (Gn 1, 3). Emblematicamente, a narração da criação começa pela criação da luz. O sol e a lua são criados somente no quarto dia. A narração da criação designa-os como fontes de luz, que Deus colocou no firmamento do céu. Deste modo, priva-os propositalmente do caráter divino que as grandes religiões lhes tinham atribuído. Não! Não são deuses de modo algum; são corpos luminosos, criados pelo único Deus. Entretanto já os precedera a luz, pela qual a glória de Deus se reflete na natureza do ser que é criado.
Que pretende a narração da criação dizer com isto? A luz torna possível a vida; torna possível o encontro; torna possível a comunicação; torna possível o conhecimento, o acesso à realidade, à verdade. E, tornando possível o conhecimento, possibilita a liberdade e o progresso. O mal esconde-se. Por conseguinte, a luz aparece também como expressão do bem, que é luminosidade e cria luminosidade. É de dia que podemos trabalhar. O fato de Deus ter criado a luz significa que Ele criou o mundo como espaço de conhecimento e de verdade, espaço de encontro e de liberdade, espaço do bem e do amor. A matéria-prima do mundo é boa; o próprio ser é bom. E o mal não vem do ser que é criado por Deus, mas existe só em virtude da sua negação. É o «não».
Na Páscoa, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Deus disse novamente: «Faça-se a luz!». Antes tinham vindo a noite do Monte das Oliveiras, o eclipse solar da paixão e morte de Jesus, a noite do sepulcro. Mas, agora, é de novo o primeiro dia; a criação recomeça inteiramente nova. «Faça-se a luz!»: disse Deus. «E a luz foi feita». Jesus ressuscita do sepulcro. A vida é mais forte que a morte. O bem é mais forte que o mal. O amor é mais forte que o ódio. A verdade é mais forte que a mentira. A escuridão dos dias anteriores dissipou-se no momento em que Jesus ressuscita do sepulcro e Se torna, Ele mesmo, pura luz de Deus. Isto, porém, não se refere somente a Ele, nem se refere apenas à escuridão daqueles dias. Com a ressurreição de Jesus, a própria luz é novamente criada. Ele atrai-nos a todos, levando-nos atrás de Si para a nova vida da ressurreição e vence toda a forma de escuridão. Ele é o novo dia de Deus, que vale para todos nós.
Mas isto, como pode acontecer? Como é possível chegar tudo isto até nós, de tal modo que não se reduza a meras palavras, mas se torne uma realidade que nos envolve? Por meio do sacramento do Batismo e da profissão da fé, o Senhor construiu uma ponte até nós, pela qual o novo dia nos alcança. No Batismo, o Senhor diz a quem o recebe: Fiat lux – faça-se a luz. O novo dia, o dia da vida indestrutível chega também a nós. Cristo toma-te pela mão. Daqui para a frente, serás sustentado por Ele e assim entrarás na luz, na vida verdadeira. Por isso, a Igreja antiga designou o Batismo como «photismos – iluminação».
Porquê? A escuridão que verdadeiramente ameaça o homem é o fato de que ele é, na verdade, capaz de ver e investigar as coisas palpáveis, materiais, mas não vê para onde vai o mundo e donde o mesmo venha; para onde vai a sua própria vida; o que é o bem e o que é o mal. Esta escuridão acerca de Deus e a escuridão acerca dos valores são a verdadeira ameaça para a nossa existência e para o mundo em geral. Se Deus e os valores, a diferença entre o bem e o mal permanecem na escuridão, então todas as outras iluminações, que nos dão um poder verdadeiramente incrível, deixam de constituir somente progressos, mas passam a ser simultaneamente ameaças que nos põem em perigo a nós e ao mundo. Hoje podemos iluminar as nossas cidades de modo tão deslumbrante que as estrelas do céu deixam de ser visíveis. Porventura não temos aqui uma imagem da problemática que toca o nosso ser iluminado? Nas coisas materiais, sabemos e podemos incrivelmente tanto, mas naquilo que está para além disto, como Deus e o bem, já não o conseguimos individuar. Para isto serve a fé, que nos mostra a luz de Deus, a verdadeira iluminação: aquela é uma irrupção da luz de Deus no nosso mundo, uma abertura dos nossos olhos à verdadeira luz.
Por fim, queridos amigos, queria ainda acrescentar um pensamento sobre a luz e a iluminação. Na Vigília Pascal, a noite da nova criação, a Igreja apresenta o mistério da luz com um símbolo muito particular e humilde: o círio pascal. Trata-se de uma luz que vive em virtude do sacrifício: a vela ilumina, consumindo-se a si mesma; dá luz, dando-se a si mesma. Este é um modo maravilhoso de representar o mistério pascal de Cristo, que Se dá a Si mesmo e assim dá a grande luz. Uma segunda idéia, que a reflexão sobre luz da vela nos sugere, deriva do fato de a mesma ser fogo. Ora, o fogo é força que plasma o mundo, poder que transforma; e o fogo dá calor. E aqui se torna novamente visível o mistério de Cristo: Ele, a luz, é fogo; é chama que queima o mal, transformando assim o mundo e a nós mesmos. «Quem está perto de Mim, está perto do fogo»: assim reza um dito de Jesus, que nos foi transmitido por Orígenes. E este fogo é ao mesmo tempo calor: não uma luz fria, mas uma luz na qual vêm ao nosso encontro o calor e a bondade de Deus.
O Precónio, o grande hino que o diácono canta ao início da Liturgia Pascal, de modo muito discreto chama a nossa atenção ainda para outro aspecto. Lembra-nos que o material do círio se fica a dever, em primeiro lugar, ao trabalho das abelhas; e, assim, entra em cena a criação inteira. No círio, a criação torna-se portadora de luz. Mas, segundo o pensamento dos Padres, temos aí também uma alusão implícita à Igreja. Nesta, a cooperação da comunidade viva dos fiéis é parecida com o trabalho das abelhas; constrói a comunidade da luz. Assim podemos ver, no círio, também um apelo dirigido a nós mesmos e à nossa comunhão com a comunidade da Igreja, que existe para que a luz de Cristo possa iluminar o mundo.
Neste momento, peçamos ao Senhor que nos faça sentir a alegria da sua luz, de modo que nós mesmos nos tornemos portadores da sua luz, para que, através da Igreja, o esplendor do rosto de Cristo entre no mundo (cf. LG 1).

