Na sua crónica deste domingo no Público, frei Bento Domingues regressa ao que se disse antes e durante a canonização de Nuno Álvares Pereira e ao que porventura falta fazer.
1. (…) Hoje, numa sociedade de separação entre Igreja e Estado, deve-se deixar ao Estado o que ao Estado pertence: preservar e realçar a memória dos seus heróis. À Igreja compete recuperar a memória dos seus santos, não a dos heróis nacionais. No caso de Nuno Álvares Pereira, quem terá sido canonizado? O herói, pelas suas escolhas políticas e os seus feitos bélicos, ou o santo, aquele que abandonou o poder militar e a riqueza para se dedicar, no despojamento, à contemplação e ao serviço dos pobres?
Os que dizem que não é possível separar o herói do santo nem o santo do herói – embora tenha sido a tonalidade de algumas intervenções eclesiásticas e políticas – esquecem que, sem atender a essa diferença, seria desaconselhável a canonização. Ela celebra a viragem radical na vida de Nuno Álvares Pereira, não a consagração do herói da nossa identidade. A heroicidade das virtudes requeridas para a canonização não é a heroicidade que se requer no combate aos inimigos da independência de Portugal. (…)
Digo isto porque todos os discursos sobre ele podem ter as suas derrapagens. O Cardeal José Saraiva Martins – especializado a desencalhar canonizações – não se mostrou muito inspirado ao exemplificar a espiritualidade mariana de S. Nuno: “antes e durante as batalhas, ajoelhava e rezava a Nossa Senhora. Isto é muito significativo, muito importante, era um militar e fazer isso supõe um grande acto de heroísmo”. É certo que o Cardeal poderá argumentar que, também na Bíblia, se pede a Deus ajuda para derrotar os inimigos, constituído chefe do exército do povo eleito.
Essas partes das Escrituras só deixarão de ser lamentáveis se as considerarmos inspiradas a dizer, de forma brutal, o que nunca deve ser feito: confundir os nossos interesses tribais ou nacionais com a vontade de Deus. Se uma das jóias da nossa arquitectura celebra Nossa Senhora das Vitórias, mais conhecida como Mosteiro da Batalha, só indica a contaminação da devoção católica por essa aberração ancestral. Será que Nossa Senhora, aborrecida com os castelhanos, se vingou deles revelando ao condestável português a forma de os derrotar? Tomás de Aquino aconselhava os teólogos e os apologistas a terem cuidado com o ridículo.
2. Se esta canonização fosse para exaltar a capacidade guerreira do condestável, teria de se fazer um processo religioso à sua forma de combater. Mesmo que alguns discursos dêem isso como pressuposto, talvez estejam enganados. Dir-se-á que é preciso cuidado com os anacronismos. Sem dúvida, mas não é de nenhum anacronismo que se trata: não terá sido no nosso tempo que o ataque às torres gémeas e a guerra ao Iraque se apresentaram com motivações político-religiosas?
Não seria um bom milagre de S. Nuno se levasse os políticos e os militares de hoje a deixar a guerra – abrindo a mente e o coração ao imenso mistério da vida e da morte – e a distribuir os seus gastos em benefício das vítimas inocentes da crise actual? Diz-se que em qualquer situação é possível santificar-se. Talvez seja preferível santificar-se a fazer a paz do que a fazer a guerra.
3. É louvável recuperar antigas memórias portuguesas de santidade, embora, às vezes, possa levar a pensar que santos são apenas os canonizados. Repetiu-se que S. Nuno era o oitavo santo português! Há várias figuras exemplares da nossa história recente que devem ser lembradas. Destaco, apenas três: o padre Abel Varzim (1902-1964), imagem do catolicismo social português durante o regime de Salazar, que o procurou domesticar e acabou por perseguir, sem encontrar na Igreja a defesa de quem o devia proteger; o Padre Américo (1887-1956) que, como dizia, depois de “uma martelada” espiritual, se tornou o Padre da Rua dos abandonados, dando-lhes voz, no espantoso jornal, O Gaiato; Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) que salvou, enquanto cônsul em Bordéus, a vida a dezenas de milhares de pessoas do Holocausto, desobedecendo, em nome da sua consciência humana e católica, às ordens de Salazar que o entregou à miséria, a ele e à família.
Tenho, na minha frente, uma entrevista a Isabel Jonet, católica, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome – dá de comer a 245 mil pessoas por dia – congrega uma multidão de voluntários na luta prática contra a pobreza. Ao ajudar a perceber que não vale a pena andar fascinado por bens que nada acrescentam à vida verdadeira, tornou-se também uma discreta escola de espiritualidade. Em vez de perder o tempo a enumerar tudo o que, em Portugal, corre mal, descobre e desperta vocações para a prática da solidariedade inadiável.
No seio do absurdo, os santos são aqueles que se convertem, rasgando a opacidade do Céu e a indiferença perante a miséria. São a face luminosa da fé.
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