A crise financeira, as excomunhões e o sentido dos presentes e do Natal passam pela última crónica de frei Bento Domingues no Público de domingo.
1.Nem só de pão vive o homem, mas sem pão é difícil. O Diabo sabia disso quando pôs Jesus à prova no deserto. Hoje, diante dos efeitos económicos da especulação financeira, a nível global e local, a oração pelo “pão nosso de cada dia” – que não dispensa o trabalho – continua a fazer todo o sentido.
Quanto à crise, consultei o site da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE). Estava com pouca luz. O filósofo André Comte-Sponville – um ateu meio cristão – realça o primado evangélico do amor, alma de uma ética superior, mas não perde o sentido do realismo mais chão: “A ética vale mais do que a moral. A moral vale mais do que o direito. Mas a moral é mais necessária do que o amor, o direito é mais realista do que a moral. Se não formos capazes de viver à altura do Novo Testamento, respeitemos, ao menos, o Antigo”.
São afirmações lapidares e insuficientes. Encontrei alguns fervorosos católicos lamentando que o Papa – embora com alguns recados à Banca – não tenha excomungado os maiores responsáveis por uma crise que continua mais misteriosa do que a Santíssima Trindade.
A receita das excomunhões não me entusiasma e as determinações papais só contam para quem as deseja acolher. Por outro lado, os textos do Novo Testamento colocaram na boca de Jesus de Nazaré e de sua Mãe textos assustadores sobre os ricos. Na escola de S. Paulo, sustentava-se que “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6, 10). Os cristãos que alinham com sistemas de exploração e com práticas de corrupção sabem muito bem o que fazem e sabem que estão, pelo efeito da sua actuação perversa, a excomungar-se da comunidade humana.
2. Estamos no Advento, mas a necessidade de vigilância não é exclusiva desta quadra litúrgica. Hoje, mesmo fora dos espaços eclesiais, é frequente ouvir: não se pode permitir aos mercados que façam o que lhes apetece sem qualquer controle. Não basta, no entanto, aproveitar a crise para ter mais cuidado com a gestão da vida económica. Quem ficar por aí, vai sonhar com o fim deste pesadelo para voltar a pautar a vida pessoal, profissional e social pela mesma escala de preocupações. Ora, o que está em causa é o sentido que cada um dá à sua vida, a responsabilidade que assume em relação ao bem comum e o espírito de compaixão pelos que vivem sós e abandonados: justiça e gratuidade.
A alteração de critérios deve começar já pela preparação deste Natal. É evidente que ainda há muito sentimento humano para que os sem abrigo e os velhos e novos pobres não sejam totalmente esquecidos. Os meios de comunicação podem fazer imenso para avivar o sentido da solidariedade e nem são precisas “300 ideias” para os atender. Mas, se ficarmos por aí, é porque pensamos que as pessoas “só vivem de pão”. Além da satisfação das necessidades materiais básicas – e estamos muito longe destas serem atendidas, apesar de todos os programas de combate à pobreza – as pessoas vivem, sobretudo, de afectos e beleza. Quando os presentes de Natal não são investimentos, valem na medida em que forem concretizações de presença pessoal, de reconhecimento, isto é, de que os outros contam para nós. É normal que o marketing se esforce por encontrar modelos de gastos de Natal para tempos de crise, porque presentes de luxo para gente de luxo são negócios, válidos apenas como negócios, mais ou menos honestos, investimentos talvez mais seguros do que a oscilação dos jogos da Bolsa. A ética desses investimentos e jogos é anti-solidária: a riqueza de uns implica a pobreza de outros.
3. Na perspectiva de revisão de vida, neste tempo de Advento, talvez possamos mudar de registo sem muitos gastos. É um momento privilegiado para descobrir a aliança entre a pobreza voluntária e a beleza. A pobreza, quando imposta, é feia e destruidora. Quando voluntária, pode ser azeda por moralismo, como a de João Baptista, ou bela como a de Jesus e Francisco de Assis. Os Evangelhos encheram de música o curral do nascimento do filho de Maria e o “Poverello” foi o grande poeta do presépio e da natureza. Fra Angélico só gastou alguma tinta para encher de beleza o convento de S. Marcos de Florença.
Somos europeus. G. Ravasi, presente do Conselho Pontifício para a Cultura, numa conferência na Universidade de Salamanca – no começo do próximo ano estará em Portugal – insistiu na redescoberta da nossa herança cultural multifacetada. Na apologia da vertente cristã, lembrou algumas afirmações de grandes figuras da cultura europeia: para Goethe, a língua materna da Europa é o cristianismo; segundo I. Kant, a fonte da qual brotou a nossa civilização é o Evangelho; T.S. Eliot, foi mais explicito: “Um cidadão europeu pode não pensar que o cristianismo seja verdadeiro e, contudo, o que diz e faz brota da cultura cristã da qual é herdeiro. Sem o cristianismo não teria havido nem sequer um Voltaire ou um Nietzsche. Se o cristianismo desaparece, desaparece também o nosso rosto”.
Encontrar-se, hoje, com o nosso património artístico, expressão da fé cristã, é fácil e barato. Para refazer a nossa alma na beleza e na pobreza, basta acolher a graça do Presépio.
1 comentário:
Este Frei Bento às vezes diz umas coisas acertadas, com que estou de acordo. É o caso.
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