sábado, 30 de dezembro de 2017

Refugiados: o Papa e os pactos, os encalhados e os rohyngia, e as fotos de “nós, os muçulmanos”

 
 A família Dabbah, "encalhada" na Turquia, 
que aguarda a possibilidade de viver em Portugal, 
uma das histórias da reportagem de Catarina Santos na Renascença, citada no final

O Papa Francisco deseja que, durante o ano de 2018, se consigam definir e aprovar dois pactos mundiais: um para migrações seguras, ordenadas e regulares, outro referido aos refugiados. O anseio é manifestado na sua mensagem para o 51º Dia Mundial da Paz, que a Igreja Católica assinala depois de amanhã, dia 1 de Janeiro. Desta vez, o texto é dedicado ao tema Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz
É importante que tais documentos “sejam inspirados por sentimentos de compaixão, clarividência e coragem, de modo a aproveitar todas as ocasiões para fazer avançar a construção da paz: só assim o necessário realismo da política internacional não se tornará uma capitulação ao cinismo e à globalização da indiferença”, acrescenta o Papa.
Na mensagem, disponível aqui na íntegra, Francisco recorda os “mais de 250 milhões de migrantes no mundo, dos quais 22 milhões e meio são refugiados” (os números do Alto Comissariado das Nações Unidas apontavam, em 2016, para mais de 60 milhões de refugiados e deslocados internos no mundo). E diz que eles são mulheres e homens que apenas buscam um lugar para viver em paz. “Para o encontrar, muitos deles estão prontos a arriscar a vida numa viagem que se revela, em grande parte dos casos, longa e perigosa, a sujeitar-se a fadigas e sofrimentos, a enfrentar arames farpados e muros erguidos para os manter longe da meta.”
As pessoas fogem de conflitos armados, mas também levadas pelo “desejo de uma vida melhor, unido muitas vezes ao intento de deixar para trás o ‘desespero’ de um futuro impossível de construir”. E se a maioria o faz através de um percurso legal, “há quem tome outros caminhos, sobretudo por causa do desespero, quando a pátria não lhes oferece segurança nem oportunidades, e todas as vias legais parecem impraticáveis, bloqueadas ou demasiado lentas”.
O Papa contesta a retórica, largamente generalizada em muitos países de destino, “que enfatiza os riscos para a segurança nacional ou o peso do acolhimento dos recém-chegados, desprezando assim a dignidade humana que se deve reconhecer a todos, enquanto filhos e filhas de Deus.”
Num comentário à mensagem, publicado no National Catholic Reporter, que pode ser lido aqui em inglês, Tony Magliano afirma que “numerosos estudos indicam que a imigração traz o crime”, referindo concretamente a realidade dos Estados Unidos – e que se confirma também em muitos outros países. Pelo contrário: “A maior parte dos dados revelam que, em média, quando a imigração aumenta, o crime diminui.”
Acrescenta o Papa: “Quem fomenta o medo contra os migrantes, talvez com fins políticos, em vez de construir a paz, semeia violência, discriminação racial e xenofobia, que são fonte de grande preocupação para quantos têm a peito a tutela de todos os seres humanos.”

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Um convento resiliente, a partir do seu interior

 
“É uma beleza!...” Nossa Senhora da Conceição a ser coroada com a coroa da paz 
(pintura em azulejo no antecoro do Convento dos Cardaes)

Fundado por D. Luísa de Távora em 1681, como convento de carmelitas, acolhe, desde 1877, uma comunidade de irmãs dominicanas e de mulheres com necessidade de apoio. A história do Convento dos Cardaes conta-se com a resiliência: sobreviveu praticamente intacto ao terramoto de Lisboa de 1755 e às extinções dos conventos e mosteiros decretadas pela revolução liberal, em 1834, e pela República, em 1910-11. “Ficou sossegado”, comenta a irmã Ana Maria Vieira que, desde 1975, tem sido responsável pela comunidade, pela residência de mulheres e pela recuperação patrimonial do convento – e que guia a reportagem de Manuel Vilas Boas na TSF (com som de Mézicles Helim) percorrendo as escadarias, celas, igreja e arte patrimonial deste convento
Discreto por fora e riquíssimo por dentro, o edifício guarda vários segredos: abrem-se armários e deles saem pinturas ou retábulos, percorrem-se os corredores ou os claustros e deles emergem histórias desconhecidas ou esquecidas. Uma delas foi a razão da sobrevivência do convento, depois da extinção decretada no século XIX: graças ao facto de ali se acolherem mulheres cegas, o convento pode permanecer aberto; depois da instauração da República, foram destacados funcionários dos hospitais civis de Lisboa mas as mulheres “choravam tanto” que as irmãs tiveram de voltar, com o pedido de que “rezassem baixinho”.
Entre os muitos tesouros artísticos que o convento guarda, está um painel de azulejos alusivo à coroação de Nossa Senhora da Conceição com a coroa da paz. La femme européène (a mulher europeia), comentou um historiador de arte em visita ao convento, aludindo às doze estrelas que circundam a cabeça de Nossa Senhora, que inspiraram a bandeira da União Europeia. “É uma beleza”, comenta a irmã Ana Maria na reportagem, mostrando o seu gosto pelo património que tem à sua guarda há 42 anos. E que destaca, por exemplo outra pintura alusiva à ressurreição de Jesus: “Não há Madalena a dizer que [Cristo] não está, não há anjo, não há soldado estremunhado...” Apenas a luz e os símbolos da paixão. Porque não se pode representar o irrepresentável, como dirá também a irmã Ana Maria na reportagem da Visita Guiada conduzida por Paula Moura Pinheiro.
Na mesma reportagem, Ana Maria Vieira acrescenta: “O interior é que tem valor, o exterior são aparências.”

(Para conhecer o convento e o seu património, pode também procurar-se o livro O Convento dos Cardaes – Veios da Memória, ed. Quetzal)

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O Natal tem nome? E que procuras em 2018?


Que nome damos ao Natal? Falamos do Natal das “religiões laicas”? Falamos do papel da narrativa ou dos avós? Falamos do Natal da compra que nos destitui da nossa identidade? Ou do Natal do consumo e da “retórica mentirosa”, que quase interdita (como acontece no espaço mediático e em escolas públicas) que se fale de Jesus, a sua razão primeira? Falamos do desafio de “ir a Belém sem palas nos olhos” e de um Deus que não tem religião – e que, por isso, apela a passar “da religião à fé”?
Todas estas questões – e muitas mais – passaram pelo debate O Natal tem nome?, uma emissão especial da SIC Notícias na véspera e no dia de Natal. Moderado pelo jornalista Joaquim Franco, o debate teve a participação de Fernando Ventura, frade franciscano e biblista, Joana Rigato, pós-doutorada em filosofia das neurociências, Annabela Rita, professora de Literatura Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e José Brissos Lino, pastor protestante. O programa pode ser visto aqui ou no vídeo acima reproduzido.

No mesmo formato, a SIC Notícias irá transmitir nos próximos dias 31 (17h) e 1 de Janeiro (1h30 e 15h) o debate Que procuras em 2018?, onde serão tratadas questões como o papel das religiões e do catolicismo, o lugar da mulher nas instituições religiosas, a crise europeia a propósito dos refugiados, o futuro do Médio Oriente, o protagonismo do Papa Francisco.
Participam neste debate a deputada e ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, o historiador José Eduardo Franco, e os jornalistas Lumena Raposo e António Marujo.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Taizé em Basileia: Uma alegria que nunca se esgota


 Vista de Basileia (foto reproduzida daqui)


Nesta quinta-feira, 28, dezenas de milhar de jovens de toda a Europa estarão em Basileia para participar em mais uma etapa da peregrinação de confiança animada pela comunidade monástica ecuménica de Taizé.
Até 1 de Janeiro, os jovens viverão um conjunto de propostas e iniciativas de oração, reflexão, cultura e encontro na cidade que acolheu a primeira parte de um concílio católico (o concílio de Basileia-Ferrara-Florença, entre 1431-1445), que se distinguiu como um dos principais centros da Reforma protestante e que foi lugar de ensino para Nietzsche, o filósofo da “morte de Deus”.
Depois do encontro de Estrasburgo, em 2013, que mobilizou comunidades de dois países diferentes (França e Alemanha), esta é a primeira vez que tal encontro movimenta pessoas de três países – Suíça, França e Alemanha – depois de a comunidade ter sido convidada por onze responsáveis de diferentes igrejas.
Como preparação para o encontro e ponto de partida para as reflexões que serão animadas em Taizé ao longo do ano de 2018, o irmão Aloïs, prior de Taizé, escreveu uma carta intitulada Uma alegria que nunca se esgota, que a seguir se reproduz na íntegra:

Uma alegria que nunca se esgota

No ano passado, uma jovem muito doente disse-me: «Amo a vida». Continuo muito emocionado pela alegria interior que a preenchia, apesar dos limites muito grandes impostos pela doença. Fiquei tocado não apenas pelas suas palavras, mas também pela bela expressão do seu rosto.
E que dizer da alegria das crianças? Vi-a recentemente em África. Mesmo em campos de refugiados, onde se concentram tantas histórias dramáticas, a presença delas faz irromper a vida. A sua energia transforma um conjunto de vidas despedaçadas num viveiro cheio de promessas. Se elas soubessem o quanto nos ajudam a manter a esperança! A sua alegria de viver é um raio de luz.
Gostaríamos de nos deixar iluminar por estes testemunhos quando fizermos, ao longo do ano de 2018, uma reflexão sobre a alegria, uma das três realidades – com a simplicidade e a misericórdia – que o irmão Roger colocou no coração da vida da nossa Comunidade de Taizé.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Músicas que falam com Deus (37) - Voz despida, voz pura de Natal

 


Em português, nua é o mesmo que despida; em gaélico, “nua” significa novo, fresco, puro. A maestrina irlandesa Aoife (lê-se Ifa) Hiney, radicada em Aveiro há vários anos, traduz assim a polissemia dos objectivos e do repertório do Voz Nua, que fundou em 2012: voz sem instrumentos e, por isso, pura, fresca, nova (mesmo se, em quatro temas, o piano está presente, para sublinhar a riqueza e pluralidade melódica de que a voz é capaz). Neste disco de Natal, o grupo mostra isso mesmo, dando vida nova a canções que ouvimos muitas vezes. É o caso de Joy to the World, Stille Nacht/Noite Feliz, Meia Noite Dada, ou até um por vezes irritante Santa Claus is coming to town, que aparece aqui com a ternura própria do Natal e um trabalho vocal muito rico. Mas o disco também revela pérolas puras ou tesouros mais escondidos, como Walking in the air, Hodie Nobis Caelorum ou Suantrai ár Slánaitheora, belíssima canção de embalar irlandesa que resume o mistério: “Tu és do meu sangue, meu amor, minha adoração/ Meu pequeno, lindo filho/ Só eu vou cuidar de ti.” Um disco jubiloso.

(Texto publicado na revista Além-Mar, disponível aqui; sobre este disco, o coro Voz Nua e a maestrina Aoife Hiney pode ouvir-se aqui o programa de Manuel Vilas Boas na TSF, que passou neste fim-de-semana de Natal.)

Nativitas
Intérpretes: Voz Nua; dir. Aoife Hiney; edição: Voz Nua