quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O que querem os jovens dos bispos reunidos em Roma

Texto de António Marujo

Assembleia do Sínodo dos Bispos começou ontem e prolonga-se até dia 28



Tomás Virtuoso, Rui Teixeira e Joana Serôdio em Março, no Vaticano, 
com o cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos Bispos

Sentiram-se escutados, mas querem fazer a experiência mais vezes: “Estes processos de auscultação têm de ser mais frequentes”, diz Rui Teixeira, 31 anos, escuteiro. Pensam que há um claro problema na forma de a hierarquia católica lidar e comunicar com os jovens: “O problema não é alterar tudo o que se diz, mas dizê-lo com uma linguagem acolhedora, não como uma imposição que exclui”, afirma Joana Serôdio, 30 anos, que integra a equipa do Departamento Nacional de Pastoral Juvenil (DNPJ). E recordam que o Papa Francisco marcou decisivamente a reflexão quando lhes pediu que falassem “sem filtros” e fossem “exigentes”, não querendo receber o “nobel da prudência”. “É um erro quando a Igreja se quer pensar a si mesma e o faz para dentro”, acrescenta Tomás Virtuoso, 24 anos, das Equipas de Jovens de Nossa Senhora (EJNS). 
Rui, Joana e Tomás foram os três portugueses que estiveram na assembleia que, de 19 a 24 de Março, em Roma, reuniu 300 jovens de todo o mundo como preparação do Sínodo dos Bispos sobre Os Jovens, a Fé e o Discernimento Vocacionalque esta quarta-feira, dia 3, se iniciou em Roma. 
A abertura da reunião foi assinalada por uma missa presidida pelo Papa. Na sua homilia, Francisco afirmou: “Sabemos que os nossos jovens serão capazes de profecia e visão, na medida em que nós, adultos ou já idosos, formos capazes de sonhar e assim contagiar e partilhar os sonhos e as esperanças que trazemos no coração.”
Os participantes na reunião pré-sinodal eram quase todos católicos. Mas, por vontade do Papa Francisco, também foram convidados jovens de outros credos (muçulmanos, protestantes de diferentes confissões, sikhs,...) e mesmo alguns não-crentes. Se Joana foi como representante portuguesa, Tomás e Rui (que tinha 30 anos na altura do encontro) estiveram em representação dos seus movimentos a nível internacional. 
“Era uma espécie de parlamento de jovens do mundo inteiro, de jovens líderes católicos, com a consciência de saber discutir com profundidade os temas propostos”, diz Tomás, que está a fazer tese em Economia Política Europeia, depois de ter concluído o curso de economia na Universidade Católica Portuguesa. E acrescenta o membro do secretariado internacional das EJNS: “Foi uma experiência incrível. Para nós era uma coisa inédita, porque nunca se deu esta importância aos jovens. As Jornadas Mundiais da Juventude são um produto ‘acabado’ que se oferece aos jovens para participarem num programa. Ali, éramos nós a construir a reflexão.”
Vindo da área que vem, Tomás já fez contas para confirmar que a reunião pré-sínodo (RP) foi importante para a preparação do Sínodo: no Instrumentum Laboris, ou Documento de Trabalhoque os bispos têm para debater nas duas primeiras semanas, o documento final da RP é citado 75 vezes; o documento seguinte mais citado é a exortação do Papa, A Alegria do Evangelho, mas apenas por 20 vezes. 

Papel da mulher não é só “enfeitar” as igrejas

Joana Serôdio, bioquímica de formação, a trabalhar num centro de investigação em biotecnologia em Beja, também recorda fortemente as palavras do Papa, no primeiro dia de trabalhos: “Já pensava que o encontro com o Papa iria marcar o ritmo dos trabalhos. Ele disse-nos para não termos vergonha, falar sem filtros, para sermos humildes na escuta mesmo de quem pensa diferente de nós. E foi empático, acolhedor, divertido e assertivo connosco.” Porque ficaram todos tão marcados com a ideia de falar sem filtros? “Porque há muitos filtros em relação aos jovens. Como há muitos filtros para os mais novos, os mais velhos e para quem é diferente da norma.”



Ou para a questão do lugar da mulher na sociedade e na Igreja, um dos temas “muito discutidos” e que aparece muito no documento final da RP. “Não foi um tema forçado por ninguém. Aconteceu pelo facto de haver muitas mulheres, incluindo africanas ou muçulmanas”, recorda Joana. “Uma das africanas, no início, fez uma pergunta ao Papa. Muitos aproveitaram essa coragem para falar sobre o tema. Precisamos mesmo de perceber e definir melhor o papel da mulher na Igreja, que vá para além do saber enfeitar as igrejas.”
Para que não se pense que por detrás está já alguma reivindicação, Joana acrescenta: “Não tem se ser nenhuma questão de género, mas debater o papel de qualquer leigo, mas a possibilidade de ser voz activa no interior da comunidade.”
Há uma crise de confiança de muitos jovens em relação à Igreja, verifica o documento final da RP. Mas eles não devem ser excluídos só por causa disso, acrescenta o texto, antes devem sentir-se aceites. “Isso acontece também quando buscamos promover a dignidade das mulheres, tanto na Igreja quanto nos contextos sociais mais amplos. 
Actualmente, a falta de igualdade entre homens e mulheres é um problema difuso na sociedade. Isso acontece também na Igreja”, lê-se no texto, no parágrafo sobre “a busca de sentido de vida”. “Existem grandes exemplos de mulheres que realizam um serviço em comunidades religiosas, consagradas, tendo papel de grande responsabilidade na vida dos leigos. No entanto, para algumas jovens esses exemplos não são sempre visíveis. Uma pergunta-chave surge destas reflexões: ‘quais os lugares em que as mulheres podem prosperar dentro da Igreja e da sociedade?’.”