(Crédito da tradução: Zenith)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Páscoa, correrias e mulheres

Última Ceia, de Bohdan Piasecki, 1988
De madrugada, ao raiar do Sol, foram mulheres as que se aventuraram a ir ao sepulcro de Jesus para perfumar o corpo morto. Ninguém sabe o que aconteceu nessa manhã inaugural. Sabe-se apenas que foi um acontecimento de tal modo forte e intenso que mudou a vida de um punhado de mulheres e homens. E que, por causa disso, eles e elas mudaram a seguir a face da vida do mundo.

Foram mulheres as que se aventuraram inicialmente a correr, para anunciar a ressurreição de Jesus. Esse é o mote da crónica À Procura da Palavra, do padre Vítor Gonçalves, publicada neste Domingo de Páscoa no jornal Voz da Verdade: “Na noite silenciosa e calma Maria caminha devagar. Quantas lágrimas vai semeando pelo caminho? Vai ao sepulcro fazer o quê? Ungir o corpo de Jesus porque a urgência da sepultura não permitiu fazer os ritos devidos a um defunto? Quer e não quer aproximar-se. Não quer mesmo pensar que tudo foi verdade, que viu morrer Jesus. Mas eis que tudo muda. No alvor do amanhecer vê o sepulcro vazio. E instala-se a correria pascal.”

(Para continuar a ler, clicar aqui).

O papel d’As Mulheres da Páscoa é também o tema da crónica de frei Bento Domingues no Público deste domingo. “Seria necessário estudar o lugar da mulher na cultura religiosa do tempo de Jesus, para perceber o alcance da revolução que ele desencadeou”. Diz assim o texto integral da crónica:

1. As mulheres entraram muito cedo e de vários modos na vida de Jesus de Nazaré. Hoje, é quase impossível imaginar a importância desse fenómeno. Seria necessário estudar o lugar da mulher na cultura religiosa do tempo de Jesus, para perceber o alcance da revolução que ele desencadeou. Vivemos numa época na qual a mulher tem um papel cada vez mais activo na vida e na liderança das sociedades, mas a sua situação na Igreja é um anacronismo que, esperamos, os anos se encarregarão de vencer.

A exegese feminista conquistou, no âmbito das abordagens contextuais, um lugar, ainda não ao sol, mas à sombra, no documento da Comissão Pontifícia Bíblica, de 1993 (A interpretação da Bíblia na Igreja).

O que espanta é a lentidão em reconhecer o que parece claro no Novo Testamento e que, ainda hoje, muitos não querem ver o que estão a ver, devido à resistência de uma cultura secular anti-feminista que os torna cegos, mas vamos por partes.

2. No Evangelho de S. Lucas, depois da cena escandalosa da mulher que surpreendeu, tocou e beijou Jesus, na casa de um fariseu, onde ele estava a jantar – e para onde ela não tinha sido convidada - (Lc. 7, 36-50), são as mulheres que surgem em grupo, de uma forma estranha e ambígua. Vale a pena transcrever o texto: “depois disso, ele andava por cidades e aldeias, pregando e anunciando a boa nova do reino de Deus. Os Doze acompanhavam-no, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demónios, Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, Suzana e várias outras, que os serviam com os seus bens.” Iremos encontra-las depois da Ressurreição dedicadas a converter, muito a custo, os Apóstolos que lhes não davam crédito (Lc. 24, 9-11). São elas as mulheres da Páscoa cristã.

O grande historiador judeu, Flávio Josefo (37 ou 38 – c. 100 d.C), nas Antiguidades Judaicas, afirma, por duas vezes, que ”o testemunho das mulheres não deve ser aceite por causa da fragilidade e presunção do seu sexo”. Noutra passagem, com outras palavras, repete a mesma ideia: “das mulheres não se pode aceitar nada como certo, por causa da ligeireza e temeridade do seu sexo”.

Um outro judeu, Jesus de Nazaré, parece que estava apostado em atirar pelos ares, costumes e ideias, que perpetuavam a marginalização do testemunho das mulheres. A opção deste Nazareno era de um atrevimento escandaloso, ao fazer delas testemunhas da sua Vida, da sua Paixão, da Ressurreição e do Pentecostes.

É certo que começam a aparecer, no Evangelho de S. Lucas, em grupo, mas de uma forma sorrateira e como que, apenas, financiadoras do novo projecto. Dá a ideia que foram conquistando terreno até ao momento extremo de tornarem o futuro do movimento cristão dependente delas. Não me parece nada que tenha sido assim, embora não tenha espaço para o demonstrar.

As narrativas do Novo Testamento, aquilo a que chamamos os Evangelhos, são fruto de várias tradições, de várias comunidades, de tempos e culturas diferentes. O que espanta é que sendo textos escritos por homens, também eles marcados pela mentalidade reflectida por Flávio Josefo – basta ver o que pensavam os apóstolos quando elas os procuravam evangelizar (Lc. 24, 9-11) – como é que os seus escritos testemunham uma presença impressionante de mulheres em torno de Jesus e nas Igrejas nascentes. Aqueles que desejam abafar o papel que as mulheres devem desempenhar actualmente na Igreja, imaginam Jesus, de Mitra e Báculo, a ordenar, numa Missa solene, os doze apóstolos, mostrando assim que Jesus, de Mitra e Báculo, não ordenou nenhuma mulher. E homens?

É uma imaginação a funcionar ao contrário. O que podemos e devemos imaginar é o que deve ter sido a presença activa das mulheres, em todo o percurso de Jesus, para ter resistido ao aperto cultural e religiosos do seu tempo.

3. Pertence aos exegetas continuar a analisar, com todos os métodos de que dispõem, as narrativas sobre o túmulo vazio e as aparições do Ressuscitado. Essas narrativas coincidem em algo essencial: A morte não teve sorte com Jesus: Ele está vivo e para sempre; é o mesmo, embora já não da mesma maneira. Aos discípulos pede que sejam testemunhas dessa esperança, essa memória de futuro.

Não se trata de nada que se possa provar por qualquer das ciências que existem. É de outra ordem. A fé, como diz o filósofo Wittengstein, é fé naquilo de que necessita o meu coração, a minha alma e não a minha inteligência especulativa. Pois é a minha alma com as suas paixões, por assim dizer, com a sua carne e sangue, que tem de ser salva e não a minha razão abstrata. Só o amor pode acreditar na Ressurreição.

O espantoso capítulo 20 do Evangelho de S. João conta que uma mulher, Madalena, liberta e apaixonada, não largou Jesus nem na vida, nem no vazio da morte, nem no túmulo. Continuou a procurá-lo. Não o encontrou, mas foi encontrada por aquele que sabia o seu nome. A sua recompensa foram novos trabalhos, uma encomenda directa do Ressuscitado: “vai, a meus irmãos e diz-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus”. Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: vi o Senhor e as coisas que ele lhe disse.

Porque impedir as mulheres da Páscoa de realizarem a sua missão apostólica na vida da Igreja ao serviço da transformação do mundo?

Para aprofundar o papel de algumas mulheres que foram decisivas na vida de Jesus, publiquei também hoje, na revista Público/2 um trabalho com o título “Elas estavam lá desde o início”. O texto pode ser lido aqui.

domingo, 8 de abril de 2012

"Quem nos estraga a vida? Quem é que no-la pode libertar?"

Eduardo Jorge Madureira, na sua coluna do Diário do Minho deste Dia de Páscoa:


"Nestes dias em que tanto se pede jejum de palavras, mas ninguém se cala, pode muito bem ser, afinal, por via da leitura de algum livro que surja a oferta de uma ou outra ocasião de recolhimento. Uma das obras que, para o efeito, se podem revelar de grande utilidade é Livres para acreditar. Dez passos para a fé, da autoria de Michael Paul Gallagher, um padre jesuíta irlandês, que foi professor de literatura na Universidade de Dublin, razão por que, aliás, não se estranhará que, no livro, escritores, como Nathaniel Hawthorne, T. S. Elliot, Saul Bellow ou Flannery O’Connor, e doutores da Igreja, como Santo Agostinho ou S. Tomás de Aquino, convivam tranquilamente.


Num dos passos mais fecundos do livro, escreve Gallagher que “a fé cristã não é apenas umaquestão de verdade, mas um modo de vida, e um modo de vida que resiste às directivas de uma sociedade de massas. A maior vitória da ideologia do consumismo é reduzir a religião a mais um item na prateleira do supermercado, pondo o cristianismo a competir com o fornecimento e a procura de bens, comodidades ou seguranças”. Considera ele que, “deste modo, uma pequena dose de religião pode tornar-se uma espécie de música de fundo agradável para uma vida fundamentalmente desorientada ou imatura. Este uso tranquilizante da religião para a segurança humana é a armadilha mais típica do mundo desenvolvido. O cristianismo converte-se numa agradável alienação da realidade, pessoalmente consoladora, mas sem nada de desafiante em termos sociais, atraente para um entusiasmo rápido e até para uma certa generosidade, mas evitando a profundidade de um seguimento como uma escolha no mundo de hoje”.

Enquanto professor universitário, Michael Paul Gallagher reconhece que a universidade pode representar um logro, ao ser uma dessas “instituições de elites que criam as suas próprias formas de opressão, permanecendo cegas, pelo menos na prática (a teoria é uma coisa diferente!), para os perigos do seu próprio sistema”. Enquanto padre, lamenta que as “tentações institucionais” possam “levar a melhor”. É que, acrescenta, “a autoridade pode ser mal utilizada, as pessoas podem não ser ouvidas e o ritualismo pode querer fazer-se passar por alimento espiritual”. Gallagher diz que “a lista podia continuar, e isso seria um reescrever das páginas dos evangelhos em que Cristo confronta a religião oficial: Os fariseus não morreram naquela geração. O seu espírito revela-se sempre que não actuamos como discípulos, mas sim como funcionários das coisas de Deus”.

A ideologia consumista, que fornece o pano de fundo e embebe a cultura dominante, é fustigada pelo autor de Livres para acreditar: “Os valores da cultura professados e vividos – sucesso, poder, prestígio, orgulho nacional, pessoal e de classe, riquezas e autoglorificação – chocam tão ampla e profundamente com os valores de Jesus que um seguidor de Cristo não pode senão sentir a cultura como um ataque à fé religiosa”.

Citando o filósofo John Francis Kavanaugh, Michael Paul Gallagher afirma que, ao contrário do que tantos postulam, é possível – e, obviamente, necessário – resistir à cultura dominante, que, assim, será menos dominante e menos desumanizadora, se se discernirem os seus perigos e se se criar algum tipo de consciência partilhada. Os mecanismos da inevitabilidade tão propagados pela ideologia dominante funcionam apenas quando as pessoas estão divididas e fragmentadas e não são capazes de alcançar algum tipo de consciência comum, considera Gallagher, socorrendo-se agora do filósofo Charles Taylor.

“A cultura que nos rodeia tenta fazer com que a religião desconsidere a dimensão de conflito dos evangelhos e que opte por um ‘programa de Jesus reduzido’”, para usar uma expressão de um outro autor, Michael Warren, que Gallagher convoca para explicar que, “nesta situação, qualquer resistência genuína terá de estar ‘fundamentada em determinados modos de vida que concretizem uma alternativa de vida’”.

Depois de citar Warren, que acredita que, no contexto religioso, um grupo não pensa primeiro para em seguida agir, mas, pelo contrário, o seu modo de agir plasma o seu modo de pensar: quando se descobrem os compromissos adequados, surge também a estrutura de vida adequada, Michael Paul Gallagher reclama uma suspeita saudável em relação à cultura que nos rodeia, capaz de representar mais um passo na direcção da liberdade. É preciso “despertar e procurar discernir as influências à nossa volta!” E, retomando uma questão de Warren, pergunta Gallagher: “Quem é que está a imaginar a tua vida por ti?” Esta pergunta, se se quiser, pode desdobrar-se em duas: Quem é nos estraga a vida? Quem é que no-la pode libertar?".

(Crédito da foto: The Jesuits in Ireland)

sábado, 7 de abril de 2012

"Teólogo condenado: da criação à ressurreição"

Da coluna de Anselmo Borges, no Diário de Notícias de hoje:

"Enquanto o Papa, em Cuba, fazia apelo à liberdade, a Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola publicava uma Notificação - na prática, para a opinião pública, a condenação de mais um teólogo, Andrés Torres Queiruga. Como se a liberdade fosse para os outros e não devesse vigorar também no interior da Igreja.
Para muitos - também para mim -, A. Torres Queiruga é um dos maiores teólogos católicos vivos. No meu entendimento, foi e é o teólogo que de modo mais profundo e conseguido enfrentou o cristianismo com a modernidade e a modernidade com o cristianismo. Desgraçadamente, alguns teólogos e bispos espanhóis não pensam assim.
O que aí fica é tão-só, na medida em que o permite uma crónica de jornal, o que considero nuclear no pensamento de A. Torres Queiruga.(...)".

Para continuar a ler o texto, clicar: AQUI.
Para ler a Notificação da Conferência Episcopal Espanhola: AQUI
Breve esclarecimento de Torres Queiruga: AQUI
Outras tomadas de posição sobre o assunto: AQUI.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sexta-Feira Santa em Cuba e em Roma

Hoje é feriado em Cuba, o que acontece excepcionalmente, como uma espécie de retribuição da visita do Papa Bento XVI ao país, há pouco mais de uma semana. Este facto traduz luzes e sombras na relação da Igreja Católica com o regime e com a sua forma de estar na sociedade. 

Desde logo, é positivo que os crentes tenham mais espaço, num país sujeito ainda a um regime monolítico e que continua dependente da voz de um chefe. Mesmo que essa possibilidade de expressão seja para já apenas restrita à dimensão institucional e pastoral (como através da realização de actos públicos de fé), o alargamento dessa possibilidade de expressão pública é sempre positivo. Quanto mais espaço houver para que determinados grupos se possam exprimir, mais depressa a liberdade chegará para todos. 
Há um reverso neste facto: ao limitar as suas reivindicações a uma dimensão institucional (feriados de Natal e Sexta-Feira Santa, procissões na rua, etc.), a Igreja Católica (ou as suas lideranças) está a esquecer a situação de um povo que continua a sofrer por causa das limitações da liberdade e da cegueira do embargo norte-americano - ambos denunciados pelo Papa nos seus discursos em Cuba. O perfil moderado do cardeal Jaime Ortega não é alheio a este processo, já que o arcebispo de Havana prefere privilegiar uma relação institucional de entendimento do que uma lógica de denúncia clara das violações dos direitos humanos. 
Este feriado ocorre depois de, na homilia da Missa Crismal, Quinta-Feira Santa em Roma, o Papa ter criticado "um grupo de padres [que, recentemente] num país europeu publicou um apelo à desobediência, dando exemplos concretos sobre a maneira de exprimir esta desobediência". A referência visava os cerca de 400 padres austríacos que, até ao momento, assinaram já a "Iniciativa dos Padres", que propõe reformas na Igreja no âmbito disciplinar e ministerial. Nomeadamente, estão em causa questões como a distribuição e a função do clero numa altura em que os padres são cada vez mais escassos, a ordenação de homens casados e de mulheres. 
Apesar da referência do Papa de que a renovação pós-Convílio Vaticano II (1962-65) "assumiu formas inesperadas de movimentos plenos de vida" (sem especificar quais), Bento XVI não quis admitir que isso passa também pelo facto de tantos cristãos, mulheres e homens, quererem assumir de forma adulta a sua fé, o que os leva a questionar dogmas e tradições que a exegese bíblica mais recente e profunda coloca cada vez mais em questão - sobre o papel das mulheres, por exemplo. 
A hierarquia católica não pode continuar a cair no erro de ignorar a cidadania dos seus crentes: pedir mais espaço para a Igreja implica também dar mais espaço e direito de cidadão aos baptizados no interior da estrutura católica.
Sexta-Feira Santa é ainda sexta-feira de Paixão, também para a vida de muitos crentes no interior da Igreja Católica. 

(foto: Bento XVI na Praça da Revolução, em Havana; copiada daqui)