Não alterar a doutrina, mas manifestar o acolhimento

As questões da moral individual apareceram também no debate, com frequência – e estão plasmadas no documento de trabalho dos bispos. Tomás Virtuoso recorda que, em relação a temas como o aborto, a eutanásia ou a prostituição as opiniões eram mais consensuais, no sentido da condenação do princípio, mas já sobre a homossexualidade as águas “separavam-se mais”. 


Tomás Virtuoso

Há necessidade de um “grande equilíbrio”, nota o dirigente das EJNS, “entre um relativismo em que vale tudo e o absolutismo de regras impostas às pessoas”. E, acrescenta, “se há uma mensagem fundamental” que tenha saído da RP, é que a Igreja deve procurar clareza nas ideias, mas que isso não se pode transformar em “falta de sensibilidade para com as pessoas”. O que abre espaço ao acompanhamento pessoal e a enfrentar os desafios da linguagem, diz. 
Rui Teixeira, médico interno de reumatologia no Hospital de Santa Maria e docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, também pensa que uma das conclusões mais importantes que saiu da reunião é a necessidade de os jovens “serem bem acompanhados”. E diz igualmente que há um problema sério de linguagem: “Não se trata de mudar o conteúdo, mas de adaptar a linguagem.” Dá o exemplo da sua própria acção no Corpo Nacional de Escutas, onde trabalha como formador: “Para quê ter os miúdos sentados numa sala de formação se posso ensinar-lhes a mesma coisa através de um jogo de pista?”
O acolhimento, diziam os jovens no texto final da reunião de Março, deve ser também pró-activo: “A Igreja deve buscar formas novas e criativas de encontrar as pessoas exatamente onde elas vivem, em lugares onde socializam naturalmente: bares, cafés, parques, academias, estádios e outros centros culturais populares. (...) De igual modo, nós precisamos da luz da fé em lugares mais desafiantes como orfanatos, hospitais, bairros marginalizados, regiões devastadas pela guerra, prisões, centros de reabilitação e zonas de prostituição.”

A credibilidade e a conversa “inevitável” sobre a pedofilia

Ligado à linguagem, está o problema da credibilidade. A pergunta é ainda do jovem médico, referindo o escândalo dos abusos sexuais de membros do clero, que afecta a imagem do catolicismo entre tantos jovens: “Como é que a Igreja propõe uma coisa, explica outra, consente diferente e, no caso de alguns dos seus responsáveis, ainda vive uma outra?...”
“É inevitável que apareça a conversa sobre a pedofilia”, acrescenta Tomás Virtuoso, recordando que o tema ficou também plasmado no documento final, com palavras, aliás, nada meigas: “Alguns jovens pensam que a Igreja desenvolveu uma cultura na qual se presta mais atenção às instituições do que à pessoa de Cristo.” Diz o jovem doutorando de economia: “Talvez este Sínodo possa renovar e tornar a Igreja mais transparente. É preciso debater qual é a cultura de poder dentro da Igreja. A questão é saber o que se deve mudar para tornar a Igreja mais confiável.”
“Precisamos encontrar modelos atraentes, coerentes e autênticos”, disseram os jovens participantes, no documento final da RP. “Precisamos de explicações racionais e críticas às questões complexas – as respostas simplistas não são suficientes. (...) Precisamos de uma Igreja acolhedora e misericordiosa, que tem apreço pelas suas raízes e seus valores, amando a todos, até mesmo aqueles que não seguem o que acreditamos ser a fé ‘padrão’”.
No grupo em que participou, em que havia vários latino-americanos (incluindo uma pastora luterana do Paraguai), Joana Serôdio diz que todos falaram da “discórdia” de muitos jovens em relação a vários aspectos da doutrina da Igreja. E isso origina a “incompreensão de muitos católicos em relação aos jovens, por causa das opções que eles tomam”. É difícil, acrescenta, explicar aos jovens que a Igreja “diz que acolhe mas depois, na prática, marginaliza”. 


Joana Serôdio

O mais evidente das reflexões dos jovens na RP “não era alterar tudo o que a Igreja diz ou faz, sobre questões como a contracepção ou as relações pré-matrimoniais”. As opiniões “estão distantes do que a Igreja diz sobre alguns desses temas, mas não se trata de mudar completamente” mas, antes, de alterar a linguagem, de modo a manifestar sobretudo o acolhimento. 
Todos coincidem em outra observação: além dos 300 participantes na assembleia pré-sinodal, havia mais 15 mil jovens de todo o mundo a intervir, através de debates e comentários nas redes sociais. E, aqui, mobilizaram-se vários grupos que se opõem a qualquer mudança na doutrina e no modo de abordar estes temas, dizem os três portugueses, e apareciam, além de comentários de apoio, também muitos outros a criticar as reflexões da RP. 

A pessoa no centro da política e da economia

No documento final da RP, há uma afirmação que pode parecer estranha: “Ainda não há um consenso unânime em relação à questão dos imigrantes e dos refugiados e muito menos sobre as problemáticas que causam este fenómeno – tudo isso somado ao reconhecimento do dever universal de tutelar a dignidade de cada pessoa humana.”
Não se pode ignorar que houve divergências também sobre este tema, recorda Rui Teixeira. “Para alguns, a dimensão social não é tão importante” e referiam algumas reservas em relação ao tema dos refugiados. Também havia muito quem citasse o Papa, mas por vezes era só porque isso é convencional...
No documento final da RP, ficou registada a lista de preocupações dos jovens: “Queremos um mundo de paz, com uma ecologia integral unida a uma economia global sustentável. Para os jovens que vivem em regiões instáveis e vulneráveis, existe a esperança e uma expectativa de ações concretas da parte dos governos e da sociedade: acabar com os conflitos, com a corrupção; ter atenção às mudanças climáticas, às desigualdades sociais e à segurança. É importante saber que, independentemente do contexto, todos compartilham a mesma aspiração inata por ideais nobres: paz, amor, confiança, igualdade, liberdade e justiça.”
Para Tomás, é evidente que a Igreja deve reflectir sobre a influência da tecnologia nos jovens – outro tema referido no texto final da RP –, tal como a ideia de que a fé deve influenciar intervenção política: “É a pessoa que deve estar no fim da decisão política ou da economia. Isso deve levar-nos a perguntar se somos capazes de explicar que cada pessoa tem uma dignidade própria ou se um gestor católico despede como os outros ou se tem uma relação diferente com o meio ambiente Se não é diferente, isso tem de ser repensado...” Tomás acrescenta que se um jovem católico não tem capacidade de influência política e de participação cívica a partir da sua fé, “então a fé não serve para nada”. 
Joana dá o exemplo do que está a passar-se no Brasil, por causa do fenómeno da corrupção: “Temos de nos envolver cada vez mais em tudo o que diz respeito à sociedade”. 

“Há muito trabalho a fazer e tão pouco tempo...”

Nas expectativas em relação ao Sínodo cujos debates em assembleia começam nesta quinta-feira, dia 4, os três portugueses que participaram na RP coincidem também numa outra coisa: “A necessidade de os jovens quererem ser bem acompanhados e muitas vezes não terem quem”, como define Rui Teixeira. “O Papa também já terá alguma coisa pensada e não é no dia seguinte que as coisas mudarão, mas é importante capacitar agentes para o acompanhamento, responsabilizar a hierarquia no sentido da autenticidade e manter o espírito de auscultação que experimentámos na reunião pré-sinodal.”


Rui Teixeira

Essa escuta deve entender também outra mudança: “Vários jovens, perdendo a confiança nas instituições, não se reconhecem mais nas religiões tradicionais e não se definem mais como ‘religiosos’. Porém, os jovens são abertos à espiritualidade”, verifica o documento final da RP.
O pedido do documento final vai mais longe: “A Igreja deve envolver jovens em seus processos de tomadas de decisão e oferecer-lhes mais funções de liderança. Essas funções devem ser na paróquia, diocese, a nível nacional e internacional, e até em comissões do Vaticano.”
Joana espera muito que os dois bispos portugueses participantes – Joaquim Mendes, auxiliar de Lisboa, e António Augusto Azevedo, auxiliar do Porto – levam “muito entusiasmo e partilha”. Os resultados da assembleia de Roma (na qual participam cerca de 270 bispos de todo o mundo e da Cúria Romana, mais uns 130 auditores, convidados, secretários e delegados de outras confissões cristãs) passam também por uma “maior abertura dos bispos aos jovens”, acrescenta, pois para vários deles “ainda é difícil saber como é que a hierarquia deve trabalhar com os jovens”. 
Em Portugal, pelos menos duas dioceses, acrescenta Joana, irão dinamizar assembleia de jovens durante este mês de Outubro, como forma de tornar presente o debate de Roma. “Há muito trabalho a fazer e tão pouco tempo...”, desabafa. “Não estou à espera de uma revolução, é prematuro desejar muitas mudanças, mas sinto que há muita vontade dos jovens em que a Igreja mude. É preciso que os bispos queiram caminhar juntos connosco...”
Até dia 28, cabe aos bispos dizer se essa é também a sua vontade. 

